A pergunta - «quem matou Laura Palmer?» - da série de culto de David Lynch que inspirou a maioria dos actuais criadores de séries de televisão é, hoje, reescrita para «o que se passa naquela ilha? onde sobrevivem os náufragos de Perdidos, o novo ícone da pop culture que milhões de jovens vêem, compram, pirateiam, discutem em todo o mundo. Uma espécie de «suspension of disbelief», suspensão do real, eis o que nos acontece, às vezes, quando durante horas a fio nos encontramos perdidos numa ilha deserta; ou quando durante 24 horas somos parceiros de Jack Bauer em luta contra o terrorismo (ainda que muitas vezes os métodos utilizados escondam interesses propagandísticos inconfessáveis e repudiáveis); ou quando amamos e odiamos Gregory House, o médico mais politicamente incorrecto da televisão; ou quando estremecemos de emoção quase bergmaniana diante de mais um episódio de Os Sopranos; ou quando nos confrontamos com as neuroses americanas em Sete Palmos de Terra; ou quando descobrimos os mais podres e ardilosos segredos da vida dos subúrbios de uma cidade americana em Donas de Casa Desesperadas; ou quando penetramos no mundo virtual que nos evoca Matrix em Heroes; ou quando apanhamos um crimionoso em CSI; ou quando percorremos, na hiper-realista série A Escuta, as ruas de Baltimore infestadas de traficantes e de polícias, cuja diferença devemos procurar muito para além distintivo; ou quando nos confrontamos com as frenéticas estratégias de bastidores de assessores, gestores de campanha e especialistas em política, em Os Homens do Presidente; ou quando convivemos com Nancy Botwin, a mãe solteira que resolve vender maconha após a morte do seu marido, em Weeds, a mais subversiva série televisiva jamais produzida; ou, ainda, quando, regressamos à América dos anos 60, através da imperdível Mad Men.
Trata-se de histórias com sequências narrativas desdobradas até ao limite, percorridas por personagens onde projectamos um certo inconsciente, novas cosmogonias de um mundo ficcional que julgávamos irremediavelmente perdido numa televisão afundada em telenovelas e na vulgaridade de um quotidiano maculado transferido para o ecrã. Será esta a resposta contra a alienação dos públicos, contra os reality shows, contra a encenação bacoca de episódios triviais do quotidiano de indivíduos anónimos temporariamente promovidos ao estrelato de ficção?
Na década que agora termina temos vindo a assistir à emergência de um novo conceito de serialidade televisiva com uma estrutura narrativa idêntica às dos romances do século XIX que também eram publicados em fascículos semanais antes de sair o livro completo, e que, hoje, são oferecidos ao nosso deleite numa caixa de DVDs. Estará o futuro a trazer do passado aquilo que tem potencial para criar audiências, mas sem iludir a realidade? Isto é, a televisão como entretenimento inteligente? O paradigma de Perdidos não será o mesmo da Ilha do Tesouro, de Stevenson, agora acrescido da inquietação moderna da ausência do herói? E os múltiplos enredos e intrigas secundárias, os infindáveis elencos, a construção das personagens não era algo que até agora estava apenas reservado ao cinema e à literatura? É verdade que antes já o DVD tinha revolucionado a nossa forma de ver cinema, transferindo os clássicos da tela ampla para a televisão. Agora são as séries com as suas possibilidades de horas infinitas, com desvios, retrocessos e avanços narrativos que criam a ilusão da suspensão da realidade, e não o seu simulacro. Talvez se esteja a assistir, então, à emergência de uma nova forma de literatura audiovisual de massas com capacidade de propor algo diferente da ilusão trivial da realidade, mas antes, talvez, a sua suspensão ficcional, pelo menos enquanto durar o episódio da série ou a caixa de DVD que visionamos.
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