5 de março de 2014

A última carta de amor


Proust dizia que há apenas um único grande livro que cada escritor escreve ao longo da sua vida. Talvez isso se aplique a Carta a D. (Pianola, 2013), escrita e dedicada por André Gorz à sua mulher Dorine, no epílogo de uma vida partilhada a dois durante cinquenta e oito anos, e que foi o prenuncio de um desfecho shakespeariano, longamente planeado. De uma enorme sublimação estética - que confirma o mito socrático de que o amor serve para criar belos e magníficos discursos -, esta carta é, como acrescenta o subtítulo, a história de um amor nascido "maravilhosamente, quase como um relâmpago", entre dois seres aparentemente tão diferentes.

Publicada no final do ano passado pela Pianola, uma pequena editora independente que, a contra-pelo, considera que os livros não são todos iguais, esta Carta a D. é uma preciosidade que, como desejo, aguarda resposta, já não do seu destinatário original, mas dos leitores que ainda acreditam na dialéctica particular da carta de amor.

O remetente é André Gorz, pseudónimo do jovem austríaco naturalizado francês Gérard Horst ou, quando ainda austríaco, Gerard Hirsch, filho de pai judeu e mãe católica. Conviveu com Sartre e Simone de Beauvoir, tendo sido colaborador na revista Temps Modernes e, depois, fundador com Jean Daniel, do Nouvel Observateur. A sua herança intelectual, que contraria a ideia proustiana do livro único, decorre da inovação epistemológica, adaptando um pensamento com raízes na Escola de Frankfurt à experiência da actualidade, como mostra o seu derradeiro livro filosófico [L´Immatériel, Galilée, 2003], onde explora o potencial de liberdade, de subversão e de emancipação que existe na "economia do imaterial", a despeito das desesperadas tentativas de controlo do novo mundo virtual. Deixa, implícita, uma interrogação. Poderá, ainda, a sociedade recuperar o domínio sobre a economia? Como tentativa de resposta antecipa o surgimento de uma "dissidência numérica" no seio do "capitalismo cognitivo" emergente a partir da crise de um capitalismo que consagra a irredutibilidade das conexões virtuais.

A destinatária é Dorine Key, uma jovem inglesa por quem Gorz se apaixonou irremediavelmente, em 1947, casando-se dois anos depois. O encontro entre os dois foi, confessa Gorz, o acontecimento fundamental da sua vida. Porém, sendo D. a figura de proa, quer na sua vida afectiva quer na criação filosófica, a sua obra transporta apenas um nome quando, na verdade, é fruto de um processo levado a cabo por um casal. Daí a escrita desta Carta constituir, para além de uma assombrosa declaração de amor a um ser único e inconfundível, uma tentativa de reparação de um pecado original: "Eu não gostava de gostar de ti". E Gorz escreve, também, para cumprir um desígnio, defendido pela própria D. O da sublimação literária da extraordinária experiência da vida: "Amar um escritor, dizias, é amar que ele escreva. Portanto, escreve!", pediu-lhe ela. E ele escreveu. Até à morte. O suicídio cometido por ambos, talvez, seja, então, a variação final e esmagadora do grande livro do amor que escreveram a dois corpos durante os cinquenta e oito anos de vida em comum. Coisa rara num tempo em que a fragilidade dos laços humanos ameaça liquefazer um mundo onde até o "amor [é] líquido", conforme metáfora que dá o título ao livro de Zygmunt Bauman.

Pela sua grandeza mítica, esta história de um amor abre um capítulo que ainda não tinha sido escrito na genealogia do discurso amoroso que vai desde Platão a S. Tomás de Aquino, de Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta ou Pedro e Inês a Don Juan, dos trovadores a Goethe, Stendhal, Flaubert ou Eça de Queirós, passando pelas elaborações históricas, filosóficas, simbólicas, psicanalíticas ou sociológicas de Denis de Rougemont, George Bataille, Roland Barthes, Julia Kristeva ou Zygmunt Bauman sobre esse imenso e permanente transfert que condensa a maior parte do som e da fúria da vida e que admite, mais do qualquer outra experiência humana, o devaneio literário. É que seja o amor platónico e transcendente, seja a paixão romântica, seja a pulsão erótica, as histórias de amor que a literatura nos legou sempre foram histórias de amores impossíveis, de traição e de adultério, e raramente de amor conjugal a não ser quando figuras como a separação ou ausência produziam suficiente encantamento lírico ou motivação romanesca.

O amor conjugal, e perpectual, de Gorz e Dorine, de que esta Carta constitui a derradeira e absoluta metáfora, dis-corre através de algumas das figuras amontoadas por Roland Barthes no seu livro Fragmentos do Discurso Amoroso, superando, não obstante a vulnerabilidade de toda a relação amorosa, a dualidade intransponível  dos amantes. Recordando a história da sua relação amorosa com Dorine, Gorz descreve como os dois amantes, graças às qualidades cada vez mais raras da humildade, coragem, fé e disciplina verdadeiras, se abriram ao destino, admitindo a liberdade que habitava no companheiro do amor, transformando a fragilidade da vida em comum na energia que os conduziu através do turbilhão dos dias.

"É pois - tal como no incipit enunciativo de Barthes, nos Fragmentos - um apaixonado que fala e diz": "Vou fazer oitenta e dois anos. Encolheste seis centímetros, pesas apenas quarenta e cinco quilos e mantens-te bela, graciosa e desejável. Há cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca. Sinto de novo no fundo do meu peito um vazio devorador que é apenas preenchido com o calor do teu corpo contra o meu". E o sujeito apaixonado que aqui fala vive, ainda, sob o clarão do relâmpago maravilhoso, permanecendo numa espécie de futuro anterior, em que a nostalgia se funde com promessa do encontro  inventado de cada vez, ou definitivamente inventado. O não-tempo do amor retraçado por Julia Kristeva, em Histoires d´Amour: "Até amanhã, até sempre, como sempre, fiel, eternamente como antes, como sempre foi, como quando já tiver sido, para ti... Permanência do desejo..." E permanência da visão estética: "bela [e] graciosa" que "não aloja nenhuma qualidade mas apenas o todo do afecto", segundo a figuração de Barthes. O grau zero de todos as possibilidades donde nasce o desejo por D. e não por outro corpo.

Dorine é, na carta, o próprio atopos sugerido por Barthes:atopos o outro que amo e que me fascina. Não posso classificá-lo, pois é precisamente o Único, a Imagem singular que veio miraculosamente responder à especialidade do meu desejo". Redimindo-se da maneira como a traçou em obras anteriores - como uma jovem frágil e perdida que não sobreviveria sem ele -, retraça-a, agora, como independente, inteligente e livre, que o supera em todas as suas capacidades e que teve um papel essencial no pensamento que ele criou. Nesse sentido, os contornos da autoria, do eu e do tu, confundem-se na narrativa, uma vez que esta balanceia entre a primeira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural. As recordações e as amizades, o trabalho criativo e a cumplicidade política, tudo é pertença do nós. É o eu que pede desculpa pela postura intransigente do passado, que ama perdidamente e que lhe dói o outro.

Carta termina com uma reivindicação do amor: "À noite vejo por vezes a silhueta de um homem que segue um carro funerário, numa estrada vazia e numa paisagem deserta. Esse homem sou eu. O enterro é o teu. Não quero assistir à tua cremação; não quero receber um frasco com as tuas cinzas. Escuto a voz de Kathleen Ferrier que canta Die Welt ist leer, Ich will nicht leben mehr [O mundo está vazio, não quero viver mais] e acordo. Observo a tua respiração, a minha mão acaricia-te. Cada um nós gostaria de não sobreviver à morte do outro. Muitas vezes dissemos um ao outro que, no caso impossível de termos uma segunda vida, queríamos passá-la juntos".  

Em Amor Líquido, escreve Zygmunt Bauman que "poucas coisas se parecem tanto com a morte como o amor realizado. Cada chegada de um dos dois é sempre única, mas também definitiva: não suporta a repetição, não permite recurso nem promete prorrogação. Deve sustentar-se por si mesmo". O amor e a morte foram para Gorz e D. o ponto de encontro sem promessa de retorno porque tudo já havia sido dito. Na vida em comum e na última carta escrita.

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