13 de abril de 2010

Nomadismos



«Fui fotografando calmamente, sem ansiedades, porque mais importante do que as imagens eram as palavras, as conversas. Tinha a nítida sensação de estar perante um sábio, um homem que tinha vivido, traçado o seu destino, encontrado a sua alma. A casa e a pessoa de Bowles irradiavam serenidade, apesar da sua biografia e do monte de malas na entrada lembrarem outras existências», escreveu Daniel Blaufuks em My Tangier, o ensaio fotográfico que publicou em 1991 resultante de uma expedição à mítica Tânger, ao encontro do escritor norte-americano Paul Bowles que ali escolheu viver, até à sua morte em 1999.

Ontem, ao arrumar os livros na prateleira mediterrânica da minha biblioteca, abriu-se-me a mala que ele levou na sua primeira viagem a Paris, onde conheceu o poeta surrealista Tristan Tzara. E lá encontrei a edição da Assírio & Alvim, anotada a lápis, da sua autobiografia Memórias de um nómada, onde, por instantes, reencontrei Bowles escrevendo sofregamente, deixando cair no papel «without stopping» uma torrente de palavras: muitos contos, novelas, traduções de amigos marroquinos, livros de viagens. Na mesma mala, cujos segredos me foram momentaneamente revelados, lá estava, também, Deixai a chuva cair, o romance sobre a nervosa Tânger, cidade por onde Bowles errou durante grande parte da sua vida. Bowles que se fez desaparecido em Marrocos, corresponde ao mito simpático do ocidental que rejeita o estatuto social da sua origem para se ocultar na distância libertadora do Norte de África.

Impossível, por isso, não recordar Manuel Teixeira Gomes, político, diplomata e ex-presidente da República e, sobretudo, escritor de contos, novelas, cartas, livros de viagens… e viajante vagaroso, por países e mares, da Europa à África do Norte e à Ásia Menor, através de cidades e portos onde mercadejou, amou mulheres múltiplas, visitou museus, leu e escreveu, como um dandy elegante. Também Teixeira Gomes, nas suas andanças mediterrânicas, aportou um dia em Tânger, seguramente com a sua «mala grande». E, também ele, se fez desaparecido, depois, em Bejaia, Argélia, onde viveu esquecido no quarto número 13 do Hotel Étoile - a sua «mala grande» transformada ali num sedentário guarda-roupa, mas a lembrar a sua anterior existência nómada. Uma vida sem fronteiras nem códigos a limitar o desejo e a imaginação criadora. Como uma gaivota atraída pelo brilho das paisagens do sul, sem nada querer possuir a não ser um pequeno quarto num hotel, depois de ter tido todo o mundo no olhar.

3 comentários:

  1. «...muitos contos, novelas, traduções de amigos marroquinos...», entre eles, Mohamed Choukri, autor de «Pain Nu». Mas olhe que a relação não foi tão altruísta como se pretende, leia-se «Paul Bowles, le reclus de Tangier», de Choukri, e os pretextos para o tradutor se aboletar com os direitos de autor de uns miseráveis analfabetos que lhe ditaram as obras, inicialmente.

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  2. Já agora, fique com a minha nova «morada»

    http://nemsemprealapis.blogspot.com/

    O Tempo, vi-o (invejei-o) por fora, falta de tempo. Lá para o fim do mês. Abç

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  3. ...agradeço o esclarecimento. Não conheço Choukri, mas procurá-lo-ei. Por agora, ando nos passos de Manuel Teixeira Gomes, nos livros e, no final do mês, na geografia. Quanto ao TEMPO, cá o espero quando por aqui passar com mais tempo. Abç.

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