Leio no Guardian que, por ocasião do bicentenário do nascimento de Charles Dickens (7 de Fevereiro de 1812), o ministro da Cultura do governo inglês ofereceu, aleatoriamente, segundo o próprio, aos seus colegas, o primeiro ministro à cabeça, um livro do genial autor de "David Copperfield". A David Cameron ofereceu, talvez numa alusão, digo eu, à crise que o seu país e a Europa atravessam e que, costuma ouvir-se dizer com inconfessado cinismo, para além dos dramas que provoca também gera oportunidades, "Tempos Difíceis" e "Grandes Esperanças", que também seriam adequados para qualquer outro primeiro ministro europeu, embora me pareça que alguns deles, a começar pela senhora Merckel, não são muito dados a leituras literárias.
Comentando esta oferenda literária, numa crónica no Corriere della Sera, o escritor triestino Claudio Magris, com confessada intenção simbólica, diz-nos que não obstante a sua paixão absoluta por Os cadernos póstumos do clube Pickwick, não hesitaria em oferecer David Copperfield ao presidente do Conselho do governo de Itália, porque, em sua opinião, "não é um romance político", sendo, por isso, aquele cuja leitura melhor conviria a Mario Monti, cujo governo se discute "se é ou não político".
Ponho-me a pensar que livros de Dickens poderia, também, eu oferecer ao nosso primeiro ministro para ajudá-lo a melhorar o seu sentido de justiça social e a compreender melhor a infelicidade quotidiana que as medidas do seu governo vão gerando em sectores crescentes da nossa população. A Passos Coelho que, confessou que, à noite, em casa, quase nunca vê televisão, o que lhe dará vantagem para leitura, oferecer-lhe-ia, então, um dos livros oferecidos a Cameron, Tempos difíceis, onde Dickens critica com acidez as deploráveis condições de vida dos operários ingleses e o fosso abismal que existia entre a sua vida precária e o fausto obsceno dos ricos da Inglaterra vitoriana, enfim, algo que nos vai sendo familiar quando nos damos conta do desemprego que alastra e vai queimando as esperanças dos portugueses.
Mas, talvez, mais proveitoso para todos, fosse recomendar-lhe que transformasse algumas reuniões do Conselho de Ministros num "conselho de leitores" dos livros de Dickens para, assim, aprenderem com ele a observar o mundo dos mais desprotegidos que se vai desmoronando à sua volta. É que, para nossa desgraça, os difíceis tempos que vamos vivendo parecem-se, cada vez mais, com os seus Tempos difíceis. E David Copperfield, Contos de Natal, Oliver Twist ou Historia de duas cidades, entre muitos outras obras que Dickens nos legou, para além de clássicos imprescindíveis em qualquer biblioteca, mesmo em bibliotecas de ministros mais dados às letras bancárias do que às literárias, de repente voltaram a ficar actuais. Não poderiam ser personagens de Oliver Twist muitas crianças que hoje vão para as escolas sem tomar o pequeno-almoço porque os pais já não têm como alimentá-los por se encontrarem desempregados? E os despejados de suas casas por já não poderem pagar as hipotecas a que estavam sujeitos por terem ficado sem emprego não nos fazem pensar nos mesmos métodos do usurário Scrooge em Conto de Natal ou do avarento Uriah Heep em David Copperfield?
A quem se dirigia Dickens quando escreveu "Oh, economistas utilitários, comissários de realidades, elegantes incrédulos... se continuardes enchendo de pobres a vossa sociedade e não cultivardes neles a esperança, quando tiverdes conseguido arrancar das suas almas todo o idealismo e eles se encontrarem a sós com a sua vida vazia, a realidade converter-se-á num lobo e devorar-vos-á"? Aos usurários e agiotas do seu tempo ou, premonitoriamente, aos especuladores financeiros de hoje que criaram os tempos difíceis em que vamos vivendo, perante o olhar complacente dos economistas apaniguados neo-liberalismo? Que diriam Álvaro e Gaspar se lessem Dickens, hoje, em conselho de leitores?