17 de julho de 2009
Projecto para uma roda de leitura perigosa
Confessa Roberto Bolaño em Entre parêntesis [Anagrama) que é «muito mais feliz lendo que escrevendo». E eu - que também me confesso esse leitor feliz e dilatório, não o leitor interactivo dos livros da moda, mas o leitor iterativo, assediado pelos labirintos de tinta embebida nos livros da minha biblioteca de quarto escuro - imagino-me, momentaneamente, o engenheiro Agostino Ramelli carregando no pedal e volto a fazer girar a sua Roda da Leitura [cf. Agostino Ramelli: projecto para uma roda de leitura. Paris, 1588] com sete livros de escritores sem qualidades cuja leitura proponho para este Verão.
São sete livros perigosos que compõem uma pequena biblioteca giratória, intensiva e portável, que retiro de uma prateleira sombria e que, aqui, proponho aos leitores subversivos e relutantes que neste Verão arrisquem - ao invés de se deixarem atrair pela superfície brilhante das palavras - atravessar o bosque escuro e sem nome e, por momentos, «viverem errando / na penumbra dos bosques / com a novela perigosa», como se pode ler nuns versos que Pushkin escreveu. Sete livros para serem, talvez, relidos como se os estivéssemos a ler sem que nunca os tivéssemos lido. Porque, como poderia ter dito Heraclito, nunca mergulhamos no mesmo livro duas vezes.
Que vasos comunicantes entre estes livros? Desde logo, o facto de partilharem, na minha biblioteca de quarto escuro, o canto mais sombrio. E também a circunstância dos seus autores pertencerem a uma certa geografia, a da Mitteleurope que mais do que uma condição espacial corresponde, sobretudo, a uma certa ideia de literatura. Depois, porque são autores que ocultaram a sua biografia para melhor poderem afirmar a sua obra. E, ainda, porque todos habitaram de uma forma ou de outra «as regiões do destino onde reina a solidão». Finalmente, porque talvez encaixem na categoria de livros a que Robert Walser se referia quando escreveu em O Salteador (Relógio de Água, 2003): «Às pessoas saudáveis faço o seguinte apelo: não teimem em ler apenas esses livros saudáveis, travem um conhecimento mais estreito, também, com a literatura dita doentia, que vos transmitirá, decerto, uma cultura edificante. As pessoas saudáveis deviam sempre expor-se um pouco ao perigo. Senão, com mil raios, para que serve ser saudável?»
Talvez a vida destes escritores tenha sido «doentia», mas não os seus livros que parecem duplicar a vida que não tiveram inventando outras vidas. «Um romance é a vida secreta de um autor. O obscuro irmão gémeo de um homem», escreveu Faulkner. E não será isso a literatura? Inventar outra vida, inventar um duplo. A dissidência de si mesmo, então, levada a cabo por escritores que, contra todas as aparências, adoptaram os versos de Roberto Juarroz: «Às vezes parece/ que estamos no centro da festa/ Contudo/ no centro da festa não há nada/ No centro da festa está o vazio/ Mas no centro do vazio há outra festa» (Poesía Vertical). E que, por isso, não quereriam ver-se confundidos com nihilistas.
Nem eles nem este leitor sem qualidades que como um bibliotecário-oleiro põe agora a girar esta roda de leitura perigosa e vos propõe as seguintes notas de rodapé:
1. O homem sem qualidades, Robert Musil [1921] (D. Quixote, 2007: um livro sem as «qualidades» dos cânones literários da época. Um livro insuportável devido à sua «monstruosidade» literária que estilhaçará as fronteiras do género para desagrilhoar o humano na tentativa utópica de alcançar a totalidade do mundo;
2. Jacob von Gunten, Robert Walser [1909] (Assírio & Alvim, 2005): o fascinante livro do extravagante escritor suíço precursor de Kafka que escrevia lápis para melhor poder ausentar-se;
3. O castelo, Franz Kafka [1926] (Relógio d´Água, 1999)): um romance inacabado sobre a burocracia institucionalizada que triunfa sobre os homens sem qualidades;
4. As lojas de canela, Bruno Schulz [1933] (Assírio & Alvim, 1987): um livro de contos que transfiguram a pequena cidade de Drohobycz numa espécie de Macondo polaca onde se respira o ardor intenso da fantasia e das metamorfoses contra a colmeia de nevroses e de loucura onde o autor se encontra encerrado;
5. Fuga sem fim, Joseph Roth, [1927] (Difel, 1985): um livro que narra a viagem de errática de um desaparecido, na sua própria viagem de ocultação enquanto autor;
6. Diario, Witold Gombrowicz, [1968)] (Seix Barral, 2005): o diário do escritor polaco escrito durante os vinte e quatro anos que passou na Argentina onde nos são oferecidos aqueles instantes de deslumbramento que Gombrowicz designou por retratos de momento;
7. Os anéis de Saturno, Sebald, W. G. [1995] (Teorema, 2006): um livro onde o passeante Sebald contrapõe à obsessão moderna pelo esquecimento o imperativo redentor da memória, capaz, ainda, de deixar gravado no papel um rasto, que não se extinguirá jamais.
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..dizer que amei o teu texto, e que voltarei a lê-lo. Ótimas indicações de leitura. E um jeito convincente e apaixonado de nos fazer querer ler.
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acho interessante cinco de sete serem em alemão :)
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