31 de dezembro de 2007

Spleen



Paris, 1857. Um homem caminha de olhos baixos por «uma nova avenida, ainda inacabada, ainda cheia de entulho [...] exibindo os seus inacabados esplendores». Ao lado, as ruínas dos velhos bairros - escuros, densos, assustadores - amontoadas no chão. Uma família andrajosa emerge do entulho à procura da nova luz da cidade moderna. No dobrar de uma esquina, o homem cruza um umbral que dá para um labirinto de ruas, arcadas, passages, onde se exibem os despojos do tempo que passa. Sobre as metamorfoses de Paris escrevera num livro que acaba de publicar: «Paris change! Mais rien dans ma mélancolie/ N'a bougé ! Palais neufs, échafaudages, blocs,/ Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,/ Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs» [«Le Cygne»]. O homem que caminha à deriva soberbamente consciente da sua melancolia chama-se Charles Baudelaire, ensaísta e jornalista, tradutor de Edgar Allan Poe. E o livro onde escreveu estes versos chama-se Les fleurs du mal.

Com esse livro fundaria, também, a lírica urbana, maldita e anti-sentimental capaz de expressar um mundo em descida vertiginosa, cada vez mais para baixo, em direcção ao seu vórtice. E sobre esta visão desafiadora, fantasmagórica, insuperável e premonitória da vida nas grandes metrópoles, escreveria Walter Benjamin, outra alma saturnina que também se erraria, anos depois, pelas ruas de Paris: «C’est là le regard d’un flâneur, dont le genre de vie dissimule derrière un mirage bienfaisant la détresse des habitants futurs de nos métropoles»  [Walter Benjamin. Paris, capitale du XIXème siècle. 1955, Schriften I, pp. 406-422]. 

Mas mais do que os cento e cinquenta anos que agora lembro aqui, estas flores malditas têm uma outra idade, a de «l’horloge, dieu sinistre, effrayant impassible, dont le doigt nous menace et nous dit: Souviens-toi!» [«L´horloge»]. A aguda consciência da industrialização galopante que tudo arrastava no seu vórtice, uma amargura saturnina e, depois, o convite à viagem, a fugacidade... tudo aí se encontra plasmado de forma violentamente prosaica, estilhaçando os códigos de um tempo à deriva: «Je suis comme le roi d’un pays pluvieux, riche, mais impuissant, jeune et pourtant très-vieux...». E, ainda, «le poète est semblable au prince des nuées qui hante la tempête et se rit de l’archer; exilé sur le sol au milieu des huées, ses ailes de géant l’empêchent de marcher» [«L´albatroz»]. Baudelaire, o albatroz urbano, sobrevoou o seu tempo deixando-nos «rares fleurs mêlant leurs odeurs aux vagues senteurs de l’ambre» cujo perfume inebriante, radicalmente moderno, não cessa de nos dar a volta à cabeça.

Seria o mundo do seu tempo um jardim de flores do mal, conforme se interrogava Baudelaire num miserável quarto de hotel, em Bruxelas, onde, doente de sífilis, esperava a morte? Talvez seja o spleen, essa consciência distópica dos labirintos do flâneur melancólico que marca, ainda, a actualidade do seu livro fundacional, ligando o vazio do seu tempo à artificialidade deste nosso tempo, em que nós, transeuntes motorizados e alienados, nos vamos também perdendo através dos labirintos feéricos de uma pós-modernidade glamorosa, desalmada e sem redenção, fantasmagoricamente antecipada no seu livro sobre Baudelaire, por Walter Benjamin, talvez o mais saturnino dos flâneurs das grandes metrópoles da modernidade e aquele que melhor se deixou levar pelo inebriante perfume  das flores do mal.

E é através dessa pós-modernidade glamorosa e desalmada, ostentada nas vitrinas dos grands magasins do Boulevard Haussmann que, também eu, neste último entardecer do ano de 2007 - cento e cinquenta anos depois da sua construção, portanto, - vou caminhando sem rumo. E se fosse dado ao spleen, como um passeante solitário, talvez me detivesse agora no passeio onde uma chusma de transeuntes anónimos vai passando apressada com sacos que transportam os vinhos espumantes que à meia-noite afogarão o tédio. Mas não, não sou dado ao spleen, por isso aproveito, acompanhado, o privilégio supremo que me é oferecido enquanto forasteiro, que é o de participar da banalidade quotidiana desta cidade que nunca se acaba sem lhe sentir o peso, que é como quem diz, sem se deixar levar pelo aroma inebriante das flores do mal.

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