4 de maio de 2010

Vulcanografias


Por estes dias em que o vulcão islandês Sneffels volta a expelir cinzas tóxicas sobre os céus da Europa, depois da Islândia já ter, antes, disseminado matéria financeira tóxica sobre os mercados, mostrando-se, assim - seja pela via da vulcanologia seja pela via da economia -, que continua válido o enigmático aforismo de Marx segundo o qual tudo o que é sólido se dissolve no ar, ou que, ironicamente, contrariando Heidegger, a técnica sucumbiu diante das vertiginosas forças tectónicas, provocando o caos nas ligações aéreas à escala planetária, como não revisitar alguns livros abissais da minha biblioteca?

Livros aparentemente adormecidos, mas que escondem vulcões tão reais como o Sneffels, e outros inventados, mais estes do que aqueles, para onde me deixei arrastar por certa vertigem da leitura, própria, aliás, de quem lê procurando encontrar à beira do abismo passagens, fendas que dão para mundos paralelos de «uma trama mais subtil, uma teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos», como escreveu esse expedicionário de vulcões inventados, Enrique Vila-Matas, em Exploradores do abismo. E onde, então, melhor, encontrar essas estreitas passagens se não à beira desses precipícios, reais e inventados, que nos atraem para uma queda sem fim?

Voltar a descer, então, pelo Sneffels, essa «boca do mundo» aberta na península Snaefellsnes, na Islandia, que me foi revelada, em noites de infância extrema, por Júlio Verne em Viagem ao centro da terra, e por onde, perigosamente, se escapuliram embriagados pela voluptuosidade das alturas , o professor e geólogo Otto Lindenbrock, o seu sobrinho Axel e Hans, o atlético guia islandês, e eu com eles, num périplo de cinco mil quilómetros de inarráveis perigos e irremediáveis fascínios, através das ocas entranhas e do mar interior do centro da terra, para regressarmos, depois, ao outro lado do mundo, numa nuvem de cinzas e gazes tóxicos, expelidos pela cratera incandescente do Stromboli.

Ali, de pé frente ao inafrontável - experimentando o mesmo sentimento de vertigem que levou Axel a pensar que não havia «nada mais inebriante que a atracção do abismo» -, eu não sabia, ainda, que a força gravitacional que me arrastava num delírio onírico de leitura precoce se metamorfosearia na vertigem que Edgar Allan Poe descreveu no conto «Uma descida ao Maelstrom», cuja imagem de pendor nihilista tão bem ilustra o vórtice da história enlouquecida atraída irresistivelmente pelo abismo, como reflexiona Bragança de Miranda em Queda sem fim (Vega, 2006).

E ainda menos suspeitava eu que, anos depois, haveria de ver Malcolm Lowry, o «cônsul da embriaguez e dos vulcões», como o descreveu o poeta José Agostinho Baptista, ser engolido em Cuernavaca, México, pelos abismos do mezcal brotando Debaixo do vulcão mais inventado da minha biblioteca, ainda que, de entre eles, o Popocatepetl seja o único que eu, sentado de frente para ele na esplanada Las Mañanitas, bebendo uma coronita muito fresca, avistei, resplandecente de neve, num Dia de los Muertos, enquanto procurava decifrar os admiráveis abismos de festa e alucinação para onde se atirou, numa queda sem fim, aquele inglês sonhador quando se viu à beira do precipício.

E nesta périplo de vulcões, reais e inventados - e este agora roubado de uma página do Diário Volúvel de Enrique Vila-Matas, -, vejo agora emergir da minha biblioteca o Tängri, espécie de montanha mágica criada por Julien Gracq nesse romance absoluto que é A costa de Sirtes [Vega, 1998], e onde Vila-Matas se deixa ir caindo nas profundezas do Tangri para nos oferecer uma lição de vulcões: «no fundo, os vulcões, reais ou inventados, não são mais do que a busca da origem, da génese da vida e da arte. (...) Um vulcão é a origem e é também geometria da erupção, mistura de atracção e repulsa».

Que fazer, então, por estes dias de revolta dos vulcões islandeses cujas poeiras acinzentam os céus da Europa e ameaçam as rotas aéreas? E que fazer diante dos outros abismos reais que escapando à vulcanografia inventada ameaçam arrastar-nos no seu vórtice numa queda sem fim? Talvez fazer como aqueles exploradores vilamatianos que «ao verem-se à beira do precipício fatal, adoptam a posição do expedicionário e sondam o horizonte plausivel, indagando sobre o que pode haver fora daqui, ou mais além dos nossos limites».

Não ter, portanto, medo de cair, porque talvez tudo dependa do modo como se cai. Porque se pode cair numa queda sem fim ou cair para a seguir nos elevarmos melhor. Tudo, então, uma arte da queda, das inclinações, do clinamen.

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