25 de julho de 2011

As coisas mais simples


Dizem que o poeta tem seis sentidos: «os sentidos, com os seus traços lineares,/ são cinco como os quatro elementos mais/ o éter dos alquimistas. À volta deles anda o sexto/ que nasce da ideia do homem/ de que falta sempre qualquer coisa para atingir/ a perfeição».

O poeta habita uma casa na Mexilhoeira Grande. No quintal do poeta há uma figueira onde ele colhe, ao amanhecer, «os figos de S. João, os primeiros, que se colhem/ com um gesto só, ficando inteiros na mão». Na biblioteca do poeta há um livro de D. H. Lawrence onde este aconselha que se parta «um figo/ em quatro pedaços, para o comer, depois de deitar fora/ a casca». Mas o poeta que conhece «múltiplas formas de comer um figo» vai mais longe do que Lawrence e pensa também na figueira.

Primeiro, os figos - mas poderia ser «a mulher da fotografia avançando até ao fim do molhe», ou um homem encostado «à porta do palheiro», ou ainda, e sempre, a presença obsessiva do mar, do litoral, ou mesmo a visão das «ruas cheias de gente» de uma cidade qualquer - as coisas mais simples, portanto, como matéria impura que o poeta recolhe dos dias que passam. Depois, «a árvore» que lhe «agarra a alma com os seus ramos ásperos» que o poeta afasta, «a mão transformada num prolongamento da figueira». A mesma mão com que o poeta traça «o ângulo da frase», que mostra as coisas mais simples, assim como o seu avesso, ou a sua transcendência, porque «o que é simples também pode ser o/ seu contrário». A mesma matéria impura que se estilhaça em «mil pedaços pelo chão» como um espelho quebrado da realidade que irrompe no poema, literal e figuradamente, inscrevendo um paradigma narrativo através do qual o prosaico invade o poético. Agora a mão do poeta afasta os ramos da figueira e atravessa a «fronteira de vida rasgada pelas coisas». Dos mil pedaços em que o espelho partido reflecte as coisas mais simples, solta-se «um sopro metafísico» que empurra o poema ao encontro da sua substância mais profunda e o impede de ganhar «a ferrugem do tempo».

Na casa do poeta cresce o deslumbramento diante de coisas tão simples como os figos do quintal ou «a mulher da fotografia» - o quotidiano irrompendo furtivamente no poema para logo ser desfocado, transfigurado, através da alegoria, do devaneio. «O tronco da figueira/ [é agora um] corpo de mulher nua; […] e o figo que o poeta tem na mão [fá-lo] sentir os seus seios macios»; há também a intertextualidade que o poeta convoca desde a sua biblioteca numa busca da essencialidade poética – D. H. Lawrence, Shelley, os poetas gregos. Há um trabalho sobre a história; há navegações errantes, partidas e chegadas, regressos, há um «conceito de paisagem» e uma «imagem da cidade por entre as ruas cheias de gente».

Na casa da Mexilhoeira Grande, Nuno Júdice escreve um livro «à luz do apocalipse,/ as primeiras linhas do ocaso»: descrições, narrações, personagens, memórias, odes, uma carta. O livro chama-se As coisas mais simples e foi escrito com os cinco sentidos mais um, aquele que só os verdadeiros poetas têm.

Na curva da noite, arrumo as páginas do livro que o poeta escreveu. «Limito-me a deixar tudo no seu lugar» - a figueira, a fotografia, a biblioteca do poeta - «como se nunca aqui tivesse entrado, e volto a sair,/ pela abertura redonda, para a grande praia do poema» onde tudo recomeça.