6 de janeiro de 2008

Despedir-se à francesa


Passei uma semana em Paris aproveitando o privilégio supremo que me foi oferecido enquanto forasteiro, que foi o de participar da banalidade quotidiana desta cidade que nunca se acaba sem lhe sentir o peso, e muito menos sem remorsos por me ter ausentado da outra banalidade quotidiana que vou habitando - essa sim, muitas vezes pesada - e que deixei suspensa na dobra do ano.

Gosto de Paris. Gosto de, ao entardecer, sob o zinco da esplanada do Café de Flore, enquanto vou observando a chuva oblíqua através das vitrines, folhear um livro acabado de comprar ali mesmo ao lado, na livraria La Hune; gosto de caminhar sem rumo preciso, por Germain-des-Près, guiado apenas pela intuição do flâneur que me leva, depois, através da rue de Seine a cruzar o arco que dá para o Quai de Conti e para a Pont des Arts; gosto das bancas de livros ao longo dos cais; gosto da Île de Saint-Louis com as suas boutiques elegantes; gosto de deambular pelo Marais até à Place de Vosges, de tomar um chá na rue Vieille du Temple; gosto do mercado da rue Mouffetard e das suas bancas onde se vendem ostras com um forte sabor a mar, gosto do aroma forte dos queijos expostos naquela crémerie onde sempre entro, da livraria Arbre à Lettres onde, finalmente, encontrei o Livre des Passages, de Walter Benjamin; gosto, ainda, de errar por essas passages secretas, donde Benjamin via Paris como a cidade dos espelhos; gosto de me imaginar Le Paysan de Paris e, como Aragon, adentrar-me na cartografia de Paris e escutar a formidável ressonância das pequenas coisas que se mostram dissimuladas ao passeante.

Mas agora que estou de volta, reparo que, tal como confessava há dias Enrique Vila-Matas na sua crónica no El País, a propósito de lhe ocorrer, às vezes, despedir-se à francesa, também eu assim me despedi do ano findo, isto é, imitando o costume evocado pelo escritor catalão - costume considerado elegante, diga-se - da burguesia francesa do século XVIII que abandonava os salões sem saudar os anfitriões, o que seria uma maneira de afirmar que partiam a contra-gosto e que, por isso, tinham o propósito de regressar quanto antes a tão boa companhia. Fica esclarecido, então, que se me fui daqui sem avisar, não deixando os votos de Ano Novo àqueles que aqui costumam visitar-me, não foi por indiferença relativamente ao ano por vir, muito menos por má educação para com a companhia deste salão contemporâneo que é a blogosfera, mas sim uma maneira de dizer que também eu ia ali - na circunstância, a Paris - e já voltava e que não prescindia da boa companhia daqueles que aqui costumam vir ler o que me cai dos dias.

E, já agora, acrescente-se que esta escapadela à francesa evitou-me deixar aqui aqueles balanços de fim de ano a que sou avesso e que no caso deste blogue corresponderia a uma espécie de haver contabilístico dos livros lidos durante o ano ou, o que seria mais entediante, a um catálogo do tipo best of  dos livros publicados, aliás desnecessário, porque, entretanto, confeccionado até à exaustão em vários jornais, numa infrutífera tentativa de prolongar o ano mental para além das páginas dos calendários. É que esses catálogos de fim de ano recordam-me a passagem inexorável dos dias que não sabem que passam mas que passam sempre, com ou sem balanços, com ou sem celebrações, com ou sem despedidas de fim de ano.

Por mim, prefiro recordar os dias por vir, o mais além do tempo. O próximo encontro, portanto. E que melhor lugar para ter dobrado o ano, sem despedidas, mas com elegância, do que tê-lo feito nessa Paris que nunca se acaba, divagando sobre a luminosidade do champagne, não seguramente para me despedir do ano findo ou festejar o novo com abraços mais ou  menos efusivos, mas para ir entrando de mansinho nesse mais além do tempo como um expedicionário dos dias que aí vêm. Em Paris donde, dobrado o ano, regresso agora à vossa boa companhia, despedindo-me à francesa da boa companhia que também ali encontrei - com elegância portanto -, porque como escreveu Hemingway em Paris é uma festa, «Paris nunca se acaba, e a memória de cada pessoa que ali viveu é diferente da memória de qualquer outra».

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