18 de janeiro de 2011

A revolução do jasmim


A insurreição popular na Tunísia que fez desmoronar como um castelo de cartas o regime supostamente mais estável do Magreb - e onde o islamismo fora aniquilado - prossegue a um ritmo imparável, multiplicando-se por todo o país as manifestações exigindo a democracia plena e o julgamento dos responsáveis comprometidos com a ditadura de Ben Ali. Entretanto, nas capitais árabes alarmam-se as oligarquias temendo um efeito dominó sobre os seus próprios regimes.

Considerado pelas diplomacias da França, Itália e Espanha como um «modelo» para os países vizinhos e, recentemente, elogiado em termos enfáticos pelo FMI pela sua política económica, nada fazia prever, pelo menos para quem observa os acontecimentos desde o lado de cá do Mediterrâneo, que tão profunda mudança espreitava na aparente tranquilidade das ruas de Tunes.

Ainda não sabemos qual será o desfecho desta «admirável e vertiginosa aceleração da História», como resumiu o escritor tunisino Abdelwahab Melleb a revolução tunisina. Isto é, se ela será «colonizada» pelos sobreviventes do regime a troco de algumas reformas para que, depois, no essencial, nada mude ou mude muito pouco, ou se se evoluirá no sentido de uma verdadeira revolução democrática, o que a acontecer seria a primeira vez num país árabe desde as independências, já que anteriores revoltas, algumas com amplo apoio popular, como foi o caso de Nasser no Egipto e outras, com menos apoio popular, como no Iraque, em 1958 e na Líbia, em 1969, resultaram de golpes de estado. Na década de sessenta, os governos nacionalistas árabes fundaram as bases de um poder autoritário, visando perpectuar-se através de novas dinastias republicanas -como as de Sadam Husein, Hafez el Asad, Mubarak. Em Marrocos, as tentativas golpistas contra Hassan II vieram mostrar que a alternativa à monarquia alauíta seria uma ditadura militar ou um regime islâmico. E, na Argélia, nos anos noventa, a decadência do nacionalismo que teve como contra-ponto a confessionalização da conflitualidade social e a emergência do islamismo político conduziram o país a uma sangrenta guerra civil. A pretexto de manter afastada a ameaça islâmica, as aspirações democráticas dos independentistas argelinos encontram-se enredadas numa teia policial que tudo e todos controla.

Assim, a evolução da insurreição tunisina é, ainda, uma incógnita, tanto mais que, em consequência da repressão endémica, não existe actualmente na Tunísia qualquer força política com a capacidade de apresentar un programa de transformações estruturais para o país, nem uma liderança progressista que possa conseguir a adesão da maioria e catalisar a sua vontade de mudança, sendo, por isso, elevados os riscos de decepção, radicalização e violência. De resto, a situação de caos que se vai vivendo, por estes dias, no país, com saques a lojas e ataques a organismos oficiais e a moradias privadas, poderá mudar a atitude do exército a pretexto de repôr a ordem e a segurança ou para anular qualquer ameaça islâmica. Mas seja qual for a evolução dos acontecimentos, o exército não poderá furtar-se a desempenhar um papel determinante nesta transição.

Quanto à ameaça de islamização desta revolta, essa possiblidade (não obstante, doravante, ter de se levar em conta o até aqui discreto partido Ennahdha) não parece, por agora, iminente, quer porque as reivindicações da juventude tunisina insurrecta são totalmente laicizadas - exigem direitos cívicos e políticos e justiça social -, quer porque não existem no país movimentos islâmicos fortemente organizados, como acontece no Egipto (Irmãos Muçulmanos) ou em Marrocos (Justiça e Caridade).

O que estes acontecimentos, entretanto, vieram revelar, é que a experiência democrática do nacionalismo de Habib Bourguiba, destituído, em 1987, por um golpe palaciano pelo perpretado pelo agora deposto Ben Ali que, a pretexto de conter a ameaça islâmica, impôs a toda a sociedade um regime orweliano, é que a memória dessa experiência estava, apenas, adormecida, aguardando a ocasião propícia para manifestar-se. Importa reconhecer que desde a independência até aos anos oitenta, o governo de Bourguiba estabeleceu um Estado laico, aberto aos princípios e valores da modernidade, com um código de família ocidental, interditando a poligamia e o repúdio.

Ora isto e o facto de grande número de tunisinos terem acesso à Internet e às suas redes sociais e fóruns de discussão - como, por exemplo, o Nawaat, um blogue colectivo independente que teve um papel mobilizador na revolução em curso - e faz toda a diferença relativamente aos outros países magrebinos ajudam a explicar este movimento, de essência profundamente democrática, vindo de baixo e das classes médias, sem uma força política organizada. Segundo Benjamin Stora, histotiador do Magreb, «os elementos detonadores foram a recusa do exército em disparar sobre o povo e o apelo à greve da UGTT (União Geral dos Trabalhadores Tunisinos), o mais antigo sindicato do Magreb, fundado em 1924. Uma forma de oposição social, substituindo a oposição política, pôde asim funcionar».

Esperemos que a Europa saiba retirar as lições desta insurreição tunisina e estenda, agora, a mão aos democratas, contrariando a tendência histórica de - como denunciou Amin Malouf - continuar a «alienar, sobretudo, as elites modernistas, enquanto com as forças retrógradas sempre encontrou arranjos, terrenos de entendimento, convergências de interesses» (Um Mundo sem regras, 2009).

E que, por seu lado - como escreveu o professor universitário libanês Samir Kassir, num livro que lhe custaria a vida -, «os árabes abandonem o fantasma de um passado inigualável para encararem por fim, a sua história. E um dia, para lhe virem a ser fiéis» (Considerações sobre a desgraça árabe, 2004.

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