Junto à porta de embarque número 60 do aeroporto Toribio Merino, em Santiago do Chile, vejo passar em formação cerrada a tripulação do voo Suiss 97 que daqui a pouco se fará aos céus por cima da cordilheira branca. Com passada rápida e decidida, cruzam o umbral que leva ao grande pássaro metálico que descansa na pista, ignorando os passageiros, quietos e silenciosos, que esperam o embarque. E neste derradeiro território a roçar os abismos duvidosos por vir, inspecciono à minha volta aqueles que comigo sobrevoarão, a doze mil metros de altura, montanhas crepusculares, cidades invisíveis, mares nocturnos. Alguns conversam em alemão, outros em castelhano, muitos em português do Brasil, porque o avião fará escala em São Paulo. Ninguém ousa falar do tributo inconfessável que, às vezes, é pedido a quem ousa desafiar os céus. Nem ninguém estaria disposto a pagá-lo. Eu não. Por isso, entre os passageiros suspensos no espelho deste aeroporto austral, procuro aquela criança que viaja sempre comigo em todos os aviões que cruzam os altos mapas em que me adentro e quando a encontro sei, então, que o avião que me aguarda do outro lado do espelho não cairá.
Subo para aquela espécie de cápsula intercontinental que, veloz, roncando, atravessa obliquamente as nuvens até estabilizar nos céus deixando para trás a cidade nervosa. Comunicam que devemos manter os cintos apertados. Turbulências nos Andes. Estremecimentos. Voamos. Não sei como fazem para manter toda esta massa no ar. Seguramente é aquela criança que no seu sonho colorido vai sustendo as enormes asas metálicas que nem precisam de bater para avançar na insustentável leveza do caminho que o avião vai desenhando atrás de si. Regresso do Chile, de outro continente, de outro hemisfério sobrevoando a cordilheira branca ao segundo entardecer. Nos corredores laterais passam hospedeiras suíças empurrando carrinhos com refeições empacotadas, perguntando o que desejamos beber com reiterados sorrisos plásticos. A noite real, lá fora, envolve o avião. E cá dentro apagam-se as luzes. Há passageiros que lêem e se eu fosse Vila-Matas, levantar-me-ia e, dissimuladamente, como um voyeur aéreo, atravessaria, agora, de ponta a ponta, a penumbra do corredor e, sob a luz oblíqua que desce do tecto nalguns assentos, num acto do mais puro voyeurismo, procuraria saber o que lêem estes passageiros da noite.
Mas não me atrevo a tanto e abro Los detectives salvajes, de Bolaño. Vou na página duzentas e noventa, faltam, portanto, trezentas e dezasseis páginas que devem chegar aguentar as três horas de viagem até São Paulo, mais as doze, depois, até Zurique, mais quase três até Lisboa. Vou no rasto de Cesárea Tinajero, a misteriosa escritora desaparecida no México após a Revolución, e as dezoito horas de voo correspondem ao tempo canónico da busca errante que retomo nesta cápsula voadora que vai rasgando a penumbra rumo ao norte. Leio furiosamente este tremendo romance infra-realista na companhia dos poetas desesperados e traficantes ocasionais que Bolaño me vai apresentando, bifurcando-me através das ruas selvagens do México DF, do «espacio oscuro que es la ciudad de Managua [...], una ciudad que sólo conocen sus carteros», das ramblas nervosas de Barcelona, mendigando em Tel-Aviv, escapulindo-se da morte em Monróvia.
Há passageiros adormecidos, alguns com pesadelos recorrentes a preto e branco. Eu não. Iluminado pela minha lâmpada pessoal, numa dobra da página, adormeço por momentos e tenho «sueños, no pesadillas, sueños musicales, sueños de preguntas transparentes, sueños de aviones esbeltos y seguros que cruzaban Latinoamerica de punta a punta por brillante y frío cielo azul». Indiferente aos sonhos e aos pesadelos alheios dos restantes passageiros e ao meu thriller bolañiano, a jovem engenheira chilena sentada ao meu lado que vai para Barcelona à procura de trabalho prefere o zapping pelos programas oferecidos pelo vídeo do avião. Lá fora, as turbinas ferem já um céu de muitos azuis verticais sobre o primeiro amanhecer de uma Lisboa que o avião ignora. Antes, ainda, a montanha mágica, bifurcação estranha antes experimentada por Montano, a personagem que Vila-Matas encontrou no Chile e que «después, directamente desde la orilla del batallador Pacífico, viajó con él a la cumbre de una montaña suiza». Este também o destino incerto para onde me vão conduzindo as asas metálicas deste avião, agora menos perdido, menos adormecido, atento já ao lento mover de asas do outro avião que, daqui a pouco, me há-de levar para Lisboa.
Regresso de Santiago do Chile aonde fui convidado para participar no Encuentro Internacional de Escritores. Foi a primeira vez que fui ao Chile. Antes já tinha estado noutros países da América Latina. Nunca no Chile. Queria ir ao sul profundo, mas os dias não chegaram. Fiquei-me por Santiago, confusa, nervosa, híbrida, às vezes secreta, invisível. E escapei-me para Valparaíso, luminosa, nostálgica, arruinada, caótica. Santiago estava igual à cidade anterior que Bolaño deixou para trás - disse-me -apesar de «los nuevos edificios, las nuevas avenidas que no significan nada», [...] aún se comen empanadas chilenas y uno puede ir a saborear al Nacional o al Rápido. Aún se comen barros-luco o barros-jarpa o charcareros». Mas Bolaño, que se foi tornando num mexicano salvaje, já cá não está e se estivesse, depois do que vi e ouvi na Villa Grimaldi, dir-lhe-ia que se equivocara, pois o mal já não anda à solta em Santiago, o umbral do medo foi encerrado e a chave atirada para o fundo de um abismo. E isso significa tudo. Ou quase tudo.
Mas onde viu Carlos Fuentes «as mulheres formosas de olhar cor de uva» que eu não as encontrei nem em Ahumada, nem em Lastarria, nem em Bellavista? Nem nos cerros porteños, ao entardecer? Apenas vi rostos de chilenos que pareciam chilenos cruzando as ruas nervosas de Santiago, chilenos entrando e saindo das lojas da moda nas ruas Moneda, Huerfanos, Merced, chilenos deambulando na Plaza de Armas, chilenos bebendo pacificamente pisco sour na Plaza Mulato Gil de Castro, chilenos em amplexos amorosos cerro de Santa Lucia acima, chilenos rindo nas esplanadas de Bellavista, chilenos observando os livros caros na Feria del Libro, chilenos subindo o funicular do cerro San Cristóbal num domingo à tarde azul, chilenos perdendo-se nos labirintos subterrâneos do metro de Santiago, chilenos quietos e silenciosos em salas de espera de estações rodoviárias, chilenos partindo em autocarros lotados para viagens longitudinais, chilenos circulando em automóveis japoneses na Avenida O´Higgins, chilenos fardados de carabineros, de colegiais, de bombeiros, chilenos apregoando mariscos e peixes estranhos nos mercados, chilenos com feições tristes de índios mapuche, chilenos festejando a vitória do Universidad de Santiago no último jogo do campeonato nacional, chilenos nem demasiadamente tristes nem demasiadamente alegres, chilenos, às vezes, melancólicos, outras vezes arrogantes, chilenos que querem ser europeus e não latino-americanos, chilenos demasiadamente parecidos com portugueses. Chilenos num país passillo, «al este limitado con la cordillera de los Andes, al norte con el desierto de Atacama, al sur con la Antártida y al oeste con el oceáno Pacífico [...] chilenos mirando perplexos hacia los cuatro puntos cardinales».
Não digo que não fossem escritores toda a chusma que se reuniu no dia da inauguração do Encuentro Internacional de Escritores, no Museu de Bellas Artes. Mas que não estavam ali para transgredir, isso soube-o logo mal começaram a dedicar-se mutuamente os seus livros, porque, talvez para eles - leio em Bolaño - o «ejercicio más usual de la escritura es una forma de escalar posiciones en la pirámide social [...] y no reniegan de lo que se puede renegar y se cuidan mucho de no crearse enemigos o de escoger a éstos entre los más inermes. No se suicidan por una idea sino por locura o rabia».
E o mesmo observo na Feria del Libro de Santiago, na Estación Mapoche. Deambulo pela feira, vasculhando nos expositores as novidades chilenas, buscando entre a rasura existencial ali amontoada, algum rasgo capaz de dar conta, ainda, da consternação do mundo. E constato que também no Chile, há um efeito Bolaño. Ali, na Anagrama, encontram-se preferencialmente expostos todos os bolaños que os leitores vão folheando, como se, postumamente, também para ele, las puertas, implacablemente, se le [abrieran] de par en par.
«E outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo / cidade pavorosamente perdida, outra vez te sonho aqui», diria Álvaro de Campos se agora se fizesse comigo a terra neste avião que não cobrou tributo. Não a Lisboa obscura, «con gente vestida de negro, con casas hechas de caoba o de mármol negro o de piedra negra», imaginada num sonho febril por Bolaño, mas a Lisboa que acrescenta «azul de muitas cores / ao outro azul que os vossos olhos vêem», como viu Pedro Tamen.
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