No bairro de Kerem Avraham, em Jerusalém, onde Amos Oz cresceu, muitos eram tolstoianos invertebrados, «barbas brancas ao vento», «tolstoischkis» caídos de um romance de Dostoievsky: «torturados, faladores [...], idealistas atormentados, mas todos trabalhavam efectivamente para Checov» (pág. 9). Eram funcionários, escritores, enfermeiras, utopistas, tradutores, pequenos comerciantes, bibliotecários, empregados de escritório, ideólogos, logistas, intelectuais constrangidos a executar trabalhos ingratos e vivendo no despojamento e com a paixão do estudo, velhos solitários que sobreviviam com magras economias... Quando a noite caía, as portadas das janelas eram fechadas, as portas eram trancadas e apenas a reverberação do luar derramava uma morna luminosidade nas ruas desertas. Havia também os pioneiros que viviam para lá dos montes escuros de Jerusalém, na Galileia, no Sharon, nos desertos das margens do Mar Morto, nas planícies costeiras; e «era lá que do miserável pó se fazia uma nação combatente» (pág. 11). E havia ainda Telavive, «cidade efervescente» cheirando a maresia, «como um projecto secreto e vital do povo judeu»(pág. 13). , onde havia mesmo «judeus bronzeados que sabiam nadar. Quem em Jerusalém sabia nadar?» (pág. 11). Ninguém. Seguramente não o sabiam aqueles tolstoianos e dostoievkianos que, refugiados em habitações minúsculas, discutiam num hebraico hesitante o destino de Israel, mas sonhavam ainda num iídiche que lhes recordava os tempos sombrios de um qualquer «shtetl» na Polónia, na Rússia ou na Roménia, onde imaginaram uma terra para lá do horizonte, «no outro lado do rio e da floresta, para onde deveriam partir em breve porque o tempo dos Judeus na Europa estava contado». Vinham cuspidos de uma Europa que os tratava como cidadãos de segunda, escapando aos pogroms primeiro, a Hitler depois e a Estaline mais tarde - um passado cheio de cadáveres - , à procura de uma terra prometida que «não existia e que talvez nunca tenha existido, a não ser [nos] sonhos de juventude»(pág. 332). Mas era para Odessa, para Vilnius, para Rovno que sempre viravam o olhar, como se aí se encontrasse a verdadeira «terra prometida e proibida, o lugar nostálgico dos campanários e das velhas praças empedradas, dos elécticos, das pontes e das torres das catedrais, das aldeias isoladas, das fontes termais, das florestas e dos prados cobertos de neve» (pág. 7).
Nesse tempo, o pequeno Amos «queria ser um livro quando fosse grande. Não um escritor, mas um livro. Por medo» (pág. 365). Medo dos tanques de Rommel que ameaçavam Israel. Medo que os britânicos não quisessem partir. E medo do aconteceria depois da sua partida, entregues à sede de vingança de milhares de muçulmanos inflamados contra os judeus. Por isso, «passava a vida perdido, às voltas em florestas virtuais, florestas de palavras, cabanas de palavras, prados de palavras» (pág. 173) que haveriam de revelar-se anos mais tarde através dos muitos livros (em Portugal, na ASA, encontram-se publicados A Terceira Condição, Não Chames à Noite Noite, Uma Pantera na Cave, O Meu Michael e O Mesmo Mar) que foi escrevendo até chegar a esta História de Amor e Trevas, escrita sessenta anos depois numa pequena casa, em Arad, à beira do deserto do Neguev, onde Oz vive actualmente. Um livro «muito proustiano», carregado de «cheiros, sons, imagens que ajudaram a lembrar» - como confessou numa entrevista ao ípsilon de 9 de Março passado -, arrancados às pedras de «uma Jerusalém estranha, silenciosa, modesta e velada, etíope, muçulmana, cidade de peregrinos, otomana, missionária, indiferente, a cidade dos cruzados, dos templários, grega, arménia, italiana, cheia de intrigas, anglicana, ortodoxa, monástica, copta, católica, luterana, escocesa, sunita, xiita, sufi, alauita, dominada pelo som dos sinos e o chamamento dos muezins, com os seus pinhais, aterradora e ao mesmo tempo fascinante com os seus feitiços sombrios, o labirinto das suas ruelas proibidas e hostis mergulhadas nas trevas, uma cidade secreta, maléfica, prenhe de catástrofe« (pág. 413), rasgada agora por um muro da vergonha que serpenteia entre ruas, quintais, vizinhos, amizades, desconfianças, medos, angústias, esperanças, como uma serpente venenosa destilando cada vez mais veneno, mais ódio entre dois povos atiçados por toda a espécie de radicalismos.
Um livro sobre a criação do estado de Israel, uma nação criada pela força: «Nesse tempo, não se preocupavam muito com o destino das centenas de milhar de deslocados e refugiados palestinianos, muitos dos quais fugiram ou foram expulsos das cidades e das aldeias conquistadas pelo exército israelita» (pág. 468). Mas, sobretudo, ainda, uma promessa não cumprida, tal como os seus pais fundadores, sionistas socialistas como David Ben Gourion a sonharam: «Agora, passados os anos da euforia, entrávamos de repente no dia seguinte: cinzento, apagado, obscuro, tacanho e mesquinho» (pág. 471). Um livro que é uma espécie de Requiem por Israel só possível de compreender quando regressamos com Oz a esse mundo de antes onde os judeus askenazitas deixaram um pedaço de si, num tempo em que os muros diziam «Judeus para a Palestina» e não se ouvia ainda o grito «Judeus fora da Palestina», inscrito no novo muro que serpenteia na paisagem bíblica, dividindo, espartilhando a «terra prometida» de árabes e judeus. Como foi possível chegar aqui, a esta muralha de ódio inútil separando judeus e palestinianos vivendo sob um mesmo céu sobre ruínas? Eis, talvez, a pergunta a que este livro procura dar resposta, na perspectiva de um israelita que defende «que acabar com a ocupação não só não enfraquece Israel como, pelo contrário, o fortalece. E que não é correcto ver em todo o lado apenas Shoah» (pág. 377).
[ver ainda post Contra o fanatismo]
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