Escrevia Eduardo Prado Coelho há alguns dias na sua crónica diária no Público que o que se passa neste momento na cultura portuguesa «não pode deixar de suscitar alguma angústia». Ou, procurando um registo mais neutro, «alguma perplexidade». Entre outros sinais da precariedade cultural actual, como o acentuado desinvestimento do Ministério da Cultura nas suas instituições (veja-se o que se passa com o Museu de Arte Antiga), denunciava, depois, o facto de o espaço dedicado aos problemas culturais ter vindo a restringir-se não só na comunicação social como nas várias instâncias em que a cultura costumava ser tratada, como mostrou a transfiguração do suplemento literário «Mil Folhas» num quase anódino «Ípsilon» (Público) e, mais grave ainda, na supressão do suplemento «6ª» (DN) sem qualquer justificação aos leitores. O mesmo se passa na televisão em geral, onde as telenovelas (as inanarráveis Floribella ou Morangos com Açucar) dominam a programação e as questões culturais se encontram completamente arredadas das opções dos responsáveis pela programação (regressará, ainda, o programa de José Francisco Viegas Escrita em dia, suspenso há meses?).
Contudo, a pertinência das observações de EPC sugere-me um comentário, agora, num outro sentido. Daí, talvez, também, a perplexidade de JPC. É que, hoje, a imagem das cidades ou mesmo de certas regiões do interior é cada vez mais marcada quer por estratégias de dotação intencional em equipamentos e infra-estruturas culturais quer por acontecimentos culturais (programação de regular de espectáculos de artes cénicas, de música, festivais, exposições, ciclos, mostras, etc), demonstrando a importância que as autarquias locais atribuem à cultura como estratégia de afirmação de uma imagem moderna e competitiva dos territórios. Ilustrações não faltam para corroborar esta convicção: por exemplo, o alargamento da rede de bibliotecas municipais, a criação de novos museus de território ou os novos teatros e centros culturais municipais que estão a transformar radicalmente a oferta cultural fora dos grandes centros, subtraindo as cidades que têm vindo a construir esses equipamentos à sua condição cultural periférica, constituindo-se como pólos de uma rede territorial, se bem que ainda informal, de criação e difusão cultural. Há dias referia-me aqui ao espectáculo de Ute Lemper a que assisti no Teatro Municipal de Faro, como exemplo das novas condições de possibilidade entretanto criadas fora de Lisboa e Porto. Poder-se-ia, ainda, falar do Centro Cultural de Vila Flor, em Guimarães ou do Teatro de Vila Real ou da Guarda ou de Aveiro, entre outros, para se aferir como algumas cidades portuguesas perseguem a modernidade cultural; em Portimão, encontram-se em construção um novo centro cultural polivalente e um museu, correspondendo a um investimento da autarquia de mais de vinte milhões de euros.
Ora, num momento em que a nova lei das finanças locais cria dificuldades acrescidas ao funcionamento dos novos equipamentos culturais, e ao mesmo tempo em que a comunicação social, por um lado, e o Estado, por outro, fazem passar a ideia de despesismo das autarquias - o que é verdade em muitos casos - importa registar que é nas periferias, e graças a alguma governação local, que vai acontecendo o essencial da cultura portuguesa, pelo menos aquilo que é capaz de produzir efeitos sociais relevantes, como seja a criação de novos públicos para a cultura e melhor participação cívica, para além de efeitos económicos por arrastamento devido à projecção exterior de uma imagem mais qualificada e moderna das cidades.
Mas tudo isto não passa nos jornais nem nas televisões que ignoram quase tudo o que acontece fora dos dois grandes centros a não ser que seja mais um caso de alegada corrupção ou um acontecimento trágico. Em Julho, abrirá em Portimão mais uma exposição World Press Photo e só depois no CCB, em Lisboa, mas o que será relatado nos media será o acontecimento da capital. Mas isto não é o mais grave. Há dias, o DN assumia sem qualquer constrangimento ético que o que está agora em causa é que os jornais vendam, até porque só assim poderão garantir a sua independência face às pressões políticas. Por isso, o que lhes interessa são as informações, e sobretudo as informações que as pessoas querem. O resto, a cultura, o pensamento, são coisas que só interessam a uma minoria de iniciados. E, segundo a nova atitude dos media, o que as pessoas querem é algo que se confunde com a pressa dos dias, porque no dia seguinte haverá mais do mesmo ou porque tudo é efémero e é preciso encontrar um novo assunto que faça vender mais amanhã. Ora a cultura e o pensamento são lentos por essência, por isso, há que bani-los dos jornais, da televisão, onde o que conta é apenas a imanência do quotidiano, mesmo que essa imanência seja manipulada como se sabe, em nome do aumento das vendas, das audiências. «O jornalismo come o pensamento», disse há muito tempo Karl Kraus. Nunca esta ideia foi mais actual do que hoje. E o Estado ao desinvestir na cultura come o quê? Talvez a felicidade que se pode encontrar num palco, num museu, numa exposição. Resta, por enquanto, a responsabilidade cultural de algumas autarquias para que a angústia e a perplexidade não nos devorem.
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