É no porto onde acostam embarcações adormecidas, sobrevoadas por bandos esfomeados de gaivotas e pelicanos, que se deve procurar o carácter porteño de Valparaíso onde marinheiros de todas as épocas viram a sua imagem abandonada no espelho quebrado da baía que reflecte o anfiteatro de casario colorido descendo num dédalo de ruelas, becos e escadarias ziguezagueantes os quarenta e dois cerros «secretos, sinuosos, recoderos», sobranceiros ao Pacífico. Mas é nos cerros, sob o azul-lavanda de um céu cristalino, ou encobertos nas sombras do segundo crepúsculo, que sobrevive, ainda, a sua verdadeira alma. Talvez, por isso, aquilo que melhor define ainda hoje Valparaíso é a convivência entre a luminosidade diurna que cobre o casario desalinhado e a obscuridade nocturna dos seus becos de pesadelo onde marinheiros de passos incertos, às vezes, ainda se perdem.
Como um funâmbulo, persigo os passos desses marinheiros que, desertando por uma noite dos navios baleeiros, depois de terem sobrevivido à travessia do Cabo Horn, aqui vinham naufragar, escadarias acima, nos cerros, em tempestuosos leitos. E dos outros que, rumando à Califórnia em busca de ouro, aqui ficariam para sempre, paralizados pelo canto das sereias numa qualquer pista de tango perdida na dobra secreta das suas ruas e praças irrigadas pelo sopro salgado do mar. No Paseo Veintiuno de Mayo, donde antes habia grandes carnavales, subo ao assalto das colinas por um dos quinze funiculares ainda em actividade, o Artilleria, de 1893, verdadeira peça de museu habitado pela nostalgia de um tempo em que Valparaíso conheceu a prosperidade, antes de se transformar, primeiro, num porto fantasma, arruinado pelas novas rotas de navegação após a construção do canal do Panamá e, depois, na selva de contentores nervosos que observarei desde o mirador Diego Portales. Primero, cruzo um obscuro corredor e passo pelo torno de bronze que contabiliza os passageiros que sobem; entro num velho carro de madeira que depois de um súbito solavanco começa a subir guinchando, deslizando sobre carris oleados, puxado por roldanas e correntes; e, uma vez em cima, recebe-me «un hombre palido, um misterioso angel de sombra». E no mirador Diego Portales é a cidade inteira que resplandece debruçada sobre o Pacífico através de um labirinto de ruelas com velhas casas desequilibradas, imbricadas umas nas outras, amparando-se mutuamente, enlouquecidas. E a mesma baía que viu Gabriela Mistral: «Bahia mayor de Valparaiso! Anda en novelas y poemas ingleses y noruegos. Quien navega la conoce y la cuenta al contar sus mares».
Desço pela Escalera de la Muerte até à rua Prat, onde Jorge Luis Borges se assomou, em 1977, depois da apresentação de um livro de Maria Luisa Bombal, e sigo, depois, pela rua Esmeralda, onde ainda sobrevive o velho letreiro do Café Vienés já desaparecido, frequentado nos tempos luminosos de Valparaíso pelas senhoras do cerro Alegre que ali vinham ouvir valsas interpretadas por uma orquestra vivo. Por breves instantes, consigo imaginar o esplendor perdido de um tempo efémero em que, a seguir a São Francisco, Valparaíso era a principal cidade do Pacífico, quando as suas lojas exibiam as novidades europeias e os seus teatros as mesmas peças da moda que faziam o gáudio dos espectadores em Paris e Londres. E já na Plaza Anibal Pinto, em frente da fonte de Neptuno, entro no Café Riquet para comer o famoso manjar con nueces, servido por velhos empregados que parecem saídos de um tempo que já não existe.
E novamente um funicular, o mesmo em que o alfandegário Rubén Darío subiu, em 1888, para no cerro Concepción contemplar «ondeantes cortinas de enredadera» e assomar por janelas de guilhotina, como escreveu em Azul, e perder-se depois por escadarias que não conduzem a parte nenhuma. E ao entardecer, perco-me em deambulações pelo cerro Alegre: Pasaje Cambridge, subida Templeton, paseo Atkinson e, sobretudo, paseo Loti, território mágico que evoca o escritor francês que por aqui também errou. E depois de um carmenere crepuscular fico na pensão Carrasco, em Concepción, sonhando breves sonhos a preto e branco que antecipam o dia por vir.
Sigo os passos de Neruda que no cerro Bellavista mandou erigir uma das suas residências na terra, vou depois por Florida e por Mariposa, cruzo recantos surgidos do nada, casas penduradas no vazio, umbrais escuros cujo limiar não ouso atravessar, descendo «escaleras [que] parten [...] de arriba y se retuercen trepando. Se adelgazan como cabellos, dan un ligero reposo, se tornan verticales. Se marean. Se precipitan. Se alargan. Retroceden. No terminan jamás», povoadas de bares, onde ao som de uma milonga qualquer se servem bebidas centenárias a bebedores sonolentos».
E, de novo na baixa ruidosa, confusa, caótica, agora como um detective salvaje - única maneira de avançar incólume na manhã apocalíptica que se estende ao longo da nervosa avenida Pedro Montt, enxameada por um povo de vendedores ambulantes e cães errando nos passeios - apanho o último trolley que me levará ao terminal de autocarros para Santiago.
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