14 de outubro de 2007

Madrid é uma festa



Num conto breve de Kafka, intitulado A partida, alguém pergunta: - «Conheces, então, a tua meta?». -«Sim [foi a resposta]. Já disse. Sair daqui: esta é minha meta». No meu plano de evasão constantemente renovado, Madrid foi a minha meta no último fim de semana prolongado. Deixo aqui uma espécie de cartografia espiritual de um fim de semana que nunca se acaba, pois já se estende por outros que hão-de vir.

Vivamerica. Madrid nunca se acaba, sobretudo num fim de semana carregado de palavras, sons, imagens e sabores vindos do outro lado do mar para celebrar a alma ibero-americana partilhada por mais de 400.000 milhões de falantes de espanhol e português em todo o mundo. Trata-se do Vivamerica que como uma enorme corrente atlântica se derrama por vários lugares da capital espanhola, deixando escutar a maresia do sul e, às vezes, olhar os abismos onde há muito tempo nos perdemos. Numa carta escrita a Pessoa falava Borges da «vaga gente sem geografia cumprindo em sua carne, obscuramente, seus hábitos». Hoje, outra vaga gente faz o caminho inverso e procura na Europa cumprir a sua carne, os seus hábitos que também já foram os nossos. Outras travessias, portanto, entre a saudade e a esperança de corações emigrantes navegando num mar em cujas águas verdes, azuis e negras se espelha a nossa alma antiga. Por isso, um emigrante equatoriano me dizia, enquanto esperávamos na Casa das Américas por Álvaro Mutis: «estamos aquí, por que vosotros estuvieran allá». E foi à procura dessa América inventada, imaginada, feita de encantos e desencantos que estive há uma semana em Madrid, escutando as palavras de Mutis, Juan Villoro, Pedro Juan Gutiérrez, Mario Delgado Aparain, Luis Sepúlveda, Inês Pedrosa, Fernando Pinto Amaral, entre outros; partilhando a experiência política de Rubén Blades como ministro do Panamá; ouvindo as sonoridades do gótico tropical de San Pascualito Rey. // Álvaro Mutis. A primeira vez que o encontrei, na Rue Vaneau, em Paris, pensei tratar-se de um seu duplo. Sempre a Rue Vaneau. Ou seria na página 293 de Doutor Pasavento [Teorema, 2007]? «Então pude ver que o homem não era parecido com Álvaro Mutis, mas sim o próprio Álvaro Mutis, o escritor colombiano». E agora ali estava ele de novo, com Juan Villoro ao lado, a abrir o festival Vivamerica. «O inventor da melancolia moderna», alguém disse já não sei se se referindo a Chateaubriand ou se a Mutis. O certo é que a conferência inaugural deste «maestro del descalabro» não andou longe do que pensaria o escritor francês se ali estivesse na Casa da América, transformada por instantes numa espécie de nau à deriva conduzida por um navegador do desassossego. «Jamás en su vida sobre la Tierra el hombre ha vivido más solo, más aislado de sus semejantes, más vejado por sus propios inventos, destinados a borrar en él hasta último rasgo de humanidad», afirmou o escritor de Los Elementos del Desastre [1953] perante a plateia que enchia a sala Gabriela Mistral. Lembro-me então da pergunta de Elias Canetti: «Regressará Deus quando a sua criação estiver destruída?». E como se escutasse o murmúrio do meu pensamento, Mutis responde que, haja o que houver, a poesia estará aí para contar o último suspiro do mundo. // Juan Villoro. Converso com Juan Villoro sobre a cidade do México, transformada agora na região menos transparente e no «único lugar donde he tenido miedo de perderme para siempre», como afirmou o escritor Claudio Magris. Digo-lhe que com a minha alma de passeante já lá estive uma vez, anónimo entre os seus quinze milhões de habitantes, perdendo-me num lugar para me reencontrar sempre noutro. Ofereço-lhe a revista Atlântica e peço-lhe cumplicidade na forma da escrita de texto a publicar no próximo número em preparação. Evoca Jaime Torres Bordet que já em 1957 escrevia: «Fuiste, ciudad. No eres. Te aplastaran/ tranvías, autos, noches al magnesio./ Para verter el paisaje/ ahora necessito un aparato/ preciso, lento, de radiografia./ Que enfermedad, tus árboles! Qué ruina/ tu cielo!». Ficou de me enviar uma crónica mexicana escrita sob un cielo artificial. // Rubén Blades. Pergunto a Rubén Blades como pode o cantor de Pablo pueblo passar de denunciante das injustiças a ministro do governo do Panamá. «Es pasar de escribir la denuncia, a una propuesta en la que vas a tratar de ayudar a mejorar las cosas a través de un proceso político», responde-me numa conversa que durou quase uma hora e que será publicada num próximo número da Atlântica. // San Pascualito Rey. Rock, rancheras, balada setentera, huapangos, música de congal e muita experimentação no terceiro disco deste grupo que veio do México.

Círculo de Belas Artes 1. Bruno Schulz. El pais tenebroso. Quem ousar entrar na sala Goya, no Círculo de Belas Artes, em Madrid, poderá precipitar-se num País tenebroso, exposição retrospectiva da obra plástica de Bruno Schulz. A memória da infância asfixiante na sua Drohobycz natal: cenografias de lojas sombrias, manequins de cera, mulheres anónimas, judeus errantes, fiacres nocturnos, seres deformados com feições caninas povoam a geografia de pesadelo de um Schulz que até ao fim de semana eu conhecia apenas desse extraordinário livro de contos que é As Lojas de Canela [Assírio & Alvim]. Trouxe comigo um belíssimo catálogo organizado por Monika Poliwka, comissária da exposição, com reproduções da sua obra plástica, postais antigos de Drohobycz, fotografias de família, alguns originais de correspondência trocada com Witold Gombrowicz. Restos de um pais tenebroso. // Ramón María del Valle-Inclán. Las Galas del Difunto. Ainda no Círculo de Belas Artes, o Teatro del Común, sob a direcção de Celia León, apresentou um texto pouco conhecido de Valle-Inclán, aquele «que se queixava de não lhe permitirem subir para um eléctrico com dois leões».

Museu Reina Sofia. Paula Rego, Retrospectiva. Uma trajectória artística que mostra a experiência do mundo de uma pintora indomável, inspirada nas recordações da sua solitária e mágica infância, como se Portugal inteiro, no seu melhor e no seu pior, estivesse agora ali diante de nós. Um Portugal que parece pintado por um Goya contemporâneo ou por Hogarth cuja influência Paula Rego reivindica. Momentos inebriados, festivos, violentos, lúdicos, teatrais, patéticos. E também os livros dentro dos quadros: As Criadas, inspirado na obra de Genet; Os Crimes do Padre Amaro, de Eça; Jane Eyre, de Charlotte Brontë; A Metamorfose, de Kafka; O Homem Almofada, inspirado em Martin McDonagh. Alegorias. Exposição visitadíssima, a mostrar que ainda há muitos portugueses que fazem quilómetros para ver arte. //Guernica. Picasso. «Escrever poesia depois de Auchswitz é bárbaro», afirmou Adorno diante da experiência do extermínio. E outros houve que emudeceram perante a «banalidade do mal». Mas Picasso, pelo contrário, pintou como ninguém essa banalidade, deixando-nos, isso sim, emudecidos diante da barbárie pintada do bombardeamento de Guernica. Uma pequena multidão olha o quadro em silêncio, como se ali qualquer outra semântica fosse redundante contra a banalidade do mal.

Museo del Prado. Demoro-me na pintura flamenga. Sobretudo Rubens, excessivo, apolíneo. A exuberância do nu feminino n´ As três Graças. O retorno à festa da vida n´ O jardim do amor e na Dança dos aldeões. Depois, detenho-me n´As Meninas, de Velásquez. E n´O jardim das delícias, de El Bosco. E depois, Goya, de quem Ortega y Gasset disse ser «um monstro... e o mais decidido monstro dos seus monstros». Talvez não, apesar de todos os seus fantasmas, vividos e pintados, e de oscilar sempre entre a luz da corte e a escuridão da alma. E de novo a «banalidade do mal», agora n´Os fusilamentos de três de Maio. // Patinir e a invenção da paisagem. A paisagem antes da destruição descrita por W. G. Sebald muito tempo depois. Um remador que lembra Erza Pound nos seus dias mais obscuros. Uma aragem lambendo a superfície líquida de um lago. A barca de Coronte transportando uma alma numa viagem sem retorno sob um céu azul, místico, nórdico, assim se anunciou num enorme painel colocado à entrada do Museu, a exposição do pintor flamengo que eu ainda não conhecia. Depois, lá dentro, 24 paisagens quase microcópicas, onde, ainda assim, cabemos todos, como se o próprio Patinir nos tivesse colocado aí como personagens secundários de outras tantas micro-narrativas enquadradas num fundo de paisagens submersas de azul, rochedos, bosques, torres, casarios, moinhos, uma fogueira, um bando de pássaros levantando voo e, no último plano, sempre um horizonte luminoso onde pairam densas e opressivas nuvens sobre imagens surreais de figurantes montados em bestas, monstros, matanças, calamidades.

Casa del Libro. Enrique Vila-Matas. Exploradores del Abismo [Anagrama, 2008]. Entro na livraria para comprar Exploradores del Abismo, o último Vila-Matas, de que já lera o conto «La modéstia». Abro-o ao acaso e leio em «La letra gorda», aquilo que me parece ser uma virtual declaração de princípios do livro: «La tensión más fuerte la provocaba el duro esfuerzo de contar historias de personas normales y tener a la vez quereprimir mi tendencia a divertirme con textos metaliterarios». Veremos se é outro ou o mesmo Vila-Matas que agora se dá a ler.// Vila-Matas portátil [Candaya, 2007]. Já se percebeu que sou um aficcionado do escritor catalão. « Tal vez en unos años la acumulación de ideas sobre el trabajo de Vila-Matasos permita descobrir con claridad las razones por las que nos commueve», escreveu o crítico mexicano Álvaro Enrique, em 1997. E dez anos e cinco livros depois? Compro o livro que reproduz o itinerário crítico e cronológico dos livros de Vila-Matas e que inclui testemunhos de Pitol, Bolaño, Villoro, Fresán, Cercas, Tabucchi e Loriga, entre outros que partilham a sua aventura shandy. // Joseph Roth. Fuga sin Fin. [Acantilado, 2003]. É o romance que Pasavento/Vila-Matas transportava na maleta vermelha que herdara da sua avó e que «leu de um só folgo», em Nápoles. Prometo a mim mesmo lê-lo também de um só folgo numa próxima viagem de ocultação. // Roberto Bolaño. Los detectives salvages [Anagrama, 1998]. O escritor chileno que se exilou no México, durante a ditadura, e que nas extravagantes 447 páginas de Los detectives salvages deixa fluir a sua alma nómada, misturando-a com todos os seres errantes que vivem à deriva nos arredores de si mesmos, instaurando uma espécie de «literatura por vir». // Sergio Pitol. El arte de la fuga [Anagrama, 1996]. Um livro que foge a qualquer classificação, que remove as fronteiras do género, parecendo, primeiro, um ensaio, mas logo depois uma narrativa, e depois uma crónica de uma vida, um testemunho de um viajante, ou anotações de um leitor hedonista, sempre como se o autor fosse uma criança deslumbrada diante da variedade do mundo.

Babelia. Tenho por hábito ler o suplemento do El Pais todos os sábados. Sento-me por isso na esplanada do Círculo de Artes, na Gran Via, e empreendo uma viagem através da literatura catalã que constitui o tema desta Babélia, transformando momentaneamente a Gran Via no Passeig de Gràcia. Um inquérito junto de mais de cem especialistas elege as 50 melhores obras catalães de sempre: Ramon Lull [1232-1316] («Implacável defensor de la lógica cristiana. Escribió en latin, catalán y árabe. Consciente de que existiria un Pierre Ménard reescribió de memoria algunos de sus libros perdidos en un naufragio»); Josep Pla [1897-1981] («incómodo y bellíssimo. Desconfiado, viajero, diletante, comodón, trabajador... es el paradigma de la literatura catalana»; Salvador Espriu [1914-1945] («Le compararon a Pablo Neruda, Rafael Alberti o Valle-Inclán. No se les parece en nada. Autor precoz, le tocó vivir con estoicismonlo peor de la história del siglo XX». Dos cinquenta títulos citados não li nenhum! Mas recordo o fundo cabalístico de Lull perseguido por Luisa Costa Gomes, em Vida de Ramón [Dom Quixote, 1991]. E li outros mais recentes, como Juan Marsé, Eduardo Mendoza, Javier Cercas, Carlos Ruiz Zafón e, claro, Enrique Vila-Matas. Nesta Babélia há ainda páginas sobre agentes literários, editores e livreiros de Barcelona que já não tive tempo de ler, pois alguém muito parecido com Che Guevara sentou-se na mesa ao lado. Pouso o jornal e regresso à Gran Via. Mais tarde, na Plaza del Sol, confirmaria tratar-se, efectivamente, de Che.

El tapeo. A idea é caminhar ao acaso desde a Puerta del Sol até à Plaza Mayor, passando pela Plaza de Santa Ana, ir descobrindo os rincones mais saborosos da cidade através do labirinto faustoso das mil tabernitas que há por ali e que nos convidam a entrar, fervilhando de gente que se pierde noche adentro, entre vinitos, cañas y bocadillos, la oreja, los torreznos, las anchoas, lo ibérico... y sobre todo con muchas ganas de vivir. Tapear es una arte y a Madrid la conocen como puede comprobar, tanto que ahora mismo se me huida la lengua para el castellano. Aqui fica a porta de entrada para a Venta El Buscón, um dos muitos abismos faustosos por onde me adentrei.  

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