13 de fevereiro de 2014

A dor dos animais



Mary, uma elefanta de circo executada em 1916, no Tennessee, diante de uma multidão de milhares de pessoas, após reagir a maus tratos e matar um treinador tem sido interpretada como símbolo da repressão e abuso contra animais em circos. A execução com um tiro na cabeça, no passado domingo, no zoo de Copenhaga, de Marius, uma jovem girafa, não por se ter revoltado contra o tratador mas para prevenir problemas de consanguinidade e, depois, esquartejada em bárbaro espectáculo diante dos visitantes, com peritos a explicarem a anatomia do animal aos presentes, entre os quais muitas crianças, antes de ser servida de repasto aos leões, poderia bem constituir um dos inumeráveis remakes da mesma violência infligida pelo homem aos animais. 

O que liga estes dois acontecimentos aos muitos outros sofrimentos que o homem inflige aos animais de maneira menos visível como na produção de carne, na extracção de peles, na indústria de cosméticos, em práticas culturais, em experiências científicas, não é tanto a crueldade sádica mas uma violência banal, endémica, contra os animais que prefigura sempre uma violência contra os homens: “A crueldade contra os animais acostuma-nos à crueldade contra os homens”, avisa Coetzee em A vida dos animais. Como neste relato sanguinário que no romance-ensaio Às Cegas, Claudio Magris põe na boca do aventureiro islandês descobridor da Tasmânia: “Matar os fugitivos, os cangurus, as baleias – todas as baleias, auspiciou o governador Collins, porque atrapalham as actividades na foz do Derwent – as focas. Na grande baía de North Cape centenas de carcaças de focas esfoladas jazem na praia; os barcos carregados com a sua pele vão-se afastando da margem em direcção ao navio, os pássaros estão já a descarnar os animais macerados à paulada e até mesmo os filhotes são cândidos pompons emporcalhados de sangue. A extensa onda anuncia-se como um sopro profundo, as baleias chegam à foz do Derwent prenhes, viajaram milhares de quilómetros para ali virem parir, como fazem há milénios; as pequenas baleias saem do ventre das mães arpoadas, sangue viscoso do parto e sangue límpido da morte”. 

Conta W. G. Sebald, em Os Anéis de Saturno, que um tal Noël de Marinière, inspector do mercado do peixe de Rouen, viu um dia com espanto um par de arenques que ainda mexiam ao cabo de duas ou três horas em seco e decidiu averiguar melhor qual a capacidade de sobrevivência destes peixes, o que fez cortando-lhes as barbatanas e mutilando-os de diversas maneiras. Este procedimento, inspirado pelo nosso impulso para o saber, é por assim dizer o ponto culminante da história de dor de uma espécie constantemente ameaçada de catástrofe”.  Não observámos já, também nós, nos nossos mercados de peixe, uma cena de crueldade semelhante que ignorámos na convicção de que a fisiologia dos peixes os isenta do medo e das dores que sofrem os corpos e as almas humanas no estertor da morte? 

Donde provém esta banalização do mal contra os animais capaz de estender-se, como a História já comprovou demasiadas vezes, aos próprios homens? Trata-se de uma convicção sem consistência baseada numa convicção antropomórfica arbitrária, segundo a qual os animais não são seres sencientes, não sofrem. Esta convicção resulta de uma cisão entre natureza e cultura que, diz-nos Hölderlin, nos deixou órfãos dos deuses e sem possibilidade de redenção. Ora a etologia ensina-nos que os animais não têm apenas mecanismos instintivos, como a ignorância de alguns e o comodismo de quase todos fazem acreditar. É que - como considera a personagem do romance de Robert Musil que não tendo qualidades alheias, tinha, contudo, a qualidade de reconhecer a alma dos animais -, se Deus se fez homem, poderia ou deveria também fazer-se gato ou flor.

Como olhar com bondade para os animais se a nossa cultura não vem nem dos bosques do poeta Eichendorff nem do mar de Melville, pergunta-se Claudio Magris, em Danúbio? Para afirmar, em seguida, que a mundanidade social constitui o nosso horizonte. Civilização e moral baseiam-se, assim, na distinção entre homens e animais cujas existências mínimas fazemos por ignorar a não ser na sua coisificação em nosso proveito, como sustenta Kant: “As nossas obrigações com os animais são apenas obrigações indirectas com a humanidade.”

A fraternidade solidária humana - que não obstante a sua retórica hipócrita não pára de falhar, atirando os desprotegidos do mundo para a pobreza e o sofrimento - não apenas exclui os animais como, sem consciência da irredimível dor causada, retira à própria Humanidade qualquer esperança de redenção, como afirma Magris: “A irredimível dor dos animais, povo obscuro que acompanha como uma sombra a nossa existência, lança sobre esta última todo o peso do pecado original”.   

Por isso, contra a cegueira que não nos deixa ver o medo e dor dos animais, reconhecer que também a elefanta Mary e a girafa Marius têm direitos universais e invioláveis. E deixarmo-nos, como Marguerite Yourcenar, comover perante "este aspecto perturbador do animal que não possui nada, a não ser a vida que quase sempre nós lhe roubamos”.

1 comentário:

  1. Olá João, navegando cheguei ao seu blog e me deparei com este artigo em especial.Parabéns pelas palavras, gostaria de postar este artigo em meu blog, já que nossos públicos são diferentes e assim divulgo tanto seus texto quanto seu blog.
    Deixo aqui o link do meu se desejar conhecer ok e adianto agradecimentos, mais uma vez, pela dissertação sobre a dor dos animais
    Grande abraço
    Simone
    http://irmaosanimais-conscienciahumana.blogspot.com.br/

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