A duração das minhas viagens de avião mede-se pelo número de páginas dos livros que escolho para ler durante o trajecto. Umas vezes, uma viagem nocturna - de ida e volta - pode durar as 609 páginas de Los detectives salvajes, de Roberto Bolaño [Anagrama, 2006] que me levaram desde Lisboa via Zurique até Santiago do Chile e regresso, descontando os «sueños, no pesadillas, sueños musicales, sueños de preguntas transparentes, sueños de aviones esbeltos y seguros que [cruzam] Latinoamerica de punta a punta por brillante y frío cielo azul». Outras vezes, apenas as 172 páginas da edição de bolso de Mes amis, de Emmanuel Bove [Éditions Note bene, 2002], que dura a viagem entre Lisboa a Paris e volta, sem contar com o sono matinal, em ambos os trajectos, sobre os Pirinéus, interrompido pelas hospedeiras da Aigle Azur a perguntarem-me se queria café ou chá.
Vou a Paris, então, numa viagem de 172 páginas, para dobrar o ano em boa companhia, levando comigo Les amis que Emmanuel Bove [1898-1945] escreveu em 1924 e a antecipação de errâncias por uma cidade que já não existe, embora a deambulação solitária do protagonista aconteça num mapa que me é sempre familiar: «J´aime errer au bord de la Seine. Les docks, les bassins, les écluses me font songer à quelque port lointain où je voudrais habiter». Também eu, em Paris, gosto de errar ao longo dos cais do Sena e para lá me leva este voo de 172 páginas. Vou, acompanhado, ao encontro de amigos que vão estar à minha espera no aeroporto, ao contrário do que sucede a Victor Bâton, o alter-ego de Bove que, igual a um vagabundo solitário, se passeia pelas ruas cinzentas de Paris com uma obsessão boviana pela amizade que vai falhando como se tal sortilégio lhe fosse para sempre vedado: «La solitude me pèse. J´aimerais à avoir un ami, un véritable ami, ou bien une maîtresse à qui je confierais mes peines».
E à medida que o avião avança, este Bove crepuscular, passeante sem escapatória de ruelas becos e parisienses que leio pela primeira vez - e que me foi oferecido por Enrique Vila-Matas que mo apresentou logo na capa de Doutor Pasavento, numa fotografia tirada no Jardin du Luxembourg onde aparece com a sua filha Nora, de sobretudo escuro e chapéu -, vai-se parecendo cada vez mais com o passeante Robert Walser, só que Bove mais solitário que aquele, porque - ao contrário do escritor suíço que aos domingos dava longas caminhadas pelos arredores do sanatório de Herisau na companhia do seu amigo Carl Seeling - falhou sempre a sua busca obsessiva de amizade.
Bove, o Walser de Paris, portanto, sem «point d´amis», perdido no meio da chusma humana dos boulevards que passa sem o ver, mas que lhe dá a verdadeira medida da sua solidão. Emmanuel Bobovnikoff, Bove, o inventor da auto-ficção naturalista, descendo a rue Saint-Jacques desde o seu hotel no número 298 - que já não existe -, metendo depois pela rue Soufflot, para ser detido mais adiante pela polícia de Clemenceau. Bove, ocioso, sob a máscara de Bâton: «Un homme comme moi, qui ne travaille pas, que ne veut pas travailler, sera toujours détesté. J´étais dans cette maison d´ouvrier, le fou, qu´au fond, tous auraient voulu être. J´étais celui qui se privait de viande, de cinéma, de laine, pour être libre. J´étais celui qui, sans le savoir, rappelait chaque jour aux gens leur condition misérable. On ne m´a pas pardonné d´être libre et de ne point redouter la misère». Bove, pelos passos de Bâton, errando livremente pela rue de Seine, pela rue Gît le Coeur, que levam ao parapeito do Sena.
Ou Bove, «o Walser da rue Vaneau», como pensou Vila-Matas, por aquele ali ter vivido - teria? - na mais estrita solidão, durante o ano de 1928, no rez de chaussé do mesmo prédio onde vivia também André Gide. Sempre la bonne rumeur - diria Bove - da rue Vaneau, que cabe na minha estante dentro de um livro de Vila-Matas, nela cabendo também o mundo inteiro. E por isso, enquanto vou folheando este relógio de páginas que escolhi para medir o tempo deste voo, decido que num qualquer dia desta semana parisiense terei de ir à rue Vaneau, onde para além de Gide e Bove viveram ainda Marx e Saint- Éxupéry e se alojam, hoje, no Hotel de Suède, os escritores do editor Christian Bourgois, logo Lobo Antunes incluído, nas suas passagens por Paris, o que faz dessa rua um estranho tecido de destinos e de obras, a cujo significado só poderá aceder quem «viva já nas costuras do ruído mundano». As mesmas costuras que depois de ler Doutor Pasavento haveriam de me levar à estrada de Damasco. Mas isso são outras imbricações que apenas os que vêem neste blogue uma modesta tentativa de auto-ficção poderão, talvez, descortinar. Já a comparação de Bove com Walser que aqui se foi intrometendo me parece mais verosímil. Se não, digam-me lá se esta possibilidade de apagamento do sujeito na rua não faz lembrar Walser? «J´errai dans les rues, l´âme joyeuse et vivant seule, sans les yeux».
E sobre Bove, escreveu Peter Handke, num dia de chuva, em Petit-Clamart, nos arredores de Paris, uma carta-prefácio que seria enviada, depois, desde os correios de Bièvre para Jean-Luc Bitton, co-autor (com Raymond Cousse) da biografia [La vie comme une ombre, Le Castor Astral], «[qu´il] devrait devenir le patron-saint des écrivains (purs), plus que Kafka, et de la même façon que Anton Tchecov et Francis Scott Fitzgerald». E aqui a imbricação entre a realidade de estar agora num avião que avança para Paris, a ficção do livro que vou lendo e um prefácio à biografia do autor, escrito e enviado, precisamente, da mesma localidade onde irei ficar nesta semana parisiense, Bièvre, o que mais uma vez vem mostrar que as coincidências nunca são acidentais, e que até numa crónica se podem «plasmar as estranhas combinações estranhas da vida», como disse Gerard de Nerval que não me consta que tenha andado por Bièvre, mas que também era dado a errâncias parisienses. Assim, terei escolhido Bove para ler no avião porque vinha para ficar em Bièvre ou ficarei em Bièvre porque trouxe comigo Bove que me levou a Jean-Luc Bitton que me levou a Peter Handke que escreveu um prefácio bièvrois para a biografia de Bove? O que sei, no final deste romance, é que voltarei a errar por aí com este Emmanuel Bove crepuscular.
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