22 de abril de 2010

Elogio da preguiça


Saint-Germain-des-Près foi para mim, durante os dois anos que vivi em Paris, o meu bairro artúrico (como a rua imaginada e percorrida por Rimbaud que, no final do seu trajecto, dava para o fim do mundo: "só pode ser o fim do mundo se avançarmos"), onde se concentrava toda uma mitografia que levei comigo, sedimentada nos lugares imaginados da minha atracção parisiense. Neste bairro, que naquele tempo me foi oferecido como um pequeno território secreto, tracei com passos repetidos uma cartografia pessoal feita de ruas estreitas, passagens cobertas, pequenas livrarias, galerias de arte, estúdios de cinema, cafés, um mercado de rua, pequenos jardins…

Era ainda o tempo em que, por exemplo, ao virar de uma esquina, podíamos encontrar os filhos do mundo que sonharam viver em Paris. Nesse tempo, era possível, invariavelmente depois 14h 30, hora a que fechavam as agências de emprego, cruzarmo-nos com Albert Cossery, o escritor egípcio que nos anos quarenta aqui desembarcara com pouco dinheiro e tendo como única bagagem uma selecção de contos, Os homens esquecidos de Deus, que Henry Miller acabava de publicar nos Estados Unidos e que o editor Edmond Charlot pretendia publicar em França. Não trazia outra ambição que não fosse a de escrever um livro de oito em oito anos, à média de uma frase por semana.

Na rua de Seine, que começa perpendicular à rua de Saint Sulpice e desce até ao quai Malaquais, no quarto 58 do hotel La Louisiane cujas janelas davam sobre uma mercearia - frequentado na época por Gréco, Sartre, Beauvoir, Mouloudji… -, escolheu Cossery o seu único lugar de escrita, o espelho perfeito de alguém que apenas pretendeu gozar a vida, o reflexo de uma obra que elegeu o dandismo indolente como processo de reflexão permanente, povoada por mendigos filósofos, ladrões magníficos e preguiçosos impenitentes. Como Gohar, Gala ou Ossama, as suas personagens rebeldes que cultivam a pobreza para não ter nada a perder, Cossery baniu da sua existência os bens mundanos e elegeu a preguiça como arte de vida e instrumento de resistência contra a vanidade dos seus contemporâneos: «Se eu tivesse guardado tudo o que me ofereceram, seria milionário. Quando Giacometti me dava um quadro, ele sabia que eu o venderia no dia seguinte. Isso permitia-me viver durante algum tempo».

Porque um quarto de hotel não é uma casa, só ali, sem casa nem carro a atestar a sua presença sobre a terra – apenas alguns livros de Dostoievski, Nietzsche, Stendhal, Baudelaire, Rimbaud, Thomas Mann… - Cossery se sentia livre, praticando a indolência e a meditação que os seus livros celebram. «Não se trata, pois, de preguiça. É tempo de reflexão. E quanto mais preguiçoso fores, mais tempo tens para reflectir. E é por isso que, no Oriente, isso se designa por filosofia oriental… A maior parte das pessoas tem tempo. Quanto mais se desce para sul, mais encontramos profetas, magos, pessoas que reflectiram sobre o mundo». E foi aí, nesse pequeno quarto de hotel na rua de Seine, que Cossery, iluminado pela gaia ciência de Nietzsche, escreveu com toda a ternura do mundo sobre as misérias insondáveis das vielas do Cairo, nos anos quarenta, cinquenta. Embora nunca mais tenha regressado ao Egipto – «O Egipto nunca me deixou» -reinventou-o mais verdadeiro que o verdadeiro, com os seus mendigos e altivos, desesperadamente pobres, preguiçosos e indolentes.

Terá sido em Paris que, talvez, me tenha cruzado um dia com este elegante profeta da contemplação, transportado dos cafés árabes do Cairo, onde a vida corria livremente, temperada com um pouco de haxixe. Claro que nos meus dias de Paris, Saint Germain já não era o que fora nos anos brasa de Cossery, embora a brasserie Lipp e todos os outros locais frequentados por Cossery ainda lá estivessem. Mas estava menos Cossery e, sobretudo, já não estavam os seus amigos, Camus, Genet, Louis Guillouxx, Mastroianni, Ferreri. Imaginei-o aí instalado com a sua corte, em frente dos azulejos do pai de Paul Fargue. Ou, no outro lado do boulevard, no Café de Flore. Ou sentado numa cadeira no Jardim do Luxembourg, observando a única coisa de que a sua língua viperina não poderia dizer mal, as árvores: «Eu não gosto do campo. Não posso dizer mal das árvores». Mas foi no Café de Flore, onde o procurei algumas vezes e por ironia nunca o encontrei que melhor o imaginei.

Nos anos oitenta, o Flore já tinha sido colonizado por uma fauna de turistas literatos nostálgicos que perscrutavam ansiosamente a mesa onde Sartre escreveu A náusea ou o canto onde Roland Barthes se refugiava a ler o Le Monde. Poucos procuravam a sombra de Cossery cuja existência ignoravam, e muito menos o seu estatuto de escritor deslocado, marcado pela heráldica do desapego e da indolência, e tão fora da gesticulação literária e mundana. Mas a mim, fascinava-me imaginar, no meio da clientela extravagante alheia ao literário, a figura aristocrática de Cossery contemplando a rua através da esplanada envidraçada do café, talvez meditando sobre o seu último livro que publicaria em 1999, As cores da infâmia, em que continuaria a denunciar implacavelmente «a face ignóbil e grotesca dos poderosos da terra», o que levou Henry Miller a afirmar que a sua obra era «uma surpresa total. É o género de livros que precedem as revoluções e engendra a revolução, se é que as palavras possuem algum poder».

Para mim que, recentemente, li quase de seguida alguns dos livros de Cossery [Mendigos e altivos, Mandriões do vale fértil, A violência e o escárnio, Uma conjura de saltimbancos, Os homens esquecidos de Deus, Uma ambição no deserto, As cores da infâmia, todos editados pela Antígona], as suas palavras sobre a gesta dos anti-heróis das ruas do Cairo, continuam a sinalizar as paragens do meu itinerário de leitura. Isto porque, tal como Ahmed Safra, o condutor de eléctricos de A casa da morte certa, que só se detinha nas paragens que lhe apetecia, também eu só me detenho em livros embebidos na tinta da vida e, por isso, capazes de agitar o pensamento.

18 de abril de 2010

Sob o céu de Tânger


«Não escolhi instalar-me em Tânger. Aconteceu. Devia ser uma estadia breve. Queria continuar, indefinidamente. A preguiça fez-me adiar a partida. Um dia, tive de render-me: o mundo estava muito povoado, os hotéis eram menos bons, as viagens menos agradáveis e as paisagens menos belas. Quando estava noutro sítio, lamentava não estar em Tânger. Estou aqui porque cá estava quando percebi a que ponto o mundo piorou. Já não queria viajar mais», confessa Paul Bowles.

Tânger aqui tão perto. Sai-se de manhã cedo de Portimão e, pelo meio-dia, tomamos o ferry em Tarifa. Primeiro, o porto, depois a Place Koweit; almoçamos no Hotel Continental, alojamo-nos, saímos de novo, tomamos um taxi que nos leva encosta acima entre terrenos baldios até ao Edifício Itesa, onde Bowles viveu desde os cinquenta anos até poucas semanas antes da sua morte, em 1999, aos oitenta e oito anos. Subimos umas escadarias amplas de mármore até ao quarto andar e batemos à porta do apartamento 20. Esperamos. Ninguém responde. Não veremos a sua última morada. A mesma que foi visitada por Mick Jagger e Brian Jones, seus vizinhos por algum tempo no andar de baixo do Itesa, e que vieram a Marrocos para ouvir os sons dos fazedores de perfumes e gravar os Master Musicians of Jajouka que seria considerado o primeiro álbum de músicas do mundo. Primeiro que ninguém, Bowles tinha descoberto esta música nas suas deambulações por Marrocos, enquanto musicólogo. Porque Bowles já não mora ali descemos, e já na rua avistamos um pedaço azul do estreito de Gibraltar. «Há lugares no mundo que contêm mais magia do que outros», escreveu Bowles.

Voltamos a descer a ladeira de Monteviejo, por entre os ciprestres que ladeiam a estrada que nos devolve à Medina. Perdemo-nos no labirinto de ruelas, sob odores exóticos e reencontramo-nos à porta do The Paul Bowles Room, na antiga American Legation. Entramos. O ambiente irradia serenidade, apesar de três das velhas malas que correram o deserto, outras vezes o mundo, nos convidarem ao devaneio. Imaginamo-lo, então, sentado em tantos lugares, aqui, em Fez, em Ait-Benadou, no deserto ao crepúsculo, sob um céu que nos protege, as montanhas azuis ao fundo. Se aqui estivesse agora falaria da disciplina errática das viagens. De nomadismos. Do mar de Conrad. Do silêncio do deserto. De Graham Greene e Raymond Chandler. Da hibris marroquina. Sim, de Jane Bowles. De Kafka, Gerturde Stein e Flannery O´Connor. A prisão do corpo. A morte libertadora. Os labirintos do kif. A poesia de Mohamed Choukri. A escrita como ritual. O concerto de oboé e clarinete que nunca terminou.

Saímos para o primeiro entardecer de Tânger. Há homens trabalhando cestos, o cobre, a lã. A padaria onde Bowles comprava o pão, naquela esquina antes dos degraus do Baba. Procuramo-lo no Café Hafa, por entre delicados saracoteares de copos de chá de menta. Depois, no Café de Paris, outrora também frequentado por Jean Genet, um dos muitos que ajudaram a criar o mito de Tânger, cidade nervosa. Impossível não imaginar neste refúgio déco o encontro entre Malkovich e Debra Winger, à procura de si próprios em Um Chá no Deserto. A voz de Bowles, no filme, confessando que, mais tarde, acabariam por se perder, irremediavelmente, nas areias sedutoras e fatais do deserto. Mas é na ressuscitada Librairie des Colonnes, onde Bowles se encontrou tantas vezes com Mohamed Choukri, e que utilizava como caixa pessoal de correio, que reencontramos o antigo espírito do lugar. Abrimos um livro que fala desta cidade, Deixa chuva cair. E é nessa morada de vocação mediterrânica que, finalmente, o encontramos numa Tânger desaparecida onde vingava a corrupção e a desordem, onde se movimentavam vigaristas e assassinos, excêntricos e ninfomaníacos, homossexuais e magnates. Dolorosa iniciação.

Eras um americano a fugir do mal-de-vivre urbano. Tinhas chegado com Aaron Copland, procurando romper com o nomadismo cosmopolita que te levara a viajar pela Europa primeiro, depois pelo Extremo-Oriente e pela América Central, com incursões mais ou menos prolongadas em Paris e Nova Iorque. Em 1947, decidiste ficar aqui, em Tânger, donde partias em viagens pelo deserto como relatas em Baptism of solitude. Sim, Bertolluci também percebeu esse fascínio e ofereceu-nos Um chá no deserto, baseado no teu livro O céu que nos protege. E muitos vinham aqui visitar-te. Truman Capote, Tenesse Williams, Cecil Beaton, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, Gore Vidal foram alguns dos que participaram no desregramento de sentidos das longas noites estreladas de Tânger.

Mas quem sempre ficou aqui foste tu. E disso nos falas agora: «É estranho. Vivo aqui há 59 anos e continuo a ser um turista. As pessoas vêem-me como turista e acho que têm razão. Isto apesar de, oficialmente, eu ser residente. Mas a menos que nos tornemos muçulmanos, continuamos a ser estrangeiros. Eles vêem-me como um Nassrani, ainda que não seja cristão. É muito difícil tornarmo-nos amigos íntimos de alguém. Aqui, é-se apreciado como fazendo parte de um grupo. O estrangeiro, digamos, o turista, não sabe como aproximar-se dos marroquinos, pois a sua forma de pensar é diferente. Para eles, as coisas importantes não são as mesmas. Há que aceitar, e continuar a aceitar, suceda o que suceder, uma vez que quem estuda as pessoas está na posição de espectador, observando as pessoas de outra cultura».

Por isso, aqui, neste café, ao crepúsculo tangerino, rencontrar Paul Bowles talvez seja também uma forma de nos deixarmos cobrir, nós e este islão vizinho, sob o mesmo céu que nos protege.

13 de abril de 2010

Nomadismos



«Fui fotografando calmamente, sem ansiedades, porque mais importante do que as imagens eram as palavras, as conversas. Tinha a nítida sensação de estar perante um sábio, um homem que tinha vivido, traçado o seu destino, encontrado a sua alma. A casa e a pessoa de Bowles irradiavam serenidade, apesar da sua biografia e do monte de malas na entrada lembrarem outras existências», escreveu Daniel Blaufuks em My Tangier, o ensaio fotográfico que publicou em 1991 resultante de uma expedição à mítica Tânger, ao encontro do escritor norte-americano Paul Bowles que ali escolheu viver, até à sua morte em 1999.

Ontem, ao arrumar os livros na prateleira mediterrânica da minha biblioteca, abriu-se-me a mala que ele levou na sua primeira viagem a Paris, onde conheceu o poeta surrealista Tristan Tzara. E lá encontrei a edição da Assírio & Alvim, anotada a lápis, da sua autobiografia Memórias de um nómada, onde, por instantes, reencontrei Bowles escrevendo sofregamente, deixando cair no papel «without stopping» uma torrente de palavras: muitos contos, novelas, traduções de amigos marroquinos, livros de viagens. Na mesma mala, cujos segredos me foram momentaneamente revelados, lá estava, também, Deixai a chuva cair, o romance sobre a nervosa Tânger, cidade por onde Bowles errou durante grande parte da sua vida. Bowles que se fez desaparecido em Marrocos, corresponde ao mito simpático do ocidental que rejeita o estatuto social da sua origem para se ocultar na distância libertadora do Norte de África.

Impossível, por isso, não recordar Manuel Teixeira Gomes, político, diplomata e ex-presidente da República e, sobretudo, escritor de contos, novelas, cartas, livros de viagens… e viajante vagaroso, por países e mares, da Europa à África do Norte e à Ásia Menor, através de cidades e portos onde mercadejou, amou mulheres múltiplas, visitou museus, leu e escreveu, como um dandy elegante. Também Teixeira Gomes, nas suas andanças mediterrânicas, aportou um dia em Tânger, seguramente com a sua «mala grande». E, também ele, se fez desaparecido, depois, em Bejaia, Argélia, onde viveu esquecido no quarto número 13 do Hotel Étoile - a sua «mala grande» transformada ali num sedentário guarda-roupa, mas a lembrar a sua anterior existência nómada. Uma vida sem fronteiras nem códigos a limitar o desejo e a imaginação criadora. Como uma gaivota atraída pelo brilho das paisagens do sul, sem nada querer possuir a não ser um pequeno quarto num hotel, depois de ter tido todo o mundo no olhar.