26 de dezembro de 2010

Tudo o que era sólido


Chegado que é o fim do ano, e em tempo de recomeços, do alto deste trapézio voador - observatório instável sobre as coisas cá em baixo - mais do que me precipitar no vazio do novo ano que aí vem, opto por uma reflexão, necessariamente breve, sobre este tempo falhado, numa espécie de tentativa de escandir o passado recente para, depois, imitando as personagem de Exploradores do abismo , de Enrique Vila-Matas, fazer como «as pessoas normais que, ao ver-se à beira do precipício fatal, adoptam a posição do expedicionário e sondam o horizonte plausível, indagando sobre o que pode haver fora daqui ou mais além dos nossos limites».

E o que vi desde o meu instável posto de observação foi o arrancar do véu da utopia neo-liberal e as consequências desastrosas da desregulação capitalista sobre as economias, ameaçando transformar o «apocalipse alegre» em que íamos vivendo numa queda sem fim que nos levará não se sabe, ainda, até onde. E eis-nos, então, agora, «de pé enfrentando o caos» que irrompeu como uma brecha no rochedo aparentemente sólido das nossas rotinas, ameaçando dissolver no ar tudo aquilo que era sólido, como antecipou Marx.

E enquanto, por ora, vamos caminhando sem mapa pelas estradas que fazemos -«e que o fazemos somente ao caminhar por elas» -, como escreveu Zygmunt Bauman, que fazem os políticos? Deixam-se ir na mesma operação de encobrimento que volta a servir os «mercados», assumindo novas patologias de posição, transitórias, etéreas que mais não fazem do que permitir a colonização do discurso político pelas mesmas retóricas neo-liberais que nos conduziram perigosamente para a beira do abismo. Outros, diante do perigo que sobrevém, e este vem sempre, armam-se em maquinistas da desgraça e vão maquinando soluções contra as vítimas de sempre.

E nós, em separado ou em simultâneo, puros hedonistas, hiperactivos voláteis, contempladores sensíveis, espectadores obscenos, que fazemos diante do torvelinho que vai arrastando o país (e o mundo), e nós com ele, para o vórtice fatal tão bem descrito por Edgar Allan Poe no conto «Uma descida ao Maelstrom»? Deixámo-nos ir, ainda, em «apocalipse alegre» - para utilizar a mesma fórmula que Hermann Broch usou para descrever o nihilismo da sociedade europeia de fim de século - que é, também, a forma como hoje nos vamos entregando ao nihilismo pós-moderno, falhando, portanto, como diria Walter Benjamin, a ocasião de as coisas não continuarem como antes.

Daí, então, que este balanço possa parecer, numa espécie de espelhismo relativamente aos acontecimentos recenseados, também ele, nihilista. E sê-lo-á quer no sentido em que persegue a incompletude, o falhado, a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», quer, ainda, por corresponder a um modo de escandir o tempo que só produz passado, que é uma nova forma de «doença histórica» que revoga o tempo breve da novidade. Mas ainda que nihilista face à consciência da generalização actual do alegre apocalipse, porque não ler, também, nesta recensão cronológica uma forma de rebelião contra o próprio nihilismo? O que dito de outro modo poderá traduzir-se na pergunta: como aceitar estes acontecimentos quando se pode sempre esperar que o tempo que vem aí traga outras possibilidades ao mundo, outras ocasiões de não deixar as coisas continuarem como antes? Que não seja mais um recomeço, mas antes um começo? Ou que, como desejava Paul Celan, nos deixe caminhar pelas estradas que fazemos afrontando «a crise» enquanto sinal da liberdade para responder ao perigo que sobrevém.

Este o balanço que importa perseguir, até porque só o escandir do tempo, recenseando a história não para arquivá-la, mas para nos confrontarmos com ela, levará a acreditar que um balanço pode ser algo mais do que uma cronologia ou uma patologia da «doença histórica» de que falava Nietzsche. E que, quem sabe, nalguma cesura aparentemente invisível na sucessão veloz de fins e de recomeços, sejamos capazes, ainda, de sondar os horizontes plausíveis do tempo actual, indagando sobre os acontecimentos que deveremos perseguir no futuro para superar as consequências dos acontecimentos passados, dando, finalmente, como bem tentou Walter Benjamin na sua solidão irredutível, «o salto de tigre no céu livre da história».

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