Escreve W. G. Sebald que à sua volta tudo se desumaniza ou desaparece e que inclusive a própria História se desvanece. E que neste processo de aceleração imparável é conveniente que a literatura se encarregue desta consternação. Mas Sebald já cá não está. Nem Mann, nem Musil, nem Walser, nem outros que acreditaram na capacidade de resistência da literatura e o papel fundamental que ela poderia desempenhar na sobrevivência da história da memória humana, como disse Vila-Matas em Doutor Pasavento. É, ainda, Sebald que, em Os anéis de Saturno, nos oferece uma admirável síntese do que é a literatura: Sempre que decifro uma destas notas surpreende-me que um rasto já há muito extinto no ar ou na água possa continuar visível aqui, no papel.
Mas, onde perseguir, hoje, esse rasto, quando é o próprio universo da literatura que parece poder funcionar sem escritores? Não estará a banalização da palavra a levar ao desaparecimento a própria ideia de literatura? Quem inscreve no papel esse rasto que leremos daqui a cem anos, mil anos? Todos estes mortos à nossa volta, onde sepultá-los se não na linguagem?, pergunta Adónis, um poeta sírio-libanês que me revela Vila-Matas. E, no entanto, a banalização "pós-moderna" da palavra é uma miragem de um lago em cuja superfície opaca se desvanecem os traços, os rastos, a própria essencia da literatura.
Que fizeram os escritores contemporâneos do legado que receberam do passado, permitindo que a água e o ar estejam a apagar o rasto das palavras? Entra-se numa livraria e há muitos livros. Mas há poucos escritores. Tão poucos que parece que o próprio mundo da literatura parece já funcionar sem a necessidade dos escritores. «Vejo escritores falsos e sei distinguir entre o escritor falso e um que não o é» - disse Vila-Matas numa entrevista recente. «Depois de Kafka não consigo imaginar um escritor a apanhar banhos de sol [...] há muitos escritores que vejo como falsos», acrescentou. E, ainda, em O Mal de Montano, «essa raça de escritores, imitadores do já feito e gente absolutamente desprovida de ambição literária, mas não de ambição económica». E Lídia Jorge: «Não me interessa a literatura sobre o nada». Vila-Matas e Lídia Jorge, tão aparentemente diferentes, mas tão iguais na sua entrega à literatura. Por isso, li os seus últimos livros quase ao mesmo tempo. Porque não há em nenhum dos dois, embora em registos literários muito diferentes, nada de excessivo. Não desbaratam palavras. O primeiro, através de Pasavento, perseguindo uma poética da extinção, da ocultação, os mortos sepultados na linguagem; Lídia recolhendo a matéria impura com que veste a sua escrita, a realidade, onde põe em movimento personagens com inteireza, vivas.
Evoco-os aqui porque, embora cada um transformando, contando, a realidade à sua maneira, ambos são verdadeiros. Ambos pertencem à literatura. Na sua diferença representam aqueles que procuram contrariar a histeria tranquila de grande parte dos escritores da moda, incapazes de traçar os sulcos que muitos anos depois, se os tivessem inscrito, haveríamos de ler. Na maior parte, o que há, hoje, são actores e não autores, que transformam a literatura num ramo pobre e marginal da cultura do espectáculo. Um simulacro de literatura, aproveitado, incentivado por «homens de negócio que editam livros». Por isso, as novidades das livrarias encontram-se inflacionadas por livros de figuras públicas, jornalistas, políticos, historicismos, esoterismos, remakes, best-sellers, bagatelas que se vendem como qualquer mercadoria, porque são, efectivamente, mercadoria efémera.
Já Roland Barthes, nos anos 60, afirmava que a crise não era da literatura, mas sim do livro, do excesso de livros postos a circular por um mercado apenas preocupado com a multiplicação das páginas, do lucro. Só nos restará, então, regressar aos clássicos? A esses regressaremos sempre, hoje, daqui a cem anos, mil anos, porque neles se encontra gravada a história da memória humana. São os livros esplendorosos, raros, assombrosas «extensões da memória e da imaginação» que com paciência encontramos quase escondidos nas livrarias. Que apenas se encontram nos alfarrabistas amantes de livros. E há, também alguns, actuais, ainda mais raros, e difíceis de reconhecer na confusão de títulos lançados em cascata, mas que serão futuros clássicos donde, uma vez abertos a quem os queira ler, se soltará para sempre o sopro que manterá vivo, apesar dos outros, apesar dos «trapezistas do marketing» editorial, o fogo da literatura.
Muito bom seu texto, concordo plenamente, estudo Vila-Matas e exatamente isso que faz vai contra toda essa paparicação de algo que é totalmente supérfluo e em minha opinião não é arte.
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