18 de fevereiro de 2014

Odisseia de desilusão


"Nenhuma viagem é demasiado longa e perigosa, sobretudo se traz de volta a casa. Mas existem ainda casas onde voltar, alguma vez existiram?", pergunta Salvatore Cippico em Às Cegas, o último livro de Claudio Magris, um oceano de palavras em cujas águas imensas e escuras se misturam matéria ficcional, documental, autobiográfica, ensaística, histórica e epistolar através de uma voz confessional que navega à deriva entre a epopeia e o delírio, entre o mito e a realidade, para depois da funesta travessia regressar não a casa, como Jasão, mas a um manicómio, sem o tosão de ouro cuja busca foi a razão da sua odisseia. Claudio Magris trabalha aqui um motivo recorrente na sua obra: o do indivíduo à deriva, orfão da ideologia, já sem figura de proa que o guie no nevoeiro que se adensa sobre o mundo, e que, num derradeiro acto de esperança, se lança para diante, às cegas, avançando e perdendo-se continuamente num "delírio de muitos" - como chamaria Musil -, ora naufragando em travessias marítimas ora no naufrágio colectivo das utopias.  

A pergunta que Salvatore Cippico faz a si próprio, e a nós todos, é se ele, atravessando continentes e séculos, pode regressar a casa, a Ítaca, confirmando o sentido da sua existência ou se será forçado a ir sempre adiante e sempre mais longe avançando e perdendo-se continuamente, num "delírio de muitos", nas ilusões em que fundou, e afundou, a sua vida, descobrindo assombradamente a falta de sentido das coisas e do mundo. Odisseia de desilusão e sem retorno porque esta é uma viagem onde o indivíduo viaja às cegas no turbilhão do mundo, e quando pretende regressar o mundo inteiro já se converteu num país estrangeiro, logo num país para onde já não existe a necessidade de regressar e, muito menos, a de voltar a casa, porque a própria casa em que habitava a utopia também já não existe.

Ao contrário da Odisseia de Homero onde Ulisses regressa a casa com a sua identidade confirmada ou da odisseia de Joyce onde Leopold Bloom também regressa a casa numa viagem circular eliptica, esta é uma odisseia que expressa a impossibilidade de encontrar um significado para a viagem, a errância às cegas que conduz ao naufrágio da existência daqueles argonautas das causas sociais que, depois de terem circum-navegado as utopias, empreendem a impossível viagem de regresso, ao contrário de Jasão, sem o tosão de ouro, roubado, entretanto, por aqueles que ficaram em terra. 

Odisseia sem retorno a Ítaca do revolucionário Salvatore Cippico que, num hospital psiquiátrico, recorda a sua vida, confundindo-a com as de vários aventureiros, uns reais, como Jorgen Jorgensen (1780-1841), que se autoproclamou rei da Islândia, outros míticos, como Jasão, das Argonáuticas, de Apolônio de Rhodes, entre outros que, como ele, se lançaram para diante avançando e perdendo-se continuamente, desagregando-se num "delírio de muitos" como o Ulisses "sem qualidades" de Musil. 

"Mas como lidar com todo este vai e vem, com tantas coisas que se sobrepõem umas às outras, anos e países e mares e prisões e rostos e factos e pensamentos e uma vez mais prisões e os céus fendidos da noite de onde o sangue sai em golfadas e feridas e fugas e quedas... E a vida, tantas vidas, não se pode mantê-las juntas". Através de um delirio de vozes - de Cippico, protagonista e narrador desta odisseia colectiva sem retorno e do seu alter ego Jorgen Jorgensen -  em que ressoam as de outros malogrados perdidos nas dobras da história e que Magris, num oceano de palavras que fluem e refluem livremente, "resgata para a literatura" através da narrativa de um louco sobre a sua própria odisseia no tempo e no espaço, e que se polariza nas categorias antagónicas dos que fazem a revolução, dos que a reprimem e dos que a atraiçoam. 

Salvatore - cuja história Magris já havia contado em Outro mar, em Microcosmos e num dos artigos de Utopia e desencanto - é um daqueles dois mil operários de Monfalcone, militantes comunistas que tinham estado nos Lager alemães e nas prisões fascistas, e que foram, depois, construir o socialismo na Jugoslávia de Tito, cruzando-se no caminho com 300.000 italianos em fuga desde a Istria, Fiume e Dalmacia, para se instalarem na Itália. Salvatore vê-se a si tróprio como Jorgen Jorgensen, aventureiro dinamarquês que viveu no século XIX, participou das guerras napoleónicas, autoproclamou-se rei da Islândia e fundou a capital da Tasmânia. O liga a navegação temerária de ambos é o mito de Jasão, o argonauta grego que partiu em busca do tosão de ouro e teve filhos com Medeia. Só que "ele, Jasão, regressa com o tosão, mas [Salvatore e Jorgen] [...] quando acorda[m] o tesouro já lá não está. Onde está a bandeira vermelha, quem a roubou?"

Como Orfeu, ambos perderam "Eurídice que [os] vê voltar e abandoná-la para sempre e ao nada": Jorgen desertando para as lonjuras do mundo, Salvatore trocando-a pela "bandeira vermelha". O ponto de passagem dessa perspectiva narrativa que mistura biografia, mito e história é, por isso, a figura feminina, que sempre evoca Maria que ora se mostra como a figura esculpida na proa dos navios que avançam temerosamente no mar ora como pecado original pela traição cometida. A inútil traição ao amor em nome dos amanhãs que cantam que nunca chegarão. Por isso, a loucura como derradeira expressão das vidas afundadas. Ou como diz o provérbio da Ístria que abre e fecha o romance: "Caro Cogoi, semo cagai". Em bom português: "Caro Cogoi, estamos fodidos".


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