Contra as ressonâncias bíblicas que se ouvem por aí a propósito do livro de Saramago, outra forma de abordar «o teorema perfeito e terrível» de Deus.
Raramente falamos de Deus. E quando a ele nos referimos preferimos a metáfora, como se tudo o resto se descolasse do seu nome. E ainda menos falamos dessa questão «menor» de acreditar ou não acreditar em Deus, preferindo cruzar os braços contra a crença profunda em que nascemos. A verdade é que herdámos Deus mesmo antes de termos conhecido «as suas casas profundas». Na infância, Deus é, como escreveu Soares dos Passos, «aquele que povoa a imensidade». Depois, à medida que nos vamos adentrando no mundo, verificamos que caminhamos mais sós do que desejávamos. Por isso transformamos as perguntas nas respostas que procuramos, enquanto aguardamos pelo teorema da existência de Deus. E deixamo-nos arrastar pelo medo que cobre um mundo onde se apagaram as imagens que o paraíso já não devolve depois da «morte do criador» anunciada por Nietzsche. E desde aí, vivemos no medo de termos ficado órfãos para sempre, como se escrevêssemos um novo e desesperado Livro de Job. Há quem explique esta angústia como um «erro genético» que a todos afecta. Porque todos, crentes e agnósticos, estamos inelutavelmente comprometidos com a dúvida original, oscilando entre um ascetismo puro e uma transcendência luminosa. Talvez, por isso, uns e outros, em qualquer momento das nossas vidas, já tenhamos sentido a falta de Deus. E outras vezes escutado os seus passos, os restos da sua voz no nevoeiro que cobre o mundo. E isso apazigua o medo. E, depois, estranhos de passagem, continuamos o caminho, cépticos ainda, mas com menos frio no coração. Mas será essa estranheza algo que devemos ocultar? Ou, como diz Henry James, «é preciso acreditar na dúvida, porque é isso que faz a grandeza do homem».
Diante da dúvida, que futuro, então, para Deus, num mundo que, ao mesmo tempo que vai perdendo o seu sentido ético, assiste à «instrumentalização política da religião», traduzida nos múltiplos fundamentalismos religiosos que enlouquecem os homens. «Talvez [como escreveu Enrique Vila-Matas] as ideias casuais de tanta gente incerta [...], as inquietações de cada um, dos vivos e dos mortos. Talvez algum dia com fluido abstracto e impossível substancia, formem um Deus ou um tecido novo e com a luz de outra vida ocupem o mundo».
Entretanto, «nas suas casas profundas Deus aguarda que se demonstre/ o teorema perfeito/ e terrível» [Herberto Helder, Última Ciência].
Deus, aquele que povoa a imensidade ... e o silêncio. E apazigua a angústia. E pode fazer da morte um momento banal (se se tratar da nossa, não a dos outros que nos dói sempre mais).
ResponderEliminarÉ verdade que oscilamos entre o ascetismo puro e a negação. A dúvida é já um estado de pré-crença, uma disponibilidade para acreditar que nos conforta, como se, sendo amigos de Deus ele não nos possa negar uma benção especial ou a redenção...
Saramago tem medo de Deus e está desafiá-lo racionalmente, mas sem argumentos. Mais valia que se calasse e escrevesse, apenas, pois há certas questões no domínio da metafísica que são incompatíveis com uma intencionalidade mercantil.
Há pouco ouvi Judite de Sousa, na "Grande Entrevista", perguntar a António Lobo Antunes se acreditava em Deus, ao que este respondeu, citando um poema húngaro do século XVII: «Na cova do lobo não há ateus».
ResponderEliminarDeus é assunto para deleite de confabulações.
ResponderEliminarPena que este assunto reserva tantos que atêm a totalmente a negar outros a totalmente a aceitar.
Parto do seguinte princípio: Tudo que toma consciencia toma-se autonomia e torna-se doador desta independente de querer ou não.
deste princípio, aprimoramos Deus. Todos. Deus hoje é bem mais complexo que oDeus de Abrão.
Não no sentido imaginativo, mas no sentido junguiano poderia dizer, O homem também é construtor de Deus...
Entre uma economia da salvação e uma teologia da negação, também eu, misto de crente e agnóstico,escolho ir por aí, sem argumentos, acreditando na dúvida. E sinto-me tranquilo.
ResponderEliminara (in)tranquilidade das Naus.
ResponderEliminar...só para quem sabe navegar!
faço-me também navegante.
...também eu, ainda que, às vezes, à deriva.
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