21 de maio de 2010

Hotéis de passagem (II)


Nas minhas andanças através de uma cartografia pessoal onde se bifurcam livros, filmes e discos, tenho cruzado os umbrais de outros hotéis de passagem onde numa qualquer dobra da página, de faixa ou de fibra digital ousei subir a um qualquer quarto 205 e aí pernoitar, escutando, depois, noite adentro, o murmúrio de personagens momentaneamente desaparecidas do mundo lá fora, talvez, à procura, também elas, de uma qualquer porta de passagem entaipada atrás de um velho armário com espelho que dê para outras vidas enquanto eu, ocupante ocasional de um lar fugaz, ali vou, como escreveu Brecht, concebendo a vida como um romance.

Lembro-me de alguns dos 342 motéis de estrada onde Nabokov (e depois Kubrick) fez pernoitar Lolita e o seu velho amante Humbert, tudo cenários transitórios de cerimónias secretas e rituais privados oferecidos ao voyeurismo do leitor. E no armário onde guardo os velhos LPs e os recentes CDs e DVDs lá está ainda o Hotel California, dos Eagles, onde o viajante se deita sob «mirrors in the ceiling, pink champagne on ice»; e o quarto de banho do Bates Motel, onde Hitchcock engendra o assassinato brutal de uma jovem secretária, em Psico; e o Desert Song Hotel,onde Nicholas Cage se encerra para se embebedar até à morte, em Adeus Las Vegas; e os mais recentes Quatro Quartos, de Quentin Tarantino ou o quarto com vista sobre Tóquio, de Lost in Translation, de Sofia Coppola.

E em dobras de páginas, que de repente me vêm à memória, aquele hotel de Michigan que surge no conto de Borges, As metamorfoses de Shakespeare, onde um homem sem rosto oferece ao escritor argentino a memória de Shakespeare. E o Costa Verde Motel Tulán, de A noite da iguana, de Tennessee Williams, cenário de amores depressivos; e o obscuro quarto de Los adioses, de Juan Carlos Onetti, onde tuberculosos se encontram para desdenhar da morte; e a «pensão de má morte», em Budapeste, onde se hospedou o protagonista de O Mal de Montano, de Enrique Vila-Matas; e o pesadelo quotidiano de O corredor do grande hotel, de Dino Buzzati; e os desassossegantes pararelismos entre diferentes hotéis, em Hotel Almagro, de Ricardo Piglia; e os hotéis baratos de Ciudad Juárez, cenários dos crimes horrendos de 2666, de Roberto Bolaño.

E como a realidade supera quase sempre a ficção, como não evocar aqui o perturbador quotidiano que Raymond Roussel encontra num hotel em Nova Iorque quando, ao pretender tomar um banho, constata "que há três mil quartos de banho no hotel e que três mil hóspedes podem estar a tomar banho ao mesmo tempo", o que o leva a desistir da ideia. Ou o hotel El Molino, em Buenos Aires, evocado pela escritora colombiana Laura Restrepo, que recorda as noites clandestinas de sexta-feira ou sábado que ali passou, depois de esperar numa longa fila de casais muito jovens, de estudantes sem dinheiro, abraçados ou de mão dada, conversando em voz baixa como se estivessem numa fila para o cinema à espera de um quarto para desaparecer do mundo lá fora, por horas, suspendendo o tempo num território fugaz no meio da obscuridade da ditadura. Conta Laura Restrepo que quis saber desse hotel transitório, se ainda lá estava na rua Salguero, e por isso, pediu a uma amiga que lá fosse. E resultou que sim, que ainda lá estva, embora também tenha sido vítima de um daqueles upgrades desconcertantes que procuram modernizar-nos as recordações.

1 comentário:

  1. Recomendo a leitura da novela: Lavoura Arcaica, do brasileiro Raduan Nassar. O início se passa em um quarto de hotel barato - a narrativa da personagem é carregada de referências ao próprio corpo dentro daquele quarto de hotel. Uma das melhores obras da literatura brasileira.

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