Envergonhamo-nos nós, também, quando, sem respeito pelo luto e pela dor do Outro, nos chega repetidamente através do écran a pergunta despudorada: "o que é que sente?" E a vergonha que sentimos é uma tripla vergonha: vergonha pelo jornalista que faz a pergunta, vergoha, também, por quem se apresta a responder e vergonha, ainda, por nós próprios, por sermos coagidos a nos colocarmos no lugar seguro em que, em nossas casas, nos encontramos como contempladores sensíveis mas indiferentes ao espectáculo dramático que se vai desenrolando diante do nosso olhar sem que tenhamos coragem de nos pormos noutro lugar.
Vistas, assim, as coisas, este jornalismo rasurado responde ao acontecimento não para para lhe dar tonalidade expressiva e retraçá-lo racionalmente, mas para nos introduzir nele como espectadores obscenos cujo ponto de vista é sempre incitado, e excitado, por formas e processos de mediatização que visam a exposição de sentimentos, melhor dizer, o desnudamento da intimidade do Outro.
"Violência do despudor" que só pode ser exercida com a cumplicidade ou, pelo menos, com a aceitação tácita daqueles que a exercem sobre os outros: os jornalistas; daqueles que a sofrem: as pessoas apanhadas na rua; e daqueles que, em suas casas, não mudam de posição diante do écran: os espectadores.
Porque não, então, sempre que a maquinação mediática nos pretenda intimidar, e desnudar, quer sejamos jornalistas com empregos precários ou transeuntes ocasionais em lugares de reportagem ou espectadores sensíveis, não opormos à violência do despudor a objecção da consciência? Porque se os jornalistas, também eles vítimas da violência do medo de perder o emprego, não podem dizer tudo o que pensam, poderão, pelo menos, não perguntar aquilo que desrespeita o luto e a dor alheia. Do mesmo modo que, também, as pessoas apanhadas na rua poderão sempre calar as suas respostas e os espectadores, em casa, mudar de lugar.
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