O rastilho revolucionário ateado, em Tunis, por Mohamed Biazizi, o humilde vendedor de fruta, que num gesto desesperado se imolou pelo fogo em protesto contra a brutalidade policial, conseguiu em semanas aquilo o terrorismo islâmico foi incapaz de conseguir durante todo o tempo em que, através da confessionalização do descontentamento popular, não logrou conseguir com os seus atentados terroristas; isto é, desencadear o incêndio em larga escala que, primeiro, fez derrubar o ditador tunisino Ben Ali, alastrou-se, em seguida, ao Egipto com consequências políticas cujo alcance permanece, ainda, uma incógnita, e ameaça, nos próximos dias, a estabilidade política no Iémen, na Jordânia, na Argélia e em Marrocos.
O mito da rua árabe - composta, como descreve o jornalista de origem iraniana, Amir Taheri, por uma turba medieval de exaltados homens barbudos sempre prontos a linchar publicamente qualquer infiel que não siga os preceitos da fé islâmica - que, há décadas, vem condicionando a atitude ocidental relativamente ao mundo árabe, parece começar, agora, a abanar. E, «pela primeira vez numa geração, não é a religião, nem a aventura de um líder único, nem as guerras contra Israel, aquilo que pôs em marcha uma região, mas o desejo visceral de uma vida decente», escreveu Anthony Sadid, no The New York Times.
Na Tunísia, assistimos a manifestações onde predominavam, sobretudo, estudantes e gente da classe média esclarecida, incluindo muitas mulheres; por estes dramáticos “dias de ira”, no Egipto, vamos vendo confluir na praça Al Tahrir uma massa imensa de sectores muito diversos da sociedade, que integra desde os mais pobres e desesperados até uma pequena e média burguesia que aspira à democracia. No Iémen, as ruas são invadidas quase exclusivamente por homens exibindo nos rostos as marcas de uma extrema pobreza. Enfim, o fogo da revolta que, de forma incontrolada, se vai propagando pelo norte de África e Oriente Próximo, ameaçando transformar a paisagem política, afirmando a possibilidade da utopia viável democrática em vez da alternativa entre as ditaduras laicas e as ditaduras islâmicas, mostra ao Ocidente que a rua árabe já não é território exclusivo da intolerância religiosa.
Esta corrente revolucionária com objectivos de natureza predominantemente laica, deveria levar as potencias ocidentais a reconstruir uma visão, finalmente, aberta das prerrogativas, crenças e diferenças entre o Ocidente e o mundo árabe, em coerência com os princípios de democracia política e social que reclamam para si, mas que têm sistematicamente alienado no mundo árabe, em nome de inconfessados interesses estratégicos que viriam a ser incitados, e excitados, após o 11-S.
A história mostra-nos que a alienação no mundo árabe dos princípios e valores políticos que o Ocidente proclamava para si teve como resultado suscitar uma desconfiança entre as elites modernistas árabes que ao verem-se abandonados nas suas reivindicações de democracia rapidamente ficaram à mercê da decepção e do ressentimento, deixando o terreno livre ao aparecimento de uma oposição religiosa que foi confessionalizando o descontentamento das populações e fomentantando o ódio contra o Ocidente. Este desencontro civilizacional revelou-se trágico tanto para o Ocidente como para os povos árabes. Trágico para o Ocidente porque viu abrir-se um abismo entre si e o mundo árabe; e duplamente trágico para os árabes que ficaram privados das suas franjas modernizadoras e sob o jugo do despotismo laico sem outra perspectiva mobilizadora que não fosse a do radicalismo islâmico.
Uma legitimidade nascida na transformada rua árabe parece estar a surgir na região, uma legitimidade que para já sabe aquilo que não quer, sendo o que não quer é continuar a sobreviver no limiar da pobreza e privada dos mais elementares direitos de cidadania e de liberdade. Traduzir essa legitimidade em medidas políticas não será tarefa fácil no híbrido quadro político emergente que integra uma numerosa juventude urbana ligada entre si e com o mundo através da Internet, uma burguesia que não quer permanecer na periferia do mundo, uma esquerda activa e moderna e partidos religiosos conservadores mas capazes de superarem o integrismo islamita. Tanto mais que, como escrevia, ontem, Rui Bebiano, «nada nos garante que o Islão aparentemente democrático, moderno e urbano, que de repente tirou o véu e mostrou um rosto benigno, não seja rapidamente esmagado, antes ainda de deixar semente, pelas hordas de resignados, facilmente manipuláveis pelos tiranos ou pelos pregadores, que têm atrás de si séculos de uma cultura de submissão e pouco treino nas subtilezas da democracia».
Por estes «dias de ira» em que a história regressou ao Magreb e Oriente Próximo para espanto e temor da «realpolitik» ocidental, resta-nos continuar a seguir atentamente os dramáticos acontecimentos do Egipto onde a revolta popular se vê, agora, ameaçada por forças provocadoras afectas ao regime de Mubarak - e, por que não ? - acreditar na possibilidade de «os árabes abandonarem o fantasma de um passado inigualável para encararem, por fim, a sua história. E um dia, para lhe virem a ser fiéis» (Samir Kassir, Considerações sobre a desgraça árabe, 2004. E,ao mesmo tempo, exigir que, desta vez, o Ocidente possa desempenhar melhor o seu papel mediador evitando a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», como diria Walter Benjamin se fosse observador destes «dias de ira».
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