Sob o «azul ameno» do céu provençal é toda uma cidade à medida do homem que celebra numa cena multiplicada até à exaustão a festa do teatro. 60 anos depois, sob o mesmo sol de René Char e Jean Vilar, «l´acte este vierge, même répeté», transformando Avignon num lugar de encontro de uma vasta comunidade de artistas e espectadores que se cruzam no emaranhado de ruas e ruelas do casco histórico, celebrando o olhar, o desejo e a imaginação.
Protegidos da tundra suburbana das paisagens indiscriminadas que toldam, hoje, o olhar e o pensamento, deixamo-nos levar na tranquiula corrente humana que flui como um rio manso a partir da Place de l´Horloge em todas as direcções, para depois aportar, aqui e ali, num qualquer palco que nos convida a entrar como se fossemos os hóspedes esperados. E porque por ali deambulamos, distraídos e atentos, absortos e disponíveis para o teatro, facilmente nos apercebemos da aura de um qualquer espectáculo que nos é proposto. Somos atraídos pela natureza insólita dos espaços transformados em salas de teatro de todas as dimensões e feitios: uma capela gótica desactivada, um claustro românico, um velho armazém abandonado, uma antiga fábrica de fósforos, um pátio de um liceu, uma cave de um hotel, um jardim interior, uma garagem, um ginásio, tudo serve como espaço para retraçar as novas figuras do teatro contemporâneo, através de novas linguagens e escritas do corpo, do espaço, da imagem e da palavra. São, sobretudo, lugares vividos, polarizados afectivamente, onde reina uma certa féerie própria dos «espaços liminares» onde o segredo e a descoberta se encontram inscritos em cada canto e recanto de uma paisagen cénica multiplicada na cidade até à exaustão. E há, ainda, nomes que convidam a entrar: Chapelle des Pénitents Blancs, Chapelle du Verbe Incarnée, Théatre du Chien Qui Fume, Le Funambule, L´Étincelle, Le Lucernaire... Ao todo são mais de 130 palcos atravessados por quase 1000 espectáculos diferentes, entre os que integram o festival In e os que fazem parte do Off. Talvez aqui uma contradicção incomprensível ou, então, a formula encontrada para o mercado não ficar de fora, fazendo do festival uma espécie de montra das artes cénicas francesas em cada ano. E são ainda as manifestações paralelas, leituras, exposições, debates... este ano, sobretudo, em torno de René Char, essa espécie de «sentinela solar», que nos ofereceu o mais belo cântico da Resistência em Feuillets d´Hypnos, levado à cena por Frédéric Fisbach, na mítica Cour d´Honneur du Palais des Papes. Ou do poeta e pintor Valère Novarina. Mas há também Jean Vilar - principal mentor do festival, em 1947, segundo a fórmula: «faire d´Avignon le Bayreuth français» - e a sua Casa-Museu.
Durante quatro dias vivi Avignon como uma personagem cénica à procura dos seus palcos, auxiliado pelos programas do festival, os do In e os do Off, quais tábuas de orientação na paisagem labiríntica de ruas e ruelas da cidade muralhada e no dédalo de propostas cénicas em que nos perdemos, onde o mistério e a descoberta se encontram inscritos em todos os cantos e recantos, cruzando-me com múltiplos rostos, parando diante das pequenas salas de teatro, lendo cartazes, críticas, escapando-me em seguida para a porta ao lado onde também se faz teatro, comparando, recusando, escolhendo numa atitude solta, disponível, o espectáculo para aquele momento, para depois, no final, correr para outro mas ficar no caminho, surpreendido com uma nova proposta irrompendo numa esquina. Sim, porque mesmo que levemos connosco todos os programas, há sempre uma qualquer bifurcação que nos faz mudar de trajecto. Porque -escreveu René Char - «les mots qui vont surgir savent de nous des choses que nous ignorons d´eux». Assim se é espectador em Avignon, procurando num teatro qualquer as palavras que ignoramos ainda, mas que depois nos ajudam a compreender o mundo. E isso é o teatro.
Claro que não houve bifurcação que me desviasse de Angeles in America, do encenador polaco Krzysztof Warlikowski, que utiliza a metáfora da sida como revelador de todos os medos de hoje, a sociedade abandonada por Deus que deixou aos anjos a tarefa de cuidar do mundo como funcionários zelosos que apenas se aguentam à base de valium. Ou da estranha e angustiante coreografia de Raimund Hoghe, 36, Avenue George Mandel, que sob um fundo de árias de ópera de Callas nos leva ao mundo dos sem abrigo. Mas o resto, o resto foi resultado do acaso: um nome de um teatro, de uma companhia, um autor, uma oportunidade de horário, um encontro na rua com um actor ou mesmo com o encenador, uma conversa de circunstância com alguém na mesa ao lado numa esplanada... Foi assim que assisti a Hansel et Gretel: um casamento, um pesado segredo, em que os convidados são virtuais; ou a Le Visiteur: Viena, 1938, os nazis invadiram a Austria e perseguem os judeus, Freud, desesperado, recebe uma estranha visita; e a outros tantos espectáculos, angustiantes, comoventes, ácidos, vibrantes...
«Joue et dors», dizia René Char em 1950. Talvez, hoje, dizer, joue et trouble le monde.
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