«As estações de comboios deixam-me entrever um mundo que não conheço. A atmosfera que as envolve é mais subtil. (...) Gosto de estações de comboios porque elas vivem dia e noite», confessa Emmanuel Bove em Les Amis, o romance que comecei a ler, não numa estação de comboios, porque já não se viaja de comboio para Paris, mas num aeroporto que pouco tem a ver com as estações de comboios que povoaram o mapa inter-rail da minha adolescência. Santa Apolónia, Atocha, Austerlitz, Termini... Por isso, também eu gosto de estações de comboios; e, por isso, ainda hoje, quando visito uma qualquer grande cidade, gosto de entrar nelas, olhar os painéis das partidas e chegadas, deambular nos cais, observar os que chegam e os que partem.
Há uns anos viajei de avião para Leipzig onde devia apanhar um combóio para Weimar. Mas como cheguei à estação já noite alta, quase madrugada, e só havia comboios para dali a algumas horas, deixei-me ficar por ali naquela estação onde todos os comboios já tinham partido, mas onde, misteriosamente, permanecia ainda o cheiro do último comboio a vapor que, por certo, já tinha partido há muitos anos, pois as linhas há muito que eram electrificadas. Esse o segredo mineral das estações de comboios que me lembram o pequeno mundo organizado de partidas e chegadas da minha infância que misturava a mecânica das velhas locomotivas com a do diesel das novas automotoras manobrando com um rumor metálico sob o olhar ocioso dos Boves que, entre passageiros apressados e grandes sacos de correio, erravam na pequena estação de província para onde me esgueirava depois da escola.
Lembram-me ainda que muitos anos depois encontraria a mesma estação de comboios rigorosamente vigiados da minha infância no romance de noventa páginas Bohumil Hrabal, cuja acção se passa na Checoslováquia, no final da Segunda Guerra Mundial, e que repete o mesmo pequeno mundo de chefes-de-estação, factores, agulheiros, maquinistas, carregadores, cobradores de bilhetes e passageiros de segunda classe onde cresci. A mesma estação de comboios que voltaria a encontrar naquele romance de Italo Calvino, Se numa noite de Inverno um viajante, onde, numa noite de chuva, um passageiro desembarca numa estação ferroviária que me deu «a impressão de recuar no tempo, de uma reocupação dos tempos e dos lugares perdidos, ou então um faiscar de luzes e de sons» que eu julgava perdidos na estação embaciada da minha infância onde já não há comboios a manobrar pelos carris brilhantes a perder de vista. Por isso, como Bove, gosto da atmosfera subtil das estações ferroviárias, talvez, agora, à espera de um breve encontro como no filme de David Lean que revi há dias.
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