20 de novembro de 2007

Rio Congo acima



«Tudo me é antipático aqui» - escreve Jósep Teodor Konrad Korzenlowski numa carta enviada à sua tia Marguerite Paradowska, referindo-se à viagem que realizou em 1890, rio Congo acima até ao coração das trevas  - «os homens e as coisas, mas sobretudo os homens. Todos estes [...] mercadores de marfim de instintos sórdidos. Lamento ter vindo aqui. Lamento-o mesmo amargamente». Dessa subida iniciática do rio que lhe deixaria no corpo um sopro maligno, mas que também mudaria a sua alma - «Navegando pelo rio Congo, deixei de ser um animal para converter-me num escritor» - , contará, mais tarde, Conrad,  pela boca do expedicionário Marlow, seu alter ego no romance Coração das trevas, que publicará em 1902, depois de se ter feito escritor, precisamente, por causa dessa assombrosa viagem ao coração do mal, que nos legou como uma crónica daquela perversão levada a cabo no Congo, entre 1890 e 1900, pelo rei genocida Leopoldo II da Bélgica, originando a morte de quinhentas mil vítimas anónimas que não figuram nos relatórios oficiais. Uma experiência real que, escreveu Conrad, supera a ficção «com o propósito perfeitamente legítimo, creio eu, de trazê-la às mentes e ao coração dos leitores» e dar a «este tema sombrio uma sinistra ressonância, uma tonalidade própria, uma contínua vibração que ficará, essa a intenção, suspensa no ar e permanecerá gravada no ouvido depois de ter soado a última nota».

Por essa mesma altura, Roger de Casement, cônsul britânico em Boma, denunciava também a natureza e o volume desses crimes: «Quem viajar até ao curso superior do Congo e não tiver cegado de cobiça do dinheiro, verá desfilar diante dos seus olhos a agonia de um povo inteiro com todos os seus pormenores de rasgar o coração....». Denúncia que W. G. Sebald se encarregará de fazer ressoar nas páginas desse portentoso livro onde dá conta da consternação do mundo que é Os Anéis de Saturno, onde faz a contabilidade macabra desse reinado de terror: «Em muitas regiões do Congo, a população indígena foi totalmente dizimada pelo regime de trabalho forçado e os nativos que foram trazidos de outras partes de África ou de além-mar morreram em massa de disenteria, paludismo, varíola, beribéri, icterícia, fome, exaustão física e tuberculose».

 Esta a sinistra ressonância que ecoa no monólogo de Marlow que tem lugar num outro rio, o Tamisa, onde se pode pressentir «o lugar da cidade monstruosa, sinistramente marcado no céu, treva a germinar na luz do Sol, sinistro olhar debaixo das estrelas», como se aí residisse, ironicamente, a origem das trevas que o mundo civilizado derramou no coração de África «- E isto tudo, aqui [nas margens do Tamisa] - disse Marlow, de repente - foi um dos lugares selvagens do mundo», donde partiram «caçadores de ouro ou caçadores de glória», como Kurtz, o anjo exterminador que enlouquece absorvido pelos abismos da selva tropical, com um coração donde brota a mais primitiva crueldade, cujo drama se reflecte nas palavras pronunciadas pelo próprio antes de morrrer: «O horror! O horror!», e que constitui um dos gritos mais imponentes da literatura do século XX. Conta Marlow que, rio Congo acima, se vai arrastando o seu pequeno e decrépito vapor, numa atmosfera riscada pela morte e crueldade que ora se eleva da selva obscura, ora da rapacidade colonialista que ali se instalou para contaminar todos aqueles que atravessam a neblina cinzenta que esconde «a torrente deserta, um grande silêncio, a floresta impenetrável». Conta Marlow que o vapor vai percorrendo «um negro e incompreensível frémito», penetrando «mais e mais profundamente no coração das trevas», através de «intermináveis milhas de silêncio - que o arrastavam em direcção a Kurtz», com uma «inexplicável sensação de dor desesperada do clamor selvagem que [os] atingia da margem, atrás da cega brancura daquelas névoas».

A existência humana tomada como navegação encoberta, rio acima, capaz de naufragar a qualquer instante nas correntes súbitas do mal civilizacional, provocando uma hecatombe de cadáveres negros amontoados na história. O monólogo de Marlow, então, como uma relato em que o sombrio está tanto na orla do desconhecido como na alma dos que como «flibusteiros reles [apenas] querem arrancar tesouros às entranhas da terra» e se perdem na espessura do coração da trevas. Mas um coração que, embora remeta para um lugar geográfico e físico, o Congo, ou o continente negro que no mapa tem a forma de um coração gigante, constitui no romance de Conrad a metáfora das trevas que transportamos dentro de nós e que podemos derramar à nossa volta a qualquer momento sucumbindo ao «fascínio do abominável». Não sucumbiu Conrad a esse terrível fascínio, regressando da obscura corrente com a rapidez do coração das trevas, rio abaixo, à velocidade dupla da subida, numa espécie de refluxo do seu coração no mar inexorável do tempo, fazendo-se, depois, escritor na «cidade sepulcral», para que a contínua vibração da sua experiência permaneça gravada no ouvido depois de ter soado a última nota como um libelo desconstrucionista de um dos males do século passado, o colonialismo brutal cuja denuncia este livro actualiza, sempre que escutarmos Marlow.

Ontem voltei a adentrar-me no coração das trevas, para encontrar Kurtz, essa figura fantasmática que antecipa outras de Kafka ou de Beckett. Em duas horas de leitura subi e desci, rapidamente, o rio da infâmia colonial e na dobra da última página deste monólogo de assombrosa modernidade, deixei para trás definitivamente «caminho das águas, que leva aos confins da terra, corria escuro sob um céu sombrio - dir-se-ia que a levar-nos ao coração de infinitas trevas», as mesmas que foram pintadas da cor do sangue, no inquietante filme de Francis Ford Coppola, Apocalipse Now, inspirado na segunda parte do livro de Conrad que Agustina Bessa Luís elegeu como o livro da sua vida.

Por estes dias em que se evocam os cento e cinquenta anos do nascimento do escritor, em  1857, em Berdichev, uma pequena cidade polaca que integra hoje a Ucrânia - e se meteu, órfão, adolescente e marinheiro, num barco francês explorando os mares e, mais tarde, aos 23 anos, se fixar em Inglaterra e na sua marinha e atravessar águas exóticas -, reler talvez Lord Jim, esse romance marítimo que trata de outras iniquidades humanas.

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