«… pensei, larga a técnica de uma vez por todas. Torna-te escritor, engraxador, criado, qualquer dessas coisas americanas, e afirma-te literariamente», anotara Robert Musil logo em 1905, num dos seus cadernos dos Diários. E aos poucos irá esvaziando a sua vida de qualidades, transformando-se, sobretudo a partir da segunda metade da década de vinte, num autor sem biografia, mergulhando na escrita do que viria a ser o romance O homem sem qualidades, como escreverá, em 1948, o seu compatriota Hermann Broch: «Partilho alguma coisa com Kafka e Musil: nenhum de nós tem propriamente uma biografia; vivemos e escrevemos, e é tudo».
Como fazer, então, um retrato de momento de um escritor que se deu como desaparecido da vida, exaltando a ideia de um «homem sem qualidades» a quem a escrita usurpou a biografia, sem escamotear, no entanto, os traços de carácter plasmados na sua obra independentemente da sua vontade? Um homem com uma personalidade simultaneamente neurótica e metódica que só encontrará vazão na sua obra. Um espírito livre de quem não sabe para onde vai, mas que sabe que não seguirá pelos caminhos por onde o querem empurrar. Uma existência nas margens do mundo que ali estava, tão cheio de «qualidades» num tempo apresado por efeito do choque entre a latência adiada e um porvir ameaçador, povoado de máscaras, simulacros e perplexidades que espreitavam na moderna Viena. Mas também um espírito perturbado pelas fantasmagorias do progresso que assolavam a «Cacânia» musiliana e que os dias que viriam se encarregariam de desconstruir como a desintegração da sociedade hierárquica austríaca e da chamada cultura de fim de século que Broch descreveria como um «apocalipse alegre», uma espécie de nihilismo austríaco com estilo. Eis a Viena descrente de Musil, e de Canetti, de Broch, de Hoffmannsthal, de Kraus, de Wittgentein, de Freud, com os seus cafés – Herrenhof, Central, Giensteidl, Museum -, onde o «progresso» carrega já consigo o estigma do transitório, numa espécie de borbulhar de superfície e de vivência não reflectida que, obstinadamente, os seus escritores e filósofos, procuram contrariar com - eles sim - uma aguda consciência nihilista de um tempo terminal admiravelmente retratado por Karl Kraus na sua peça Os últimos dias da humanidade [Antígona].
Talvez partir, primeiro, de As perturbações do jovem Törless (1906), uma quase autobiografia da sua juventude, uma espécie de Werther pessoal e uma «necrologia profética», segundo Hermann Broch, em que o jovem Törless fala da «segunda vida das coisas, secreta e esquiva [...], uma vida que não se exprime em palavras e que, ainda assim, é a minha vida». Por isso, a belíssima epígrafe de Maeterlinck. E depois, perseguir as mais de duas mil páginas de O homem sem qualidades (1930-1942), uma obra que extravasa o realismo crítico da narrativa histórica sobre o destino austro-húngaro, que o próprio autor rejeita afirmando «[não] tentar a sério pintar um quadro histórico e entrar em competição com a realidade». Antes, uma portentosa descida à profundidade da sua alma «pós-moderna», um livro obsessivamente radical em termos literários e humanos, e que será ele próprio, também, fonte de perturbação do autor que sente que «não o domina» [Maurice Blanchot, «Musil», O livro por vir, Relógio d´Água, 1984], até porque esse livro não tem, não terá, as «qualidades» dos cânones literários da época. Um livro insuportável devido à sua «monstruosidade» literária que estilhaçará as fronteiras do género para desagrilhoar o humano na tentativa utópica de alcançar a totalidade do mundo. Um mundo que às vezes se nos apresenta ali como um deserto narrativo, exigindo um árduo caminhar, mas que atravessamos conscientes da imponderabilidade deste romance-ensaio, perscrutando passagens, possibilidades, iluminados pelo «fogo frio» da linguagem onde se aconchega a alma musiliana.
E «o que é a alma [para Musil]? É fácil defini-la pela negativa: é simplesmente aquilo que se esgueira à simples menção das séries algébricas! E pela afirmativa? Parece que é aquilo que nos consegue sempre escapar de cada vez que a tentamos apanhar» [O homem sem qualidades]. E é neste paradoxo de alcançar o inefável que reside toda a pulsão nihilista que afecta Musil e a sua obra, mas contra a qual, no limite, ele se rebela afrontando o vazio do seu tempo, desprendendo-se de todas as qualidades e atributos para melhor perseguir os mundos que existem no mundo.
Daqui decorre, como sustenta João Barrento na sua concisa e esclarecedora introdução às obras de Musil, em publicação na Dom Quixote, o aparente paradoxo das tensões polarizadas que alimentam a sua obra: «entre ética e estética, experiência e conhecimento, intuição e razão [...] que desencadeiam um processo intelectivo, reflexivo, em que o pensamento se debruça sobre «a experiência estética da alma» [Maria Gabriela Llansol]. Experiência estética cuja inefabilidade, ao invés de fechar, abre para uma nova consciência histórica na tentativa da reconstituição fragmentária e contingente da realidade, de que O homem sem qualidades constitui a mais radical aproximação narrativa, como o confirma Herbert Kraft quando escreve que «todos escrevem a partir da própria vida, mas raramente alguém o fez de forma tão alargada como Robert Musil. A forma literária mal consegue encobrir os bastidores da sua própria vida» [Herbert Kraft, Musil, Viena, Paul Zsonay, cit. por João Barrento].
Este o retrato de Musil que me ocorre de momento. E com ele, talvez, fazer «dançar sobre os pés do acaso» [Nietszche] os caminhantes sem qualidades deste mundo.
També els núvols de la foto podrien ser “caminhantes sem qualidades deste mundo”: capaços de volar per una banda però... fortament lligats a terra amb una corda de molts filaments per l’altra. M’agrada el que escrius. Glòria.
ResponderEliminar...como «os exploradores de abismos» de Vila-Matas, portanto. JV
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