Será possível, ainda, a grandeza literária? Ante a decadência implacável da ambição literária, a convergente ascensão de desengano, a verborreia e a crueldade insensível como assuntos normativos da ficção ?... interrogava-se Susan Sontag a propósito da obra de W. G. Sebald. Uma literatura capaz de exprimir a consternação do mundo tão cheio de falsas representações, tão fútil?
Acabo de ler Os anéis de Saturno e parece-me que sim, que é possível, apesar de tudo, uma literatura sedimentada como uma paisagem cuja topografia nos sacode, nos interpela, propondo-nos uma meditação sobre as ruínas que vamos deixando para trás. Essa a paisagem, literal e metafórica, que percorremos com Sebald em Os anéis de saturno, livro inclassificável (romance, ensaio-diário de viagem, autobiografia, enciclopédia ou tudo isso ao mesmo tempo, encadeado?...) sobre a melancolia do mundo. Meditação entre ruínas, alternada com breves ensaios sobre biografias obscuras, sobre o ciclo de vida dos arenques, a criação de bichos da seda, a natureza das guerras, a destruição das grandes florestas... eis alguns acidentes topográficos de uma cartografia que oscila entre a realidade e a ficção, rejeitando a normatividade temática, moral e literária.
Sebald, o narrador a quem o autor empresta o seu nome, é uma construção literária do promeneur solitaire, romântico, que empreende uma viagem como intromissão, como indagação através de uma paisagem real, com nomes, toponímias, datas, ilustrações que o narrador convoca criando um extraordinário efeito de verosimilhança: Em Agosto de 1992, quando os dias do Cão estavam a chegar ao fim, empreendi uma viagem a pé pelo condado de Suffolk, leste de Inglaterra, na esperança de pôr fim ao vazio que me invade sempre que termino um trabalho de fôlego.
Reconhecemos aqui um processo narrativo semelhante ao utilizado pelo narrador-autor das Viagens na minha terra. Porém, enquanto em Almeida Garrett a viagem nos aproximava da natureza romântica, em Sebald ela não é mais do que um artifício para nos desvendar segredos de vidas obscuras: especulando se Sir Thomas Browne, na sua visita à Holanda, teria assistido à lição de anatomia pintada por Rembrandt; recordando um interlúdio romântico de Chateaubriand durante o seu exílio em Inglaterra; evocando os esforços de Roger de Casement para denunciar a infâmia do colonialismo belga no Congo; narrando as primeiras aventuras no mar de Joseph Conrad... E, sobretudo, para mostrar a devastação contemporânea da natureza (desaparece um bosque atrás do outro, as valas na orla dos caminhos onde a seu tempo floresciam primaveras e violetas são lavradas e terraplenadas... ); ou os escombros da guerra (vêem-se cidades francesas reduzidas a escombros e cinzas, cadáveres a apodrecer na terra de ninguém entre trincheiras, arvoredo abatido pelo fogo de artilharia, navios de guerra afundando-se no meio de nuvens negras de petróleo, colunas militares em marcha, intermináveis torrentes de fugitivos e zepelins rachados...), ou a desolação do mundo (nesse lugar de armazenagem não vejo uma só pessoa, só tijolos, milhões de tijolos...), na tentativa inútil de pôr fim ao vazio que o invade.
Ao vazio, afinal, deixado pelo lado sombrio de uma modernidade que esqueceu as promessas para nos oferecer, somente, a paisagem em ruínas por onde o autor deambula procurando a redenção do mundo através da memória. A escrita, portanto, como única maneira de [se] defender das recordações que tantas vezes e tão inesperadamente [o] afectam e que aqui se mostram através de uma visão fatalista da História, como tragédia humana roçando o abismo, que um caminhante solitário nos dá a ver à hora do crepúsculo... sob um céu cor de tinta que cobre as nossas peregrinações pessoais através do litoral da própria melancolia onde se amontoam, também, recordações, sonhos, genealogias, naufrágios que Sebald faz libertar.
Acabo de ler Os anéis de Saturno e parece-me que sim, que é possível, apesar de tudo, uma literatura sedimentada como uma paisagem cuja topografia nos sacode, nos interpela, propondo-nos uma meditação sobre as ruínas que vamos deixando para trás. Essa a paisagem, literal e metafórica, que percorremos com Sebald em Os anéis de saturno, livro inclassificável (romance, ensaio-diário de viagem, autobiografia, enciclopédia ou tudo isso ao mesmo tempo, encadeado?...) sobre a melancolia do mundo. Meditação entre ruínas, alternada com breves ensaios sobre biografias obscuras, sobre o ciclo de vida dos arenques, a criação de bichos da seda, a natureza das guerras, a destruição das grandes florestas... eis alguns acidentes topográficos de uma cartografia que oscila entre a realidade e a ficção, rejeitando a normatividade temática, moral e literária.
Sebald, o narrador a quem o autor empresta o seu nome, é uma construção literária do promeneur solitaire, romântico, que empreende uma viagem como intromissão, como indagação através de uma paisagem real, com nomes, toponímias, datas, ilustrações que o narrador convoca criando um extraordinário efeito de verosimilhança: Em Agosto de 1992, quando os dias do Cão estavam a chegar ao fim, empreendi uma viagem a pé pelo condado de Suffolk, leste de Inglaterra, na esperança de pôr fim ao vazio que me invade sempre que termino um trabalho de fôlego.
Reconhecemos aqui um processo narrativo semelhante ao utilizado pelo narrador-autor das Viagens na minha terra. Porém, enquanto em Almeida Garrett a viagem nos aproximava da natureza romântica, em Sebald ela não é mais do que um artifício para nos desvendar segredos de vidas obscuras: especulando se Sir Thomas Browne, na sua visita à Holanda, teria assistido à lição de anatomia pintada por Rembrandt; recordando um interlúdio romântico de Chateaubriand durante o seu exílio em Inglaterra; evocando os esforços de Roger de Casement para denunciar a infâmia do colonialismo belga no Congo; narrando as primeiras aventuras no mar de Joseph Conrad... E, sobretudo, para mostrar a devastação contemporânea da natureza (desaparece um bosque atrás do outro, as valas na orla dos caminhos onde a seu tempo floresciam primaveras e violetas são lavradas e terraplenadas... ); ou os escombros da guerra (vêem-se cidades francesas reduzidas a escombros e cinzas, cadáveres a apodrecer na terra de ninguém entre trincheiras, arvoredo abatido pelo fogo de artilharia, navios de guerra afundando-se no meio de nuvens negras de petróleo, colunas militares em marcha, intermináveis torrentes de fugitivos e zepelins rachados...), ou a desolação do mundo (nesse lugar de armazenagem não vejo uma só pessoa, só tijolos, milhões de tijolos...), na tentativa inútil de pôr fim ao vazio que o invade.
Ao vazio, afinal, deixado pelo lado sombrio de uma modernidade que esqueceu as promessas para nos oferecer, somente, a paisagem em ruínas por onde o autor deambula procurando a redenção do mundo através da memória. A escrita, portanto, como única maneira de [se] defender das recordações que tantas vezes e tão inesperadamente [o] afectam e que aqui se mostram através de uma visão fatalista da História, como tragédia humana roçando o abismo, que um caminhante solitário nos dá a ver à hora do crepúsculo... sob um céu cor de tinta que cobre as nossas peregrinações pessoais através do litoral da própria melancolia onde se amontoam, também, recordações, sonhos, genealogias, naufrágios que Sebald faz libertar.
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