10 de março de 2012

A tentação do fracasso


A partir da vida fracassada de um jovem com ar de Dylan, um espectro do passado, alguns fantasmas do futuro e um Arquivo Geral do Fracasso, Enrique Vila-Matas, regressa de Dublin - para onde tinha dada o salto inglês, melhor seria dizer irlandês - a Barcelona, ao seu próprio bairro nas imediações da Pasaje Pellicer ("Na realidade quando me mudei para este bairro, vivi indirectamente esta história. Dediquei-me, por isso, a contá-la, modificando apenas alguns pormenores. Real na sua essência, como a própria vida", confessa em entrevista à revista El Cultural) para nos brindar com Aire de Dylan (numa evocação à ampôla de vidro com ar de Paris que Duchamp construiu para oferecer a uns amigos e à qual deu o nome de Air de Paris) que a Seix Barral lançará na próxima 3ª feira em Espanha e a Teodolito, a nova editora de Veiga Ferreira, publicará em Portugal, parece, ainda este mês.

Segundo o editor, um romance em que Vila-Matas convoca os seus melhores argumentos retóricos com humor, ironia e sarcasmo para, através de uma intriga negra, com assassinos e assassinatos, dirigir uma crítica à pós-modernidade. E um romance, ainda, cuja história "dialoga - segundo o próprio autor - com o jovem que escreveu História abreviada da literatura portátil que girava em torno de uma sociedade secreta". Uma sociedade secreta preguiçosa, que se contenta em "ter uma ideia por dia", mas sem nunca levá-la a cabo para - digo eu - não fracassar na sua tentação de fracassar.

"Alguns entram muito tarde no teatro da vida, mas quando o fazem parece que entram sem rédea e directamente para o final da obra", assim arranca Aire de Dylan. Outras frases soltas que me chegaram, como "O fracasso é prefiguração natural do escritor", antecipam a ideia da tentação do fracasso que parece alimentar a vida do protagonista do romance, o jovem Vilnius, conhecido como o pequeno Dylan, mistura do cantor americano com o poeta Rimbaud.

Segundo a sinopse do editor, um prolífico escritor vai a um congresso, para o qual recebeu convite, com alguma estranheza e uma certa inquietação. Nesse congresso, participa, em substituição de Juan Lancastre, uma espécie de "Hamlet fitzgeraldiano pós-moderno", o seu filho Vilnius, um jovem criativo com um certo ar de Dylan, que tem como objectivo último da sua vida atingir o mais total e absoluto fracasso, tema que preside ao invulgar congresso. Mas fracassar absolutamente não é tarefa fácil, como, imagino, se verá no livro.

A partir desse extravagante congresso literário sobre o fracasso, acompanhamos a história de Vilnius que acredita que se encontra possuído pelo espectro do pai. Como ainda não li o livro, ponho-me a imaginar que Vilnius tentará imitar Lancastre, cultivando a impostura de viver como se fosse ele. E imagino que Vilnius fracassará no empenho de levar por diante uma vida emprestada, fracassada. E que no seu duplo fracasso, o de querer fracassar mas fracassar no empenho de fracassar, Vilnius se assemelhará ao escrevente Bartleby - o personagem do conto homónimo de Herman Melville - na sua fracassada tentativa de escrever "um decálogo da não acção".

Ao mesmo tempo, acompanhamos o escritor que, por sua vez, deseja pôr um ponto final na sua já vasta obra e atingir o silêncio total e definitivo. "Tinha decidido secretamente mesmo antes de conhecê-los, confessei-o a Débora, não escrever nenhum outro livro, pois estava muito arrependido, quase magoado, com todos os que tinha publicado durante a minha vida" (Aire de Dylan). Enfim, sucumbir perante o síndroma de Bartleby essa "pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre" que Vila-Matas já recenseara nesse "caderno de notas de pé de página" a que deu o nome de Bartleby & Companhia (Assírio & Alvim). Fascinado por Vilnius que terá escrito, o escritor, e Vila-Matas, segue-lhe o percurso e observa-lhe os estratagemas para chegar ao fracasso.

Ponho-me, então, a imaginar que com a esta improvável união, rodeados e isolados por uma teia de personagens, um e outro se sentirão cada vez mais tentados pelo fracasso, o que será um êxito. Este paradoxo fará, imagino, que a distinção entre fracasso e sucesso resulte em algo em que não nos devemos fiar. Tal como também não será de fiar esta minha tentativa de escrever esta nota de pé de página sobre um livro que ainda não li mas cujo desejo de ler me vai fazendo sucumbir à tentação do fracasso de o escrever para, assim, poder antecipar a sua leitura, no que, certamente, como bom escrevente bartlebiano fracassarei.

Levado pela tentação do fracasso de escrever, seguindo os preceitos avançados por Pierre Bayard em Comment parler des livres que l'on n'a pas lus?, sobre um livro que não li, nem poderia ter lido porque ainda não foi publicado, mas não querendo fracassar nesse empenho, encontro no Diário Volúvel algo com um certo ar de Dylan. "O mundo é uma ilusão, um cenário onde todos temos frases para dizer e um papel  para representar. Certa classe de actores, ao constatar que fazem parte de uma peça, continuarão a representá-la apesar de tudo; outra classe de actores, escandalizados com a descoberta de estarem participando numa impostura, tratarão de sair de cena e da peça. Os segundos enganam-se. Enganam-se porque fora do teatro não há nada, nenhuma vida alternativa que possamos incorporar. O espectáculo, tal como o teatro kafkiano de Oklahoma, é, pode dizer-se, o único que está em exibição. E a única coisa que alguém pode fazer é continuar representando o seu papel, ainda que talvez com uma nova consciência, uma consciência cómica.”

Restará saber (e isso poderia ser a tese do romance se eu me fizesse passar por Vila-Matas) -, mas essa resposta deixarei que seja o autor a dá-la, afinal o romance é seu e eu não pretendo continuar a imitar Vilnius, ele tomando o lugar de Lancastre no congresso sobre o fracasso, e eu tomando o lugar de Vila-Matas na escrita deste livro - se neste teatro kafkiano de Oklahoma, o prolífico escritor, numa atitude semelhante à dos personagens de Roberto Arlt, se sentirá, no final do romance, livre de qualquer sentimento de culpa ou responsabilidade relativamente ao seu fracasso literário, exibindo-se perante os espectadores ou se, ao contrário dos fracassados exibicionistas arltianos, adoptará a atitude de Oblomov - o personagem do romance homónimo do escritor russo Ivan Goncharov -, um jovem desamparado aristocrata incapaz de levar a sua vida por diante, inspirando aqueles "jovens poéticos e doentes, notórios Oblomovs, perdidos no vazio cultural do seu mundo e com tendência a ser, até insuspeitados limites, preguiçosos e avessos ao esforço" (Aire de Dylan). Nisto reside "a alma moderna, o ar de Dylan, a essência da nossa época" (Aire de Dylan).

Dir-me-ia Vila-Matas, se lesse este texto, que fracassei na minha tentação de escrever sobre Aire de Dylan sem o ter lido, já que houve aqui uma certa impostura da minha parte ao citar, e glosar, o que nunca poderia ter citado, e glosado, devido à evidência física de não possuir o livro. Como, então terei sucumbido à tentação de escrever sobre um livro que não li? Ficando, esta noite, quieto em casa como bom discípulo de Kafka que, numa noite, em Praga, escreveu "Não é necessário que saias de casa. Fica à tua mesa e escuta. Nem sequer escutes...", apanha apenas o ar de Vila-Matas.

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