20 de dezembro de 2007

A invenção do ensaio



Em 1571, o nobre senhor Michel Eyquem de Montaigne [1533-1592] ao passear a cavalo nos arredores de Bordéus teve um acidente que quase lhe custou a vida. Este episódio, que veio juntar-se à morte recente do pai, transmitiu-lhe uma tão aguda consciência da fragilidade da vida que decidiu abandonar os altos cargos de magistratura e retirar-se para as suas propriedades no Périgord, desfrutando ali da tranquilidade do campo, da companhia dos amigos e, sobretudo, da excelente biblioteca instalada na torre circular do seu castelo. Para assinalar essa decisão mandaria pintar no gabinete adjunto à sua biblioteca a seguinte inscrição: «No ano de Cristo 1571, com a idade de 38 anos, na véspera das calendas de Março, seu aniversário natalício, Michel de Montaigne, desde há muito desgostado da servidão áulica e dos cargos públicos, sentindo-se ainda vigoroso, retirou-se para o seio das doutas virgens, onde, calmo e sem se inquietar com a mais pequena coisa, passará o que lhe resta de uma vida já muito avançada. Se as decisões do destino o permitirem, perfaça ele esta residência e refúgio ancestral, que ele consagrou à sua liberdade, à sua tranquilidade e ao ócio» [in prefácio de Rui Bertrand Romão a Montaigne – Ensaios, Relógio d’Água, 1998].

Seria ali,  então, ali, ocultado do mundo e em diálogo com Platão, Epicuro, Séneca e Lucrécio sobre o sentido da vida, as paixões, os prazeres e os mistérios da existência, que escreveria os seus livros, inventando um género literário que viria designar-se por ensaio - esse género sem género, de uma ambiguidade propositada, que encerra todos os cruzamentos da escrita -, e que ficaria indelevelmente ligado à construção da subjectividade moderna.

A sua escrita, fragmentária, tangencial, quase nunca assertiva, seguia o ritmo das suas meditações, estimuladas ora pela leitura acidental dos seus autores de cabeceira ora pelas oscilações da alma ora pela imaginação caprichosa ora, ainda, pelas manifestações do quotidiano obscurecido pelas guerras religiosas que assolavam a França. «O meu ofício, e a minha arte, é viver. […] Pinto sobretudo os meus pensamentos, matéria informe que não se pode exprimir por actos. A muito custo posso colocá-la nesse corpo aéreo que é a voz. […] Eu exponho-me na íntegra, tal um esqueleto, em que simultaneamente aparecem à vista as veias, os músculos e os tendões, cada peça no seu lugar. […] O que eu descrevo não são as minhas acções, sou eu próprio, é a minha essência» [op. cit. «Da Exercitação»]. Filósofo sem academia para quem filosofar era aprender a morrer, rejeitava as abstracções metafísicas, procurando tão só compreender a realidade que confrontava com a sua visão humanista do mundo, o sentido hedonista da existência e o culto do individualismo que faziam a sua modernidade.

Pensar, então, que a modernidade não surgiu em contacto com o mundo, mas das meditações daqueles que se retiraram do mundo, precisamente, para melhor poderem pensá-lo. Como Montaigne na torre circular do seu castelo; como Descartes, que decidiu ocultar-se num quarto aquecido de um quartel de Inverno, em Ulm; como Nietzsche que encerrado em si mesmo dizia que apenas na companhia de Montaigne a vida se lhe revelava mais suportável; como Walter Benjamin, solitário sempre, embebendo em tinta os seus cadernos de pensamentos; como Pessoa transportando, anónimo entre os transeuntes da Baixa de Lisboa, uma arca que haveria de nos desassossegar. Todos fazendo parte da minha mala pessoal da modernidade.

Por isso, nesta época de troca de livros, talvez receber aquela expressiva e inacabada biografia que Stefan Zweig nos legou sobre o filósofo do tangível e que constitui, asseguram-me, o melhor estímulo à leitura dos Ensaios e à passagem tangencial pela sua vida. E quem melhor para nos abrir as portas do castelo de Montaigne que Zweig, também ele um humanista solitário fugido à barbárie nazi em busca do paraíso que nunca encontraria no seu exílio brasileiro, defensor da liberdade do pensamento contra as imposições totalitárias das ideologias e demais loucuras gregárias?

[Ao alto, escritório de Montaigne na torre circular do castelo]

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