Nova Iorque, Denver, São Francisco, Nova Orleões, San Joaquin Valley, México, eis a cartografia de um romance onde se concentram as memórias de uma certa paisagem americana na ressaca do pós-guerra e no limiar da Guerra-Fria. Prosa fluída sobre a América, o jazz, a juventude, a liberdade, «On the Road», romance que afirmou Jack Kerouac como fundador da «beat generation», faz por estes dias cinquenta anos, mas ecoa ainda num certo imaginário que fomos construindo, muitos de nós, a partir da sua leitura. Também eu, que li aos dezassete anos esse livro, tive um tempo em que me fiz, não à estrada, mas aos comboios que levavam ao norte da Europa, fugindo de um país de adolescência e ingenuidade perdidas e onde até os beijos eram vigiados, perseguindo países artúricos que ficavam no final do trajecto. «Só pode ser o fim do mundo se avançarmos», já tinha lido em Rimbaud cujo apelo segui. Paris, Copenhaga, Estocolmo... uma errância europeia em vésperas de 74. Um único livro na mochila, precisamente o road book de Kerouac que lia enquanto esperava pelo próximo comboio sob o orvalho das manhãs frias, tendo como companheiros apenas Sal Paradise e Dean Moriarty, com quem andava à deriva.
Assim li Pela estrada fora, numa edição da Ulisseia que guardo, anotada a lápis. E embora depois tenha esquecido o livro, durante muito tempo a minha representação da América foi a que a Sal me ofereceu: os arranha-céus de Nova Iorque, o pôr do Sol vermelho atrás das montanhas, a imensidão do deserto, poços de petróleo na linha do horizonte, o vento embalando os campos de algodão, as águas barrentas do Mississippi, casas com jardim, beatas corroendo o chão de estações de comboio, o «odor devasso de uma grande cidade», São Francisco brilhando como uma jóia na escuridão da noite, jazz tocado às escondidas nos bares das cidades suburbanas...
«As únicas pessoas autênticas, para mim, são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que não bocejam, mas ardem, ardem, ardem como fabulosas grinaldas amarelas de fogo-de-artifício a explodir», confessa Kerouac no romance. Uma justificação para a aventura, para o desvario, para o desregramento dos sentidos que havia de levar à escrita do livro em 1951 (mas que seria publicado em 1957), num ritmo alucinante alimentado a café e ao som do jazz improvisado, como se fosse um Proust «só que mais rápido», como ele gostava de afirmar. O livro foi dactilografado num parágrafo único, sem pontuação num rolo de trinta e seis metros de comprimento que o próprio Kerouac manufacturou juntando 13 folhas de papel com três metros de comprimento cada uma, coladas com fita-cola e recortadas depois para que pudessem entrar na máquina. «Um único e magnífico parágrafo, de vários quarteirões, rodando, como a estrada em si», diria Allen Ginsberg.
Depois do sucesso e das polémicas suscitadas pelo livro, Kerouac deixou de ver a estrada, deambulando apenas pelos atalhos de uma América que perdera toda a inocência e donde, tal como os seus companheiros de estrada, também ele desertaria: «Perdoei toda a gente, desisti, embebedei-me», eis o destino que ele próprio já adivinhava para si. Morreu em 1969, aos 47 anos, talvez porque já não suportasse mais ser o ícone de uma geração onde não se revia, sem responder à pergunta feita no romance: «Para onde ides vós, América, no vosso automóvel a cintilar pela noite fora?», eis a pergunta a que Kerouac não soube responder. Nem nós saberemos, já que o torvelinho americano tudo parece arrastar num vórtice que enlouquece a própria história e não já chega fazermo-nos à estrada à procura de um tempo artúrico.
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