A literatura, então, como «uma tentativa de tornar real a vida», escreveu Pessoa. Ignorava o poeta que, algumas décadas mais tarde, Enrique Vila-Matas haveria de fazer da possibilidade de introduzir o real na ficção uma marca do seu estilo pessoal através da qual a aparência de verdade levada até ao extremo converte aquilo que no início é apenas verosímil numa nova forma de realidade que não necessita de nenhuma outra explicação que a da evidência da ficção. E de uma ficção que questiona o nosso limitado conceito de verosimilhança e nos transforma em exploradores mentais de mapas obscuros em cuja cartografia abismal nos adentramos para nos aproximarmos mais da verdade.
Trata-se, então, aqui, de um conceito de verosimilhança que remete não tanto para aquilo que verdadeiramente entendemos por realidade, isto é, aquilo que acontece, mas mais para aquilo que poderia ter acontecido, que poderá acontecer, introduzindo, assim, na ficção «um sentido de possibilidade» musiliano que transforma as personagens «correntes e vulgares» de Exploradores do abismo em expedicionários de mundos paralelos, protagonistas de vivências nunca experimentadas que sobrepõem ao tédio quotidiano com a insolência de quem possui a fórmula mágica que o há-de esconjurar.
Lembram estes exploradores vilamatianos «esses homens [musilianos] do possível [que] vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos» (p. 41) que constituem simulacros de sentido num mundo que Musil sabe sem sentido mas que insiste em narrar em O homem sem qualidades (Dom Quixote) apesar de «tudo ter deixado de ser narrável e não seguir já nenhum fio» (p. 827). E lembra-nos Vila-Matas - que se cruzou com Musil à beira de um abismo mental no final de O mal de Montano - que se trata de «um novo modo de narrar que se constitui em permanente ensaio da vida» e que «abriu, sem fechar, o mais amplo horizonte que se oferece ao romance moderno» respondendo (tal como Hermann Broch) àquilo a que Kundera classificou como o apelo do pensamento, «não para transformar o romance em filosofia, mas para mobilizar, com base narrativa, todos os meios, racionais e irracionais, narrativos e meditativos, susceptíveis de esclarecer o ser do homem; de fazer do romance a suprema síntese intelectual».
Um convite, então, não para um passeio romanesco ao passado, mas para uma longa expedição através dos mapas obscuros do «apocalipse alegre» (expressão que sintetiza, segundo Broch, a forma como os austríacos viveram nihilismo de fin de siècle) cujos abismos cacanianos me disponho agora a explorar num programa de leitura para afrontar o vazio deste «mundo de qualidades sem homem» em que vamos vivendo. Isto é, escolhendo a qualidade de leitor sem qualidades, aberto a toda contingência, a toda a possibilidade de leitura que pode surgir numa qualquer dobra das duas mil páginas da monumental edição da Dom Quixote, numa autorizada tradução de João Barrento.
Como vai, João? Seu blog está com um visual ótimo, parabéns pelo novo espaço. Sobre o post, seus apontamentos sempre são um incentivo e Bolaño não me é estranho, mas sei pouco dele. Dentre os autores latinos, há essa similaridade preferencial de compor dentro dos romances, os altos e baixos que o passado político carrega. É um campo fértil, um plano de fundo que se funde no sangue como uma espécie de parcela de identidade. O peruano Mario Vargas Llosa desenvolve isso com primor e por exemplo cito um de meus livros preferidos dele, Conversa na Catedral. Devo registrar meu agradecimento a você, que sempre nos brinda a todos com textos maravilhosos. Abraços. :D
ResponderEliminarO romance póstumo chama-se 2666. Acabou de sair em alemão, mas ainda não li. Um amigo contou-me que é excelente! e disse-me que o livro, dividido em 5 partes, era para ser editado em 5 anos consecutivos - uma ideia de bolaño que não foi "respeitada".
ResponderEliminarSe o João Ventura vier a ler o livro antes de mim, vou ter o maior prazer em ler a sua "crónica" e se o fizer depois, virei cá dar uma olhada, a ver se o nosso olhar e o sentimento que o acompanha e guarda é, no caso de bolaño como noutros, idêntico ;)