«Não escolhi instalar-me em Tânger. Aconteceu. Devia ser uma estadia breve. Queria continuar, indefinidamente. A preguiça fez-me adiar a partida. Um dia, tive de render-me: o mundo estava muito povoado, os hotéis eram menos bons, as viagens menos agradáveis e as paisagens menos belas. Quando estava noutro sítio, lamentava não estar em Tânger. Estou aqui porque cá estava quando percebi a que ponto o mundo piorou. Já não queria viajar mais», confessa Paul Bowles.
Tânger aqui tão perto. Sai-se de manhã cedo de Portimão e, pelo meio-dia, tomamos o ferry em Tarifa. Primeiro, o porto, depois a Place Koweit; almoçamos no Hotel Continental, alojamo-nos, saímos de novo, tomamos um taxi que nos leva encosta acima entre terrenos baldios até ao Edifício Itesa, onde Bowles viveu desde os cinquenta anos até poucas semanas antes da sua morte, em 1999, aos oitenta e oito anos. Subimos umas escadarias amplas de mármore até ao quarto andar e batemos à porta do apartamento 20. Esperamos. Ninguém responde. Não veremos a sua última morada. A mesma que foi visitada por Mick Jagger e Brian Jones, seus vizinhos por algum tempo no andar de baixo do Itesa, e que vieram a Marrocos para ouvir os sons dos fazedores de perfumes e gravar os Master Musicians of Jajouka que seria considerado o primeiro álbum de músicas do mundo. Primeiro que ninguém, Bowles tinha descoberto esta música nas suas deambulações por Marrocos, enquanto musicólogo. Porque Bowles já não mora ali descemos, e já na rua avistamos um pedaço azul do estreito de Gibraltar. «Há lugares no mundo que contêm mais magia do que outros», escreveu Bowles.
Voltamos a descer a ladeira de Monteviejo, por entre os ciprestres que ladeiam a estrada que nos devolve à Medina. Perdemo-nos no labirinto de ruelas, sob odores exóticos e reencontramo-nos à porta do The Paul Bowles Room, na antiga American Legation. Entramos. O ambiente irradia serenidade, apesar de três das velhas malas que correram o deserto, outras vezes o mundo, nos convidarem ao devaneio. Imaginamo-lo, então, sentado em tantos lugares, aqui, em Fez, em Ait-Benadou, no deserto ao crepúsculo, sob um céu que nos protege, as montanhas azuis ao fundo. Se aqui estivesse agora falaria da disciplina errática das viagens. De nomadismos. Do mar de Conrad. Do silêncio do deserto. De Graham Greene e Raymond Chandler. Da hibris marroquina. Sim, de Jane Bowles. De Kafka, Gerturde Stein e Flannery O´Connor. A prisão do corpo. A morte libertadora. Os labirintos do kif. A poesia de Mohamed Choukri. A escrita como ritual. O concerto de oboé e clarinete que nunca terminou.
Saímos para o primeiro entardecer de Tânger. Há homens trabalhando cestos, o cobre, a lã. A padaria onde Bowles comprava o pão, naquela esquina antes dos degraus do Baba. Procuramo-lo no Café Hafa, por entre delicados saracoteares de copos de chá de menta. Depois, no Café de Paris, outrora também frequentado por Jean Genet, um dos muitos que ajudaram a criar o mito de Tânger, cidade nervosa. Impossível não imaginar neste refúgio déco o encontro entre Malkovich e Debra Winger, à procura de si próprios em Um Chá no Deserto. A voz de Bowles, no filme, confessando que, mais tarde, acabariam por se perder, irremediavelmente, nas areias sedutoras e fatais do deserto. Mas é na ressuscitada Librairie des Colonnes, onde Bowles se encontrou tantas vezes com Mohamed Choukri, e que utilizava como caixa pessoal de correio, que reencontramos o antigo espírito do lugar. Abrimos um livro que fala desta cidade, Deixa chuva cair. E é nessa morada de vocação mediterrânica que, finalmente, o encontramos numa Tânger desaparecida onde vingava a corrupção e a desordem, onde se movimentavam vigaristas e assassinos, excêntricos e ninfomaníacos, homossexuais e magnates. Dolorosa iniciação.
Eras um americano a fugir do mal-de-vivre urbano. Tinhas chegado com Aaron Copland, procurando romper com o nomadismo cosmopolita que te levara a viajar pela Europa primeiro, depois pelo Extremo-Oriente e pela América Central, com incursões mais ou menos prolongadas em Paris e Nova Iorque. Em 1947, decidiste ficar aqui, em Tânger, donde partias em viagens pelo deserto como relatas em Baptism of solitude. Sim, Bertolluci também percebeu esse fascínio e ofereceu-nos Um chá no deserto, baseado no teu livro O céu que nos protege. E muitos vinham aqui visitar-te. Truman Capote, Tenesse Williams, Cecil Beaton, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, Gore Vidal foram alguns dos que participaram no desregramento de sentidos das longas noites estreladas de Tânger.
Mas quem sempre ficou aqui foste tu. E disso nos falas agora: «É estranho. Vivo aqui há 59 anos e continuo a ser um turista. As pessoas vêem-me como turista e acho que têm razão. Isto apesar de, oficialmente, eu ser residente. Mas a menos que nos tornemos muçulmanos, continuamos a ser estrangeiros. Eles vêem-me como um Nassrani, ainda que não seja cristão. É muito difícil tornarmo-nos amigos íntimos de alguém. Aqui, é-se apreciado como fazendo parte de um grupo. O estrangeiro, digamos, o turista, não sabe como aproximar-se dos marroquinos, pois a sua forma de pensar é diferente. Para eles, as coisas importantes não são as mesmas. Há que aceitar, e continuar a aceitar, suceda o que suceder, uma vez que quem estuda as pessoas está na posição de espectador, observando as pessoas de outra cultura».
Por isso, aqui, neste café, ao crepúsculo tangerino, rencontrar Paul Bowles talvez seja também uma forma de nos deixarmos cobrir, nós e este islão vizinho, sob o mesmo céu que nos protege.
Convido-o para um chá no Hafa ou no Tanger'In, ao lado do Hotel Rembrandt. Vistas as fotos da Beat quase toda que por lá passou - Burroughs sempre pronto a dar um tiro em alguém - depois vamos até ao Roxy e é possível que encontemos Mrabet; Choukri, já não
ResponderEliminar(Preciosismos: Graham aparece mal formatado)
...agradeço o chá, de menta, presumo, e anoto as paragens «tangerinas» que sugere.
ResponderEliminarAh, e fundamental para nós: na avenue Pasteur, passeio do lado oposto ao Hotel Rembrandt e antes de chegar à place de Faro, que confina com o Café de Paris e as traseiras do Hotel Minzah, NÃO perca a Librairie des Colones. Lá poderá encontrar os livros de Mrabet e Choukri, entre uma panóplia beat (Ira Cohen, por ex.) de arrasar o orçamento.
ResponderEliminarBom Tempo :)
...a mítica Librairie des Colonnes frequentada por Jean Genet e Bowles, onde quase naufragamos num Mediterrâneo de livros!
ResponderEliminarConhece? :)
ResponderEliminar...por casualidade - e não são as nossas vidas feitas de casualidades!? - há dias num encontro, diria, magrebino, alguém me falou dessa livraria. E, logo, passei por lá, por enquanto, apenas, "ao redor do meu quarto".
ResponderEliminarExacto - não distingo a «fronteira», nem a consubstancio -, mas a certa altura apanhei-me a «cruzarmo-nos» em Tânger. Por outro lado, a mudança da ilustração pela foto do hall do Continental, levou-me também a louvar-lhe a coragem por dormir «embalado» pelos camiões-frigorífico no porto. É hotel a evitar, só para as fotos, o tea mint não é mau.
ResponderEliminar...e Tetouan - gostei da medina -, conhece? Tem afluentes literários?
ResponderEliminarDe passagem, permaneceram lá mais tempo Genet e Choukri. É um Marrocos demasiado espanhol, ainda; recorda-me a cruenta "conquista" do califado independente que foi Chefchaouen. Pessoalmente, a entrada faz-se por Tânger, por Tin Ja!
ResponderEliminar...Tânger tem sido, também, a minha porta de entrada em Marrocos, onde já falhei algumas ocasiões de andar nos passos errantes dos escritores que por ali andaram. Com os voos directos Lisboa-Marrakech, que se iniciam brevemente, Tânger ficará mais longe, a menos que o apelo dessa pequena livraria que sugeriu aqui, seja mais forte e me faça fazer-me à estrada. Reincidir , então, em Marrakech. Mas, para não falhar de novo a ocasião, ir nos passos de quem?
ResponderEliminar...parece-me bem, mas o Mal de Montano, às vezes, leva-me a perseguir passos alheios e já quase apagados em "cidades nervosas".
ResponderEliminarCuidado ao explorar abismos... é preferível ter-se um dia(rio) volúvel :)
ResponderEliminarAbç