28 de março de 2011

Uma cena quase fulgor



Decido-me pela recomposição da mesma cena sem fulgor que aqui tentei há dois dias e que, subitamente, perdi numa fenda no monitor. Reconstituição de uma paisagem de livros amontoados sobre a escrivaninha, ancoradouro de imagens, descrições, conceitos, fonte de energia visível convocada para um texto a haver. Os livros são de Maria Gabriela Llansol (1931-2008) - O Livro das Comunidades, Finita, Lisboaleipzig 1, Um Falcão no Punho, O Senhor de Herbais, Os Cantores de Leitura - insondáveis moradas de uma escrita que oscila entre o exprimível e o inexprimível - nem ficção, nem poesia, nem drama, nem ensaio, nem autobiografia, talvez tudo isso num mesmo livro -, criando um efeito de estranheza ou mesmo de ilegibilidade a quem ousa atravessar o umbral de uma textualidade que luta contra a narratividade convencional, integrando-a através de uma «escrita laboratório» numa nova ordem ou constelação discursiva que, como diria Blanchot, «[escapa] a toda a determinação essencial, a toda a afirmação que a estabilize». Uma textualidade em que a «escrita salva, redime, sustenta o bruxulear de uma luz, abre a vacilação de um caminho, e a literatura, essa, já começou a ficar para trás», diz Eduardo Prado Coelho. Porque já só «importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros» [Um Falcão no Punho]. E trazê-los ao «encontro inesperado do diverso», através de uma sobre-impressão e anulação de tempos, de lugares, de figuras, também de rasas evidências que põem em andamento um pensamento nómada que prefere o fulgor à verosimilhança. E que acolhe Maria Gabriela Llansol nessa textualidade? «Ando a contar o mal-estar profundo dos seres humanos, dos animais e das plantas, ando à procura de um final feliz. Ando a ver se o fulgor que, por vezes, há nas coisas, é melhor guia do que as crenças sobre elas, ou dos pensamentos que, a propósito delas, nos ocorrem». [Lisboaleipzig 2].

Vou, então, também, à procura de um final feliz nos livros dispostos sobre a escrivaninha, caminhando neles como quem «exercita os pés por entre as imagens e as mãos sobre a escrita.» (O Senhor de Herbais). E os «pés» levam-me aos lugares. Bruges. «Fez-se ali o nó de que depois desfiei o texto. Comecei nas beguinas; destas, passei a Hadewich, Ruybroeck. Destes, a João da Cruz e a Ana de Peñalosa. Fui conduzida por todos eles a Müntzer, à batalha de Frankenhausen e à cidade utópica de Münster, na Vestefália. Nos restos fracassados destes homens encontrei Eckhart, Suso, Espinosa, Camões e Isabel de Portugal. E foi por sua mão que fui até Copérnico, Giordano Bruno, Hölderlin, que todos eles anunciavam Bach, Nietzsche, Pessoa, e outros que a nossa memória ora esquece, ora lembra tão intensamente que me parece outra forma de os esquecer. De esquecer tudo isso.» (Lisboaleipzig 1).

Primeiro, então, os lugares das paragens llansolianas. O béguinage de Bruges, um dos mais antigos lugares da espiritualidade laica flamenca durante a Idade Média, «encruzilhada do espiritual, num sítio ainda vazio», mas onde «havia as mulheres beguinas, ao lado dos portugueses descobridores de novos mundos, tornados oportunistas e comerciantes de especiarias; havia rebeldes ocultos mas já no rasto da liberdade de consciência; havia místicos com um pensamento…» (Lisboaleipzig 1). Ou as livrarias de Lovaina em cujas vitrinas M. G. Llansol descortina a crescente rasura da literatura que vai perdendo o seu sentido teológico e, logo, a sua literariedade: «Há muito que não frequento as livrarias de Lovaina, em que começava a enervar-me a lei do número, o modo de expor, e um certo relento de Universidade. (…) O que me choca é a vastidão dos textos que não ficarão e que, hoje, no espaço fechado da livraria, fazem um ruído ensurdecedor de pacotage que quase tornou inaudível o diálogo entre os livros que falam e mantêm entre si a arte da conversação infindável sobre o entresser.» (Finita). Ou os lugares domésticos povoados pelas figuras dos dias - a cozinha na casa de Joidogne – onde, subitamente, desponta o enigma: «estou em baixo, na cozinha ampla e branca, a preparar uma refeição, voltada para a mesa redonda, e de costas para o armário mural. A cozinha mergulha numa luz que vem do fulgor. A janela, que tem por cortinado uma colcha das ilhas é, atraentemente, uma fonte.» (Finita). Outra casa mais tarde, na aldeia anónima de Herbais, onde se deu como desaparecida para melhor afirmar a sua obra: «Fui para Herbais pedir a esmola do silêncio. Viver em segredo não é crueldade. Mas, para viver em segredo, é preciso um companheiro do mesmo reino.» (Lisboaleipzig 1). Da cidade de Lovaina à vila de Jodoigne e, depois, à aldeia perdida de Herbais. E, finalmente, Colares. Assim, por esta ordem, dos lugares urbanos para a ruralidade, do deserto social para o jardim selvagem do pensamento. Lugares onde nunca estive, mas que irrompem, fulgurantes, na paisagem da minha escrivaninha. Como num quadro de Vermeer.

E, depois, nessas paragens vibrantes, rostos, memórias, visões, «hóspedes de rara presença», fulgurações de figuras «intensas» - Musil e Teresa de Ávila, Rilke e Bach, Teresa de Lisieux e Nietzsche, Spinoza e S. João da Cruz – ressuscitados através da escrita para deambularem agora no chão ondulante das moradias dispostas sobre a minha escrivaninha, tão reais como estes dedos que escrevem e tocam a labareda, deixando aqui, neste texto a haver, fragmentos, frases, balbuciamentos dos mundos que o mundo tem.

E eu leitor, legente sim, mas não devoto, que das moradias llansolanianas apenas conheço a casa de fora, a habitação reservada aos não eleitos, ouso deslizar furtivamente para os quartos dos fundos e, por instantes, talvez, vislumbrar «a serenidade e a justeza das coisas evidentes: pão, água, o convívio com as plantas e os animais, alguma luz mesmo de noite, alguma noite no corpo da própria luz. E o amor como partilha do mais difícil.» (Eduardo Prado Coelho, Público, 11 Junho 1991).

Um final feliz? A morte nunca é feliz, mas podemos ir ao seu encontro - como disse um dia Maria Gabriela Llansol - «sem medo do fim que vem depois, e nos deixa sozinhos com a chama da vela na paisagem.»

[Fotografia ao alto, de Álvaro Rosendo]

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