31 de julho de 2009

Uma cena vienense


«Como todas as cidades, [Viena] era feita de irregularidade, mudança, precipitações, intermitências, choques de coisas e interesses, tudo intervalado de silêncios abissais, de caminhos abertos e territórios por abrir, de uma grande pulsação rítmica e da eterna dissonância, da crónica deslocação mútua desses ritmos. No seu conjunto, era como uma bolha em ebulição num cadinho feito da substância duradoura de casas, leis, regulamentos e tradições históricas». Tudo parecia ali, ainda, reger-se pela calculabilidade, pela exactidão e pela extensividade da vida metropolitana que exclui os impulsos humanos e instintivos que, a existirem, determinariam outras formas de vida. Contudo, «momentos antes já qualquer coisa tinha descarrilado, com um movimento lateral brusco», vindo perturbar aquele deslizar ostensivo da chusma humana, aparentemente composta por gente metropolitana com qualidades, que ia subindo uma avenida larga e animada, desenhando a um ritmo regular fluxos apressados por entre outros mais tranquilos. Um camião despistado acabara de atropelar um homem que jazia no chão sob os olhares curiosos dos transeuntes não sem provocar um aperto no estômago em quem por ali ia ficando. «Estes camiões pesados que circulam no nosso país têm uma distância de travagem demasiado longa», alguém comentou, integrando, assim, para alívio de todos, «aquele terrível acidente numa qualquer ordem, transformando-o num problema técnico». Entretanto, já se ouvia o silvo estridente de uma ambulância que não tardaria em chegar e, para satisfação dos presentes, recolher no seu interior asséptico o homem sinistrado. «Admiráveis estas instituições sociais!». Posto isto, «as pessoas foram-se afastando quase com a impressão, justificada, de que tinham presenciado um acontecimento em que tudo fora legal e regulamentar» e que, uma vez regressada a ordem aparente das coisas, poderiam, de novo, mergulhar nos simulacros de sentido das suas vidas em perda vertiginosa de sentido.

Este o primeiro capítulo, aqui resumido, de O homem sem qualidades (Dom Quixote), em que Musil com a sua ironia fria e metódica nos introduz numa Viena neo-decadente, passeando-se, ainda, num «belo dia de Agosto de 1913» sob um céu de benignas ilusões mas que, em breve, se cobrirá com o manto negro da Primeira Guerra. Uma cidade já aprisionada pela essência da modernidade, marcada pelo cepticismo e pela indiferença social, onde cada um reage aos estímulos metropolitanos desenvolvendo defesas protectoras que os fazem atravessar impunemente as situações mais dramáticas sem nelas derraparem, mas onde tudo, parece, começou já a descarrilar sem que os homens com qualidades aglomerados em torno daquele acidente ou contemplativos nos cafés da moda – como o Herenhof, o Central, o Museum ou o Griensteidl – onde, contraditoriamente, floresce a intelectualidade vienense ou fetichistas nos gabinetes imperiais se tenham apercebido. Talvez por não terem lido a peça aparentemente escatológica de Karl Kraus Os últimos dias da humanidade ignorem ser já aquele um tempo terminal que os vienenses vão vivendo, desconfiados e cépticos mas sem nunca perder o estilo, numa espécie de «apocalipse alegre» segundo a fórmula encontrada por Broch para descrever a forma particular da experiência nihilista austríaca.

Eis a Viena cacaniana cujo nihilismo tanto afectará Musil como a sua obra, levando-o a empreender a tarefa expedicionária de afrontar a vertigem do vazio da era moderna, sem nele se despenhar, nem que para isso tivesse de prescindir da sua biografia, isto é, desprender-se de todas as qualidades e atributos, abandonar a carreira de matemático e toda a pretensão à genealidade, ser estrangeiro – no sentido simmeliano – em todos os lugares, abrir-se à contingência de uma obra escrita num tempo em que «tudo [deixou] de ser narrável» e, por isso, vir a revelar-se não apenas inacabada, mas também inacabável – como escreveu Blanchot -, aberta, portanto, a todas as possibilidades. É que, como se afirma no livro, numa frase que é ela própria um programa de acção política - nunca perseguida, no entanto, por Musil -, «é a realidade que desperta a possibilidade, e nada seria mais errado do que negar isso».

3 comentários:

  1. Estos días me parece que todo el mundo esté hablando de El hombre sin atributos. Influenciada - seguro - por el entusiasmo sereno de Enrique Vila-Matas compré hace tiempo el, los libros, pero el punto de lectura indica que perdí la fe en ellos (los libros) y en mí allá por la página 300. De momento gracias a tus revelaciones retomo el principio con algo de confianza. Veremos. Muito obrigado. Glòria.

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  2. escrevo em viena uma nota breve:
    está tudo na mesma, quase 100 anos depois.
    a realidade desperta a possibilidade.
    pensando bem: a isso se agarram os vienenses.

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  3. Dices: “el nihilismo tanto afectará Musil como a sua obra”. ¿Podrías decirme, para que yo pueda entender, si estas frases del autor en el capítulo 2 del libro manifiestan esta idea de nihilismo?: “Una heroicidad aparece tan diminuta como un grano de arena echado ilusoriamente sobre un monte. Este pensamiento le agradó”. “Se retiro como una persona que ha aprendido a renunciar, casi como un enfermo que evita todo esfuerzo violento; y cuando pasó junto al balón de boxeo que colgaba en la habitación contigua, le soltó un golpe tan rápido y fuerte como no es común en espíritus sumisos ni estados de debilidad”. Gracias de nuevo. Glòria.

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