8 de setembro de 2015

Estranhos de passagem


Nas últimas semanas, temos assistido ao êxodo dramático para a Europa, com o objectivo de chegarem à Alemanha, de milhares de migrantes e refugiados. Homens, mulheres e crianças, famílias, fugindo da guerra e da barbárie terrorista perpetrada pelo auto-designado estado islâmico que o mundo deixou instalar nos seus territórios, sobretudo na Síria, na Líbia, no Iraque. Pelo caminho, à mercê de traficantes assassinos, atravessam desertos, morrem em magotes no mar, dão às praias mediterrânicas como Alan Kurdi, o menino curdo cuja imagem de enorme força icónica nos confrontou com as nossas falhas tornando-se no símbolo do "naufrágio da humanidade" que veio desassossegar as consciências europeias. 

Hannah Arendt em As origens do totalitarismo (1951), num capítulo em que analisa o estado de isolamento e de solidão dos indivíduos enquanto pré-condição para o domínio absoluto pelo Estado totalitário, escrevia que “ [as guerras civis] desencadearam a emigração de grupos que, menos felizes, do que os seus predecessores das guerras da religião, não foram acolhidos em nenhum sítio. Tendo fugido da sua pátria, viram-se sem pátria, tendo abandonado o seu Estado, tornaram-se apátridas; tendo sido privados dos direitos que a sua humanidade lhes conferia, ficaram desprovidos de direitos”. 

Os actuais migrantes que se lançam ao mar para alcançarem a Europa também fogem da guerra e da miséria, e do terrorismo e 
da barbárie diária que se abate sobre as suas casas e famílias, deixando para trás a sua pátria sem que saibam que outra pátria os poderá acolher. Os que conseguem chegar às margens da Europa esperam, depois, desprovidos de direitos, à beira de situações-limite, acampados em espaços anómicos em ilhas gregas ou italianas ou nas fronteiras da Macedónia e da Hungria onde se ergueram muros dissuasores, porém incapazes de suster a massa incontrolada destes "estranhos de passagem", ou na estação de Budapeste, última fronteira antes da "terra prometida" a si mesmos". E quando se põem em marcha pela estrada fora, como aconteceu na passada semana na Hungria, são olhados como assaltantes estrangeiros que vêm aí, para nos roubar empregos ou, pior ainda, com medo de que lá no meio também venham misturados terroristas islâmicos. 

"Estranhos de passagem", mas pessoas como nós que tendo sobrevivendo à travessia mediterrânica têm, depois, de carregar a sua cruz às costas e de suportar, como assistimos na Hungria, o bastão e o gás lacrimogéneo da polícia e a desconfiança das populações, o racismo e a xenofobia. Acreditam, contudo, que na margem de cá do Mediterrâneo estarão pessoas generosas, mais afortunadas, que os acolherão de braços abertos, oferecendo-lhe a possibilidade de levarem uma vida decente. Passam por centros de refugiados, esperam em campos ou em estações de caminho-de-ferro a chegada de um comboio redentor, enquanto, na Alemanha, as trombetas da "terra prometida" começam a soar. 

E "a terra prometida" parece ser, por estes dias, a Alemanha onde, conforme o pronunciamento da chanceler Angela Merkel, serão recebidos já não como "estranhos de passagem" mas como humanos a quem será concedido o direito de asilo. A Alemanha, então, aproveitando esta oportunidade histórica, para, assim, se redimir aos olhos do mundo, e refazer a sua demografia, tornando-se, de repente, "a terra prometida" para milhares de refugiados, na sua maioria sírios, que, diariamente, chegam à estação de Starnberger, em Munique, transformada em primeiro porto de abrigo de uma Alemanha que parece não temer estes "estranhos de passagem" 


Enquanto isso, indiferentes ao desespero daqueles, a quem, finalmente, é oferecida a esperança, propagam-se nas redes sociais e nalgumas colunas de jornais ditos de referência “prosas negras tingidas de vermelho” (como, certeiramente, denunciou Rui Bebiano no seu blogue A terceira noite), declarando, cinicamente, e sem pudor, que o pronunciamento da Alemanha pelo acolhimento destas pessoas seria uma manipulação propagandista para limpar a sua imagem pública, desviando, assim, a atenção dos verdadeiros problemas da Europa e, ao mesmo tempo, enfraquecendo os movimentos sociais que, até há bem pouco tempo, os ditos prosadores acreditavam ser uma espécie de "primavera europeia" redentora. 

Ao se pronunciar favorável ao acolhimento, ao “refúgio” geográfico e jurídico portanto, de quase um milhão de pessoas no seu território (e, claro, fá-lo, também, porque tem capacidade os integrar e interesse em absorver mão-de-obra barata), a Alemanha subtrai-os aos campos de refugiados, disseminados por toda a fronteira do Sul da União Europeia. Campos onde, desde há muito, foram concentrados os africanos, que vieram antes dos sírios e afegãos e iraquianos. E isso não desassossegou consciências, nem ninguém se comoveu. Também não consta que tenha gerado movimentos sociais emancipadores. Apenas tragédia em cima de tragédia. Os cadáveres nas praias de Tarifa, os condenados a morrer no deserto, não fizeram derramar lágrimas, apenas provocaram indiferença. E iniquidade europeia. 

Claro que não será possível acolher todos os que procuram na Europa "a terra prometida". Os fluxos migratórios imparáveis multiplicarão as tragédias no Mediterrâneo e os sobreviventes continuarão a povoar os campos de "deslocados" nas margens da Europa à espera de uma "passagem" que lhes devolva a humanidade perdida. Mas muitos conseguirão passar, dando razão à ideia de Umberto Eco, expressa em recente entrevista concedida ao Expresso, de que "o que se passa no mundo não é um fenómeno de imigração, mas de migração. [...] A Europa irá mudar de cor, tal como os Estados Unidos". E serão estes "estranhos de passagem" que escolheram a nossa terra para ficar que começarão a mudar a sua cor.

Contra esse destino inelutável a que Europa não poderá fugir, mas antes deve encarar, escrevem alguns maquinadores de medos que a demografia europeia ficará irremediavelmente distorcida, que se acenderão racismos, que o fundamentalismo islâmico minará a nossa sociedade e que a extrema-direita terá um terreno fértil para crescer. Que "tudo é perigoso, mas não igualmente nem ao mesmo tempo", já Walter Benjamin nos tinha advertido. E não será uma cortina de medo que nos porá a salvo. Também não serão os muros em que encerramos a Europa que dissuadirão quem já não tem mais nada a perder a não ser a própria vida e a dos seus filhos. O desafio que, hoje, a Europa tem pela frente é, por um lado, racionalizar o fluxo migratório, e, por outro, garantir que o acolhimento não transforme  "a terra prometida" num caos seja para os que chegam seja para quem os acolhe. 

Seja por generosidade seja por pragmatismo, ou por um misto de ambas as coisas, a Alemanha, foi quem primeiro compreendeu o que era necessário fazer no imediato, por muito que isso custe aos "prosadores negros tingidos de vermelho" e aos propagadores de "teorias da conspiração". Depois, amanhã, com a urgência que a história exige, logo se verá que fazer para impedir a "catástrofe de as coisas continuarem como antes" (Walter Benjamin) concertando, de uma vez por todas, as soluções para, na origem da tragédia, rasgar o manto de barbárie diária que cobre de sangue a Síria, o Iraque, a Líbia. 

14 de julho de 2015

Autofagia europeia



Que mais poderia eu dizer aqui que não tenha já sido dito, ontem e hoje, e antes, por quem tem autoridade para o dizer, como os "nobel" Paul Krugmann ou Joseph Stiglitz e tantos outros, de lá de fora, e de cá de centro, e comentadores também, uns mais à esquerda e outros mais à direita, e outros nem por isso - se é que estes conceitos, ainda, fazem algum sentido, ou independentemente do conceito que cada um de nós lhes queiramos atribuir -, sobre o acordo humilhante para os gregos, sejam quais forem as suas culpas, que as têm, também, e muitas, e, por isso, muito terão a corrigir. Dizer, talvez, como escreveu Krugmann, ontem, no New York Times, que o que aconteceu neste fim-de-semana foi "o fim do projecto europeu" ou como disse, mais dramaticamente, Miguel Sousa Tavares, há instantes na sic, que foi erguida uma nova "cortina de ferro" entre o Norte rico dos credores e o Sul empobrecido dos devedores à conta de governos que se governaram a si próprios com o beneplácito dos tais credores! Ou ainda, citar Markus Walker que escreveu no Wall Street Journal que o comunicado do Eurogrupo difundido ainda do final da cimeira "ficará na história como uma das mais brutais démarches diplomáticas na vida da União Europeia". Crime e Castigo, como no romance de Dostoievski, só que nesta tragédia, os criminosos - que os há dos dois lados da "cortina" - (e não, não me refiro a Tsipras ou Varoufakis que foram, apenas, românticos esquerdistas, ingénuos, ou mesmo irresponsáveis, sobretudo por não terem preparado um plano b, mas sim aos outros que antes deles, as clientelas do pasok e da nova democracia, se foram, obscenamente, banqueteando com os fundos europeus com a cumplicidade daqueles que, agora, sob o alto patrocínio francês, impõem o Diktat alemão ao povo grego e que são, também, e muito, co-responsáveis pela catástrofe grega e pelo fim do projecto europeu) -, saem impunes e os inocentes não merecem tamanho castigo. Mas isto digo eu, parafraseando Fernando Pessoa, que não sei nada de finanças. 

Diria tudo isso e muito mais, tivesse eu engenho e arte para o dizer! Mas como não tenho, limito-me a dizer a minha tristeza por ver a Europa, a Europa renascida das cinzas de duas guerras, em cujo projecto acalentámos sonhos de democracia, prosperidade e solidariedade, caminhar à beira do precipício onde, por falta de gente competente e, sobretudo, por falta de gente com decência que a saiba governar, vai caindo numa queda sem fim para mal de todos nós, Europeus, quer sejamos do Norte, do Sul ou do Leste.

E é deste castigo ao povo grego que os anões cá da terra se vangloriam, uns, como o nosso pm, dizendo que foi ele que, ao romper da aurora, propôs a solução humilhante, e outros, como quem falou hoje em nome do ps, afirmando que foi graças aos socialistas europeus que o acordo foi possível. Uns e outros congratulando-se com o quê? Com o fim do sonho europeu? Uns e outros, anões em bicos de pés, empurrando-se mutuamente para conseguir um lugar de figurantes nesta fábula autofágica em que a Europa se vai devorando a si própria. E, no entanto, apesar do metafórico arame farpado que vai rasgando a bandeira europeia, ousar dizer, e desejar, como o poeta Mário de Sá-Carneiro, "um pouco mais de azul" para a nossa Europa. Que não falte o golpe de asa!