«Há episódios na vida
ditados por uma discreta lei que nos escapa», eis a frase com que
Pasavento-Vila-Matas pensava começar uma conferência em Sevilha sobre a relação
da realidade com a ficção e que, se este post fosse um ensaio sobre as
estranhas coincidências da vida, utilizaria como epígrafe, pois dessas
pequenas coincidências que irrompem no nosso quotidiano se
alimentam as ficções que cada um constrói para si. Auto-ficções,
portanto. Mas não, trata-se apenas de um post de momento sobre a arte de
desemalar livros comprados em viagem, na circunstância em Paris, e que trouxe
comigo numa mala cheia que lentamente fui desemalando e arrumando nas
prateleiras da minha biblioteca, isto é, subtraindo-os à desordem da mala
escancarada para lhes ir dando uma ordem próxima da do
coleccionador que é a do sentido que cada um daqueles livros convoca na sua
relação de vizinhança com os que já se encontram dispostos e no catálogo
de leituras que carrego comigo.
Sim, Walter Benjamin escreveu um artigo sobre isso, onde evoca, entre considerações sobre a arte de coleccionar livros, o momento que antecede o arrumar dos livros que, continuamente, em pesadas caixas, transportava consigo para os lugares para onde o conduziam as suas errâncias, voluntárias umas vezes, por motivos de estudos - Berlim, Friburgo, Munique, Marselha, Bergen, Ibiza -, forçadas outras, como a que o levaria a viver em Paris - um «lugar de trânsito» - até à dramática fuga para Lisboa onde nunca chegaria porque as suas asas de borboleta nocturna falhariam o último voo, incapazes de o levarem para fora daquele quarto de hotel, na pequena localidade de Port Bou, onde deixaria, pousada no chão, ao lado da mesa de cabeceira, a mala preta em que transportava os últimos «labirintos de tinta embebidos nos seus cadernos».
Onde deixara ele os seus livros, dos quais, com mágoa, tantas se vira apartado, para, depois, experimentar nos lugares da sua errância, a felicidade de novas aquisições, como aquele Enfer de la Bibliothèque National, organizado por Guillaume Apollinaire que encontrou num alfarrabista, em Paris? Que destino para os seus livros guardados por amigos, em Svendborg, e enviados, em 1938, para Paris, onde viriam, em 1940, a ser confiscados pela Gestapo e enviados para a Alemanha, onde, em 1945, seriam encontrados pelo Exército Vermelho que os enviaria para Moscovo, donde seriam, depois, transferidos, para a RDA? O que se terá perdido desta biblioteca que, sabe-se, pesava «469 quilos», mas cujo peso subjectivo atribuído pelo coleccionador ficará para sempre indeterminado?
Mas onde, até aqui neste post, essa coincidência de que falava no início e cuja lei nos escapa? É que, sem o saber, trouxe comigo de Paris, na minha mala de viagem, Je Déballe ma Bibliothèque - este o título da tradução francesa do texto de Walter Benjamin sobre o desencaixotar de livros e a arte de coleccionar -, sem, contudo, saber que o trazia, pois, alguém, na circunstância a minha mulher, o arrumou junto dos outros que, esses sim, comprara nas minhas deambulações pelas livrarias parisienses, em busca de outro livro de Benjamin, o das Passages, que acabaria por comprar na Arbre à Livres, da rue Moufettard. Tal como Benjamin, e como tantos de nós, enfermos do mal de Montano, também eu errara por Paris em busca de livros não editados por cá para preencher vazio na minha biblioteca e, no final, me encontrara diante do balcão de check-in temendo que a pesada mala ultrapassasse os vinte quilos permitidos para a bagagem de porão, não contando com o que já levava na bagagem de mão. É que - como desabafou Margarete Steffin, em 1934, em casa de Brecht, em Svendborg, na Dinamarca, quando recebeu, cinco ou seis caixas de livros postas em trânsito por Benjamin que pesavam «469 quilos», - «os livros são terrivelmente pesados». Os meus nem tanto, embora só tenha ficado descansado quando o mostrador da balança assinalou 17 quilos e 50, sendo que mais ou menos dois quilos seriam para atribuir às duas garrafas de Château Pavie, colheita de 1989, o excelente Saint-Émilion que me fora dado beber na dobra do ano, o que me colocaria perante um dilema de difícil solução caso tivesse de optar entre levar, por exemplo, os volumes de L´Homme Sans Qualités, de Robert Musil que, finalmente, comprara, cansado de esperar pela anunciada edição portuguesa, que começo a duvidar se algum dia sairá face às novas qualidades, mais mercantilistas, da editora que se propôs editar a obra completa do escritor austríaco.
Este, então, um post, sugerido por um livro que pesa não mais do que umas duzentas gramas - trata-se de uma edição de bolso -, mas cujo peso subjectivo já é imenso, pois trouxe-me a esta divagação sobre um Benjamin bibliófilo menos conhecido. Daí - porque não? - a pertinência desta espécie de metrologia da leitura que venho esboçando aqui, cujo alcance só nos apercebemos diante no derradeiro momento quando diante balcão de check-in somos confrontados com o peso a mais na mala cheia de livros. É que para além do peso subjectivo que atribuímos a cada livro e que determina as nossas escolhas, há, ainda, outro peso, o peso físico, que influencia a quantidade de livros a transportar na mala de viagem e, logo, as nossas opções de compra no estrangeiro. Ajudaria aqui, talvez, a existência de uma espécie de crítica quântica para avaliar a quantidade de livros adquirir para, posteriormente, levar na mala de viagem, «no sentido de uma endossocio-metrologia, associada à economia (porque o peso a mais no momento do check-in traduz-se no aumento do custo efectivo livros adquiridos), capaz de influenciar as nossas decisões no momento da compra. A mesma crítica teria ainda de ser capaz de, no caso de extravio da mala cheia de livros, determinar qual o valor da indemnização a conceder ao viajante-leitor, juntando elementos de cálculo que tivessem em conta a perturbação causada por tal perda. Disparatado. Claro. Mas que dizer, então, também, da crítica económico-literária, surgida na Universidade de Bolonha, na Cátedra de Semiótica, dirigida por Umberto Eco, que visa avaliar, por exemplo, um livro, através do cálculo dos custos associados à sua escrita, o que nos levaria a avaliar, por exemplo, o romance Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry, pela quantidade bebidas alcoólicas - setenta e sete bebidas diferentes - consumidas ao longo da alucinante narrativa. De acordo com uma equivalente lógica metrológica, quanto me teria custado L´Homme Sans Qualités, se tivesse que prescindir do Château Pavie, o que não aconteceria porque pagaria o excesso de peso das duas garrafas, ficando-me, assim, a bom preço quer o romance quer o vinho.
Posto este post, trata-se, agora, então, de começar a arrumar os livros nas prateleiras, sem constrangimentos metrológicos porque a madeira de que é feita a estante aguenta qualquer peso e medida física; veremos se, também, a restante substância de que são feitos os livros.
Sim, Walter Benjamin escreveu um artigo sobre isso, onde evoca, entre considerações sobre a arte de coleccionar livros, o momento que antecede o arrumar dos livros que, continuamente, em pesadas caixas, transportava consigo para os lugares para onde o conduziam as suas errâncias, voluntárias umas vezes, por motivos de estudos - Berlim, Friburgo, Munique, Marselha, Bergen, Ibiza -, forçadas outras, como a que o levaria a viver em Paris - um «lugar de trânsito» - até à dramática fuga para Lisboa onde nunca chegaria porque as suas asas de borboleta nocturna falhariam o último voo, incapazes de o levarem para fora daquele quarto de hotel, na pequena localidade de Port Bou, onde deixaria, pousada no chão, ao lado da mesa de cabeceira, a mala preta em que transportava os últimos «labirintos de tinta embebidos nos seus cadernos».
Onde deixara ele os seus livros, dos quais, com mágoa, tantas se vira apartado, para, depois, experimentar nos lugares da sua errância, a felicidade de novas aquisições, como aquele Enfer de la Bibliothèque National, organizado por Guillaume Apollinaire que encontrou num alfarrabista, em Paris? Que destino para os seus livros guardados por amigos, em Svendborg, e enviados, em 1938, para Paris, onde viriam, em 1940, a ser confiscados pela Gestapo e enviados para a Alemanha, onde, em 1945, seriam encontrados pelo Exército Vermelho que os enviaria para Moscovo, donde seriam, depois, transferidos, para a RDA? O que se terá perdido desta biblioteca que, sabe-se, pesava «469 quilos», mas cujo peso subjectivo atribuído pelo coleccionador ficará para sempre indeterminado?
Mas onde, até aqui neste post, essa coincidência de que falava no início e cuja lei nos escapa? É que, sem o saber, trouxe comigo de Paris, na minha mala de viagem, Je Déballe ma Bibliothèque - este o título da tradução francesa do texto de Walter Benjamin sobre o desencaixotar de livros e a arte de coleccionar -, sem, contudo, saber que o trazia, pois, alguém, na circunstância a minha mulher, o arrumou junto dos outros que, esses sim, comprara nas minhas deambulações pelas livrarias parisienses, em busca de outro livro de Benjamin, o das Passages, que acabaria por comprar na Arbre à Livres, da rue Moufettard. Tal como Benjamin, e como tantos de nós, enfermos do mal de Montano, também eu errara por Paris em busca de livros não editados por cá para preencher vazio na minha biblioteca e, no final, me encontrara diante do balcão de check-in temendo que a pesada mala ultrapassasse os vinte quilos permitidos para a bagagem de porão, não contando com o que já levava na bagagem de mão. É que - como desabafou Margarete Steffin, em 1934, em casa de Brecht, em Svendborg, na Dinamarca, quando recebeu, cinco ou seis caixas de livros postas em trânsito por Benjamin que pesavam «469 quilos», - «os livros são terrivelmente pesados». Os meus nem tanto, embora só tenha ficado descansado quando o mostrador da balança assinalou 17 quilos e 50, sendo que mais ou menos dois quilos seriam para atribuir às duas garrafas de Château Pavie, colheita de 1989, o excelente Saint-Émilion que me fora dado beber na dobra do ano, o que me colocaria perante um dilema de difícil solução caso tivesse de optar entre levar, por exemplo, os volumes de L´Homme Sans Qualités, de Robert Musil que, finalmente, comprara, cansado de esperar pela anunciada edição portuguesa, que começo a duvidar se algum dia sairá face às novas qualidades, mais mercantilistas, da editora que se propôs editar a obra completa do escritor austríaco.
Este, então, um post, sugerido por um livro que pesa não mais do que umas duzentas gramas - trata-se de uma edição de bolso -, mas cujo peso subjectivo já é imenso, pois trouxe-me a esta divagação sobre um Benjamin bibliófilo menos conhecido. Daí - porque não? - a pertinência desta espécie de metrologia da leitura que venho esboçando aqui, cujo alcance só nos apercebemos diante no derradeiro momento quando diante balcão de check-in somos confrontados com o peso a mais na mala cheia de livros. É que para além do peso subjectivo que atribuímos a cada livro e que determina as nossas escolhas, há, ainda, outro peso, o peso físico, que influencia a quantidade de livros a transportar na mala de viagem e, logo, as nossas opções de compra no estrangeiro. Ajudaria aqui, talvez, a existência de uma espécie de crítica quântica para avaliar a quantidade de livros adquirir para, posteriormente, levar na mala de viagem, «no sentido de uma endossocio-metrologia, associada à economia (porque o peso a mais no momento do check-in traduz-se no aumento do custo efectivo livros adquiridos), capaz de influenciar as nossas decisões no momento da compra. A mesma crítica teria ainda de ser capaz de, no caso de extravio da mala cheia de livros, determinar qual o valor da indemnização a conceder ao viajante-leitor, juntando elementos de cálculo que tivessem em conta a perturbação causada por tal perda. Disparatado. Claro. Mas que dizer, então, também, da crítica económico-literária, surgida na Universidade de Bolonha, na Cátedra de Semiótica, dirigida por Umberto Eco, que visa avaliar, por exemplo, um livro, através do cálculo dos custos associados à sua escrita, o que nos levaria a avaliar, por exemplo, o romance Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry, pela quantidade bebidas alcoólicas - setenta e sete bebidas diferentes - consumidas ao longo da alucinante narrativa. De acordo com uma equivalente lógica metrológica, quanto me teria custado L´Homme Sans Qualités, se tivesse que prescindir do Château Pavie, o que não aconteceria porque pagaria o excesso de peso das duas garrafas, ficando-me, assim, a bom preço quer o romance quer o vinho.
Posto este post, trata-se, agora, então, de começar a arrumar os livros nas prateleiras, sem constrangimentos metrológicos porque a madeira de que é feita a estante aguenta qualquer peso e medida física; veremos se, também, a restante substância de que são feitos os livros.
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