Há dias, contava-me Gonçalo M. Tavares que num encontro com leitores alguém teria dito que ele era louco, pois só um louco escreveria histórias como as dos seus livros negros. Com a lucidez que se lhe conhece, Gonçalo esclareceu que ele era um e quem escreve-narra nos seus romances é um outro que não se confunde com o autor. Ora se isto é verdade no campo da construção romanesca em que narrador e personagens são, como dizia Barthes, pessoas de papel, já não o será no campo das ideias que atravessam os seus livros sempre escritos num registo teórico, ora reflexivo, como acontece nos livros negros que vão povoando O Reino, ora lúdico, como na série o Bairro.
Gonçalo M. Tavares não constrói uma biografia de ocultação do sujeito atrás da sua obra, nem pratica o desaparecimento do autor como, por exemplo, Enrique Vila-Matas, um dos seus escritores preferidos, mas isso não o impede de ir construindo a mais profícua genealogia literária contemporânea que vai povoando de inquilinos literários o seu Bairro (os senhores Valéry, Brecht, Henri, Juarroz, Kraus, Calvino, Walser... numa clara evocação, sobretudo, dos ambientes desses escritores, que tanto podem ser lidos pelo mais cerebral dos leitores como por crianças), nem de nos arrastar pelas paisagens mais sombrias da natureza humana, pelo Reino negro da violência, da crueldade, da guerra [Um homem Klaus Klump (2003); A máquina de Joseph Walser (2004); Jerusalém (2005).
Confesso que cheguei tarde a Gonçalo M. Tavares de quem comecei por ler alguns senhores, (tendo há dias tido o privilégio de assistir, com o escritor, a um ensaio de uma peça de teatro que uma companhia de Portimão [A Gaveta] está a preparar a partir de Valéry e Kraus, com apresentação marcada para Maio, no Teatro da Trindade). E não será fácil seguir a passada editorial de um autor que escreve mais depressa do que os leitores serão capazes de ler (mais de duas dezenas de livros publicados em cinco anos). Para mais, um autor que não se oculta, mas antes se dá a ver através de uma construção que poderíamos classificar como heteronímica, mas que rejeita a retórica metaliterária associada que, noutro sentido, tão bem foi representada por Pessoa.
Desses heterónimos, conheci a semana passada aquele que narra Jerusalém e foi como se ele me tivesse dado um murro no estômago, tal a intensidade dramática de uma escrita que oscila entre o romance, o ensaio e o teatro, que dá forma a uma espécie de catálogo do sofrimento humano, feito de doenças, violências, medos e loucuras. No hospício Georg Rosenberg, ao contrário de Herisau já aqui evocado, onde viveu Robert Walser durante 23 anos, não há redenção possível, mesmo que um dia os pacientes sejam dados como curados. Rosenberg é uma espécie de teatro da crueldade, concentrionário, onde enlouquecem quer os que estão dentro do hospício quer os que se julgam no mundo exterior: Theodor, médico e investigador; Mylia, sua esposa, esquisofrénica; Ernst, outro louco; Hanna, prostituta; Hinnerk, ex-combatente, alucinado; Kass, filho de Mylia e Ernst, doente, inadaptada... sucedem-se a um ritmo cortante, áspero, no palco macabro deste teatro grotesco.
Não há, portanto, aqui, qualquer visão romântica do manicómio como refúgio, nem da loucura como estádio de criatividade, como, num certo sentido, interpretou Elias Canetti. Ao contrário, o hospício Georg Rosenberg é um simulacro foucaultiano do mundo exterior, vigiado, controlado e punido, onde aqueles que ousam contrariar a ordem estabelecida não têm qualquer escapatória. Para onde deve o homem dirigir o seu pensamento para não ser considerado louco?, eis o problema colocado pelo doutor Gomperz e sobre o qual agora Theodor Busbeck tenta reflectir: «Estava ali, não apenas um problema terapêutico, dirigido a loucos, mas um problema moral, básico, que dizia respeito a todos os homens. Um homem moral em que assuntos deve pensar? E em que assuntos não deve pensar? Claro que a Igreja já tentara responder a esta pergunta e muito antes dos médicos que vigiam os loucos, já os padres dirigiam a sua vigilância e o seu juízo aos pensamentos, e não apenas às acções humanas. Não bastava responder moralmente à pergunta: que actos devo fazer? Faltava responder com a mesma consistência: que pensamentos devo ter? O doutor Gomperz possuía, assim, da loucura - embora não se atravesse a expressá-lo - uma imagem associada à imoralidade: louco é o que age imoralmente e louco ainda é o que agindo moralmente pensa de modo imoral. A loucura seria, assim, uma pura falta de ética, momentânea, porventura, e portanto curável, ou definitiva, eterna, e portanto: incurável» (págs. 106-107).
À disciplina imposta, corresponderia, então, a normalidade, tornando-se moral a restante imoralidade praticada em nome da moralidade, lembrando a tese de Arno Gruen: «Faço uma reflexão sobre o que quer dizer responsabilidade e confronto-a com o que normalmente é considerado a sua medida: o dever e a obediência [...] só que impede, assim, a aproximação a uma patologia menos evidente e mais perigosa, de cujo método próprio a dissimulação faz parte: a loucura que se encobre a si própria e se mascara de saúde mental. Essa não tem dificuldade em ocultar-se num mundo em que o engano e o ardil são comportamentos adequados à realidade» [Arno Gruen, A loucura da normalidade, Assírio & Alvim, 1995]. Esta, parece-me ser a primeira tese deste romance-ensaio.
A segunda tese será a da «história do horror como substância determinante da História» (pág. 53), defendida por Theodor Busbeck nos cinco grossos volumes em que materializou a sua investigação, no que se aproxima, por sua vez, da tese defendida por Anthony Giddens, antes do seu manequísmo pós-setembrista, sobre o lado sombrio da modernidade: «Na esteira da ascensão do fascismo, do holocausto, do estalinismo e de outros episódios da história do século XX, podemos ver que a possibilidade do totalitarismo está contida dentro dos parâmetros institucioinais da modernidade e não excluída por eles» [As consequências da modernidade, Anthony Giddens, Celta, 1992].
Uma e outra tese - que se complementam - reforçam, então, a tentação ensaística, e por isso mesmo, subjectiva e implicativa, do autor na construção da trama deste livro de difícil classificação, espécie de romance-ensaio que interroga o nosso devir individual e social.
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