Há alguns anos atravessei de comboio o território que corresponde hoje ao mosaico de novos países que resultaram da desagregação da antiga Jugoslávia e a imagem que ainda guardo dessas terras corresponde à lenda que agora leio relatada por Ali-hodza Mutevelic´no romance de Ivo Andric´, A ponte sobre o Drina [Cavalo de Ferro], um território cuja superfície foi arranhada pelas garras do demónio, formando «profundos rios e ravinas, dividindo umas terras de outras e separando os homens, impedindo-os de viajar por essa terra que Alá lhes tinha dado para seu governo e sustento». Por isso, conta-nos, ainda, o hodza, «o maior e mais abençoado bem-fazer é construir uma ponte (…) e o maior pecado é mexer nelas».
E, por estes dias em que as pontes de Mitrovic que separam as secções sérvia e albanesa da cidade se encontram encerradas pelos soldados da KFOR para prevenir males maiores na sequência da proclamação unilateral da independência do Kosovo – festejada bizarramente nas ruas de Pristina com bandeiras de países estrangeiros -, vou entrando no Hotel zur Brücke, sobranceiro ao Drina, onde, no romance de Andric´, converge o universo multi-étnico de Visegrad, e pergunto-me quais os demónios que vieram arranhar com as suas garras esta terra, cavando os abismos de medo e ódio que aí estão à espera que os anjos estendam de novo as suas asas para que os homens os possam franquear, como na lenda contada pelo hodja.
As histórias d´A ponte sobre o Drina passam-se na pequena cidade bósnia de Višegrad, e têm por palco a desditosa ponte fronteiriça que a partir de 1992 foi lugar de execução pública de muçulmanos que eram lançados à corrente tumultuosa do Drina por extremistas sérvios [como se retrata no filme homónimo de Xavier Lukomski que passou, creio, num DocLisboa recente], numa encenação trágica da mesma limpeza étnica que os cetnici de Milosevic e Karadzic iam multiplicando por toda a Bósnia transformada num teatro da crueldade cujo palco principal foi a cidade dilacerada de Sarajevo. Aquela Sarajevo cuja paisagem entre ruínas atravessámos no filme de Theo Angelopoulos, O olhar de Ulisses, onde Harvey Keitel empreende uma espécie de jornada épico-catártica de um Ulisses contemporâneo em busca do passado e do sentido para a própria existência desolada: «Quando eu voltar será nas vestes de outro homem. O meu regresso será inesperado…»
Destes episódios não conta o romance, nem poderia contar porque Ivo Andric´ já não os testemunhou. Nesse magnífico fresco que é A ponte sobre o Drina, Andric´ conta-nos sim do bulício humano na cidade de Visegrad – sérvios ortodoxos, croatas católicos, judeus sefarditas, turcos, muçulmanos e, no último escalão social, uma chusma de ciganos utilizados como carrascos em matanças incendiadas pelos ventos dissonantes da história – cujo destino se traça em torno da «eterna ponte, eternamente igual a si mesma, [sobre] as águas verdes, espumosas e agitadas do Drina». E conta-nos, também, episódios tormentosos conduzidos, então, pelos muçulmanos contra os sérvios durante o longo período de ocupação otomana – de que a cruel cena do empalamento do hajduk sérvio relatado no romance constitui metáfora absoluta -, mas que a manipulação mediática actual tem silenciado por considerar politicamente incorrecta a divulgação dessa outra face da história.
«Croata por origem e católico por fé, sérvio por adopção, bósnio por nascimento e pelos matizes da sua própria obra, jugoslavo por determinação e identidade» - como o retrata escritor croata Predag Matvejevic, em Le monde “ex” [Fayard] -, há quem critique em Andric´uma visão que tende a apresentar a época otomana retratada na sua obra, em coerência com a historiografia nacional sérvia, como um período de singular sofrimento sérvio, extigmatizando assim os muçulmanos da Bósnia como «renegados» por terem adoptado a cultura do invasor, comparando-o com Emir Kusturika cuja posição relativamente à questão bósnia sempre foi muito apreciada em Belgrado. Talvez por isso, os nacionalistas croatas o tenham acusado de ter traído a sua própria nação; e os nacionalistas sérvios dele se tenham apropriado, ignorando a sua visão comospolita; e os nacionalistas bósnios muçulmanos lhe tenham reprovado ter descrito o sofrimento da população cristã sob o domínio turco.
Mas estas, sim, todas elas, visões parciais e desfocadas de um escritor que, acima de tudo, foi sempre «balcânico e integrador» como o definiu o escritor triestino Claudio Magris: «Sérvio pareceu-lhe ser a expressão que melhor equivaleria a jugoslavo e esta, por sua vez, não é mais que a ambição de bósnio, essa forja de história e vida, essa unidade captada nas diferença e construída, também, através do conflito, que ele aprendeu na sua terra natal» [Utopia y desencanto, Anagrama]. Isto é, na Bósnia, que sempre foi para ele a dolorosa metáfora da existência e da convivência atraiçoadas, para a qual se exigia, como ele dizia, «quatro vezes mais de amor e de compreensão mútua» que para o resto dos países. Porque a Bósnia era – ainda será? - um mundo baseado na fragmentação e na rejeição de qualquer programa de inclusão globalizadora, que haveria de degenerar na homogeneidade étnica agrilhoada dentro da rigidez das fronteiras cavadas após a última guerra balcânica que «apenas o ódio consegue transpor», estilhaçando a utopia cosmopolita de Sarajevo.
O que verdadeiramente nos conta Andric´é a vida dos homens e mulheres que construíram a ponte de Visegrad e a vida daqueles que ao longo de cinco séculos foram protagonistas, ou apenas vítimas, dos muitos conflitos que assolaram aquela região dos Balcãs: «tais acontecimentos foram recordados e contados juntamente com as histórias sobre a construção da ponte durante muito tempo (…) por fim, passaram a lenda, como a das fadas, Stoja e Ostoja e outras maravilhas semelhantes» – que se revelam ao longo de séculos nessa desditosa ponte transformada em lugar de passagem, de encontros, de conversas, de conspirações, de suicídios, de execuções; de trânsito de exércitos em debandadas, uma vezes, de desfilada de exércitos vitoriosos, outras vezes, testemunhando o desmoronar de Impérios e o surgir de novas nações, enquanto «a ponte sacudia de si, como quem sacode o pó, todos os traços que nela deixavam os caprichos humanos ou os acontecimentos efémeros e permanecia, depois de tudo passar, inalterada e inalterável».
E nesse contar Ivo Andric´ lembra o grão-vizir Mehemed-Paxá que mandou construir aquela ponte sobre o Drina. É que o vizir era ele próprio bósnio de nascença, de uma cidade da montanha; e era um menino de dez anos de idade, cristão, quando os turcos o levaram para Istambul como tributo de sangue; mais tarde tornou-se almirante e genro do sultão. Mas «aquela estranha dor que trouxera da infância na Bósnia, na barca de Višegrad, o punhal negro, lancinante, que de tempos a tempos lhe cortava o peito em dois» nunca o abandonaria. Tal como a sua identidade bósnia que de vez em quando lhe fazia sentir que nele próprio vivia também um outro, constituindo a ponte que mandara construir aquilo que ligava as duas metades de si. Ora, Andric´ foi, também ele, um construtor de pontes, como ele próprio confessa numa crónica intitulada, precisamente, As pontes: «De cada vez que evoco as pontes vêm-me à memória não aquelas que eu atravessei, mas aquelas (…) onde o homem se confronta com obstáculos. (…) Grandes pontes de pedra, testemunhos de épocas esgotadas nas quais, se nelas tivesse vivido, penso, tê-las-ia construído de outro modo» [cit. por Predag Matvejevic, op. cit.]. Talvez, por isso, por não se rever nas pontes desditosas erguidas entre o Oriente e o Ocidente que, parece, já só o ódio consegue franquear, Ivo Andric´tenha nos últimos anos da sua vida preferido dar-se como desaparecido numa terra cavada pelos abismos negros de todos os nacionalismos.
Para além da maravilhosa escrita de Andric que, apesar de Prémio Nobel, é, muitas vezes esquecido, tanto que só (muito) tardiamente foi traduzido, um livro absolutamente fundamental para quem quiser perceber "Os Balcãs.
ResponderEliminarCuriosamente, retenho, citando de cor (não sei se corretamente), uma frase que me marcou muito "... os Bósnios só foram felizes e prósperos quando governados por outros..."