«E como eram as ligas de Madame Bovary?», interroga-se Francisco Umbral no retrato que traça da personagem de Flaubert num pequeno livro que toma por título precisamente essa interrogação [Campo das Letras, 2005]. É que apesar da miniaturização estética do romance esse pormenor nunca nos é revelado, muito menos no final daquele passeio de fiacre, ao ritmo ofegante do cavalo e à deriva através das ruas de Rouen, vedado aos ollhares indiscretos dos transeuntes e, sobretudo, ao voyeurismo dos leitores, pelas cortinas descidas: «E no cais, no meio de carroças e de barricas, e pelas ruas, sobre os bancos de pedra, os burgueses arregalavam os olhos perante aquela coisa extraordinária na província: uma carruagem com os estores descidos aparecendo assim constantemente, mais fechada que um túmulo e sacudida como um navio». Mas as ligas literárias, se é que Emma as usava, ficarão para sempre no segredo daquele fiacre, deixando ao leitor apenas a possibilidade de as imaginar descaídas sobre as carnes brancas de Emma enquanto esta se entregava ao amante. Mesmo sem ter mostrado as ligas, Flaubert não se livraria de ir a tribunal, em 1957 - já depois da edição de Michel Lévy -, acusado de ofensa à moral e à religião por causa de Madame de Bovary publicado, primeiro, em fascículos quinzenais na Revue de Paris [1956-1957], donde fora eliminada a pedido de Maxime du Camp, editor da Revue, a cena do fiacre: «A tua cena do fiacre é impossivel, não para nós que nos estamos nas tintas, não para mim que sou responsável pela edição, mas para a polícia de costumes que nos condenaria sem apelo». Contudo, embora publicando a cena do fiacre em 1857, Flaubert sucumbiria à moral burguesa «assassinando» Emma em 1857, tal como Eça «assassinaria» Luísa duas décadas mais tarde.
E como eram as ligas de Luísa? «Ajoelhou-se, tomou-lhe os pezinhos entre as mãos e beijou-lhos; depois, dizendo mal das ligas tão feias, com fechos de metal, beijou-lhe respeitosamente os joelhos» [O Primo Basílio]. Aqui não haveria processo, talvez por tudo se passar num quarto de hotel e não num fiacre de «estores descidos«, «aos solavancos», mas a revelação das ligas seria apenas o primeiro mostrar de um detalhe da roupa interior de Luísa, num romance que persegue o modelo de adultério de Flaubert (ou, mais exactamente, dos romances de adultério do século XIX, de Ana Karenina de Tolstoi a Effi Brist de Fontane), mas que mostra detalhes que Flaubert preferiu esconder atrás dos estores descidos de um fiacre. Talvez por isso Borges tenha afirmado: «Eça de Queirós li e reli. Parece-me que só agora está a ser reconhecido. Mas Zola já havia dito que O Primo Basílio era muito superior a Madame Bovary». Contudo, a ruptura de Eça com o seu modelo flaubertiano só surgiria em Alves & Cª, ao poupar à morte, numa história de adultério feminino, a protagonista. Menos sorte tiveram Emma e Luísa, vítimas do fatalismo flaubertiano.
E que dizer da Ema de Vale Abraão, de Manoel de Oliveira? A atracção pelo luxo, as ilusões, o desejo que inspira aos homens, valem-lhe a epíteto de Bovarinha. Conhecerá três amantes, mas esses amores sucessivos não conseguem suster um crescente sentimento de desilusão, que a leva a dizer que vive num «estado de alma em balouço». Também Ema morrerá - acidentalmente? - num dia de sol luminoso, depois de se ter vestido, com ligas, como se fosse para ir a um baile... Talvez, no filme de Manoel de Oliveira, baseado no romance homónimo de Agustina Bessa-Luís, a morte não seja uma expiação da culpa, porque tudo o que aí acontece é colocado, do princípio ao fim, sob o signo do feminino, de um olhar feminino pousado sobre o mundo, ao contrário da outra Emma que a androgenia de Flaubert proíbe de olhar à sua volta. Não, até porque Vale Abraão, mais do que uma adaptação, é uma reescrita do romance de Flaubert, questionando a sua própria matéria romanesca, preferindo a possibilidade de emancipação face à fatalidade da condição feminina. Talvez um outro mostrar de ligas, diferente, também, daquele de Luísa, do Primo Basílio. «Eu não Madame Bovary», diz Ema no filme.
E vem tudo isto a propósito de Madame de Bovary, de Flaubert, que releio não tanto para apreciá-lo enquanto modelo do romance de época, mas sobretudo para confrontá-lo - o que penso fazer a seguir - com essa espécie de «enciclopédia da estupidez humana», segundo o próprio Flaubert, que é Bouvard e Pecuchet (admirado por Borges que não se cansou de o elogiar: «É um dos livros mais fortes que conheço.») -, publicado em 1881, precisamente para dinamitar, despedaçar (Enrique Vila-Matas) aquela perfeição naturalista.
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