11 de dezembro de 2009

A nova serialidade televisiva


A pergunta - «quem matou Laura Palmer?» - da série de culto de David Lynch que inspirou a maioria dos actuais criadores de séries de televisão é, hoje, reescrita para «o que se passa naquela ilha? onde sobrevivem os náufragos de Perdidos, o novo ícone da pop culture que milhões de jovens vêem, compram, pirateiam, discutem em todo o mundo. Uma espécie de «suspension of disbelief», suspensão do real, eis o que nos acontece, às vezes, quando durante horas a fio nos encontramos perdidos numa ilha deserta; ou quando durante 24 horas somos parceiros de Jack Bauer em luta contra o terrorismo (ainda que muitas vezes os métodos utilizados escondam interesses propagandísticos inconfessáveis e repudiáveis); ou quando amamos e odiamos Gregory House, o médico mais politicamente incorrecto da televisão; ou quando estremecemos de emoção quase bergmaniana diante de mais um episódio de Os Sopranos; ou quando nos confrontamos com as neuroses americanas em Sete Palmos de Terra; ou quando descobrimos os mais podres e ardilosos segredos da vida dos subúrbios de uma cidade americana em Donas de Casa Desesperadas; ou quando penetramos no mundo virtual que nos evoca Matrix em Heroes; ou quando apanhamos um crimionoso em CSI; ou quando percorremos, na hiper-realista série A Escuta, as ruas de Baltimore infestadas de traficantes e de polícias, cuja diferença devemos procurar muito para além distintivo; ou quando nos confrontamos com as frenéticas estratégias de bastidores de assessores, gestores de campanha e especialistas em política, em Os Homens do Presidente; ou quando convivemos com Nancy Botwin, a mãe solteira que resolve vender maconha após a morte do seu marido, em Weeds, a mais subversiva série televisiva jamais produzida; ou, ainda, quando, regressamos à América dos anos 60, através da imperdível Mad Men.

Trata-se de histórias com sequências narrativas desdobradas até ao limite, percorridas por personagens onde projectamos um certo inconsciente, novas cosmogonias de um mundo ficcional que julgávamos irremediavelmente perdido numa televisão afundada em telenovelas e na vulgaridade de um quotidiano maculado transferido para o ecrã. Será esta a resposta contra a alienação dos públicos, contra os reality shows, contra a encenação bacoca de episódios triviais do quotidiano de indivíduos anónimos temporariamente promovidos ao estrelato de ficção?

Na década que agora termina temos vindo a assistir à emergência de um novo conceito de serialidade televisiva com uma estrutura narrativa idêntica às dos romances do século XIX que também eram publicados em fascículos semanais antes de sair o livro completo, e que, hoje, são oferecidos ao nosso deleite numa caixa de DVDs. Estará o futuro a trazer do passado aquilo que tem potencial para criar audiências, mas sem iludir a realidade? Isto é, a televisão como entretenimento inteligente? O paradigma de Perdidos não será o mesmo da Ilha do Tesouro, de Stevenson, agora acrescido da inquietação moderna da ausência do herói? E os múltiplos enredos e intrigas secundárias, os infindáveis elencos, a construção das personagens não era algo que até agora estava apenas reservado ao cinema e à literatura? É verdade que antes já o DVD tinha revolucionado a nossa forma de ver cinema, transferindo os clássicos da tela ampla para a televisão. Agora são as séries com as suas possibilidades de horas infinitas, com desvios, retrocessos e avanços narrativos que criam a ilusão da suspensão da realidade, e não o seu simulacro. Talvez se esteja a assistir, então, à emergência de uma nova forma de literatura audiovisual de massas com capacidade de propor algo diferente da ilusão trivial da realidade, mas antes, talvez, a sua suspensão ficcional, pelo menos enquanto durar o episódio da série ou a caixa de DVD que visionamos.

7 de dezembro de 2009

Não falhar a ocasião de Copenhaga


«Mas quanto mais me aproximava das ruínas, mais se afastava a imagem de uma secreta ilha dos mortos e mais me julgava no meio dos vestígios da nossa própria civilização aniquilada por uma catástrofe futura», escreveu W. G. Sebald em Os Anéis de Saturno [Teorema, 2006], descrente da capacidade da razão para dominar a natureza enlouquecida pelos homens.

Há nestas palavras de Sebald uma espécie de premonição trágica, apocalíptica, relativamente ao devir do mundo, caso não sejam tomadas medidas que reconduzam o rio turvo da destruição ambiental às suas antigas margens. Como abrandar, então, a imensa fornalha vertical cheia de brasas que ameaça transformar a paisagem do mundo num campo de sedimentos intransponíveis, rios pedregosos, árvores calcinadas, despojos de máquinas destruídas, espirais fantasmagóricas de poeira, cidades costeiras alagadas, almas à deriva sob um céu acinzentado?

Este tom apocalíptico encontramo-lo, hoje, não apenas na literatura, mas no discurso de divulgação científica sobre o aquecimento global, como se a realidade tivesse já ultrapassado a ficção. Em A nossa escolha - Um plano para resolver a crise climática (Esfera do Caos, 2009) Al Gore dramatiza ao extremo a situação, afirmando que temos de «evitar a catástrofe inimaginável que se abaterá sobre o planeta se não começarmos a fazer mudanças drásticas rapidamente». E profetiza que «o futuro da civilização será determinado para sempre por aquilo que fizermos agora». Não sei se haverá aqui uma espécie lucidez sebaldiana sobre a situação-limite para onde avançamos ou se esta dramatização discursiva sobre um mundo à beira da catástrofe - a que o filósofo alemão Karl Löwith chamou de «modo de pensar por catástrofes» - não terá uma raiz contraditoriamente conservadora, e cíclica, cujo pessimismo mais do que provocar a vontade colectiva de uma alternativa ambiental sustentável, antes nos deixa amarrados perante a verdadeira catástrofe que pode ser a das «coisas continuarem como antes» [Walter Benjamin, Passagens, frag. N9a, 1].

A questão, hoje, será a de saber se o discurso apocalíptico sobre as alterações climáticas - descontando a suicidária corrente negacionista sobre a gravidade do aquecimento climático - não corresponderá ao mal moderno que Ulrich, a personagem criada por Robert Musil em O homem sem qualidades, compreendeu com dramática lucidez: o mal de, apesar do estrondosos avanços da técnica, ou por causa dela, sermos agora incapazes de controlar o «sistema» que a integra, através da ética, por exemplo, procurando a resposta contra o absolutismo da realidade.

O que se pede, então, à Cimeira de Copenhaga que, hoje, começou, é uma vontade colectiva de não falhar a ocasião das coisas não continuarem como antes, opondo à tese conservadora de Heidegger de que «só um Deus nos pode salvar», o verso de Hölderlin que diz que «onde está o perigo está o que salva».

6 de dezembro de 2009

Não me situo


Seguramente, se fosse vivo, voltaria a pronunciar a mesma frase que pintara num muro decrépito da capital guatemalteca, num dia chuvoso de 1944, momentos antes de atravessar o umbral da embaixada mexicana onde obteria asilo político: «Não me situo» [em castelhano, ubico, trocadilho com o nome do antigo ditador guatemalteco Jorge Ubico]. Este, talvez, também, o micro-conto mais lendário de Augusto Monterroso (1921-2003), escritor de veia cervantina e surrealista que nasceu em Tegucigalpa, nas Honduras, viveu na Guatemala e morreria exilado no México, onde escreveria a sua obra vagarosa. Antes, porém, de ter escrito, sem pressas, essa obra, publicaria Obras completas (y otros cuentos), o seu primeiro livro que, para cúmulo, começava pelo fim, já que Obras completas era o nome do último conto, que não das obras completas do autor que, como uma ovelha negra, renegaria ao rebanho do realismo mágico latino-americano, tal como Rulfo ou Borges.

Que pintaria Monterroso, por estes dias, num qualquer muro decrépito da capital hondurenha, se obrigado a escolher entre o resultado das ambíguas eleições de domingo passado que vão dividindo a comunidade de países ibero-americanos e a deriva populista - na senda de Chávez - do deposto, e exilado, presidente Manuel Zelaya, que reapareceu "materializado" na Embaixada do Brasil, em Tugucigalpa, graças a um conluio logístico-diplomático entre Chávez e Lula? Seguramente: «não me situo».

29 de novembro de 2009

Isto é um homem


[A pretexto do Dia Internacional da Solidariedade com o Povo da Palestina que hoje se assinala, recordo aqui um episódio protagonizado por Haruki Murakami, em Fevereiro passado, na Palestina]

Contrariando o pedido que lhe fora endereçado por um grupo pró-palestiano para não ir a Israel receber o Jerusalem Prize, o escritor japonês Haruki Murakami decidiu [em Fevereiro passado]ir porque queria ver «com os seus próprios olhos». E foi e viu um muro alto e grande serpenteando na paisagem bíblica, dividindo, espartilhando ruas e estradas, quintais, hortas, vizinhanças, incendiando ódios na «terra prometida». E, então, disse que «se há um muro alto e grande e um ovo que se parte contra ele, não interessa o quão certo está o muro ou quão errado está o ovo, eu ficarei do lado do ovo. Porquê? Porque cada um de nós é um ovo, uma alma única, encerrada num ovo frágil. Cada um de nós confronta-se com um grande muro. O grande muro é o sistema. […] Somos todos seres humanos, indivíduos, ovos frágeis».

Os palestinianos, menos que isso, diz-me Fuad, um amigo palestiniano que conheci um dia em Aman: «Em Israel, os palestinianos agora são vistos como menos que humanos». Almas quebradas contra um muro «demasiado grande, demasiado escuro, demasiado frio», erguido por israelitas com idade para se lembrarem do que significou na história enlouquecida do século XX a palavra «undermenchen». Foi esta expressão – menos que humano - que antecipou os campos de extermínio nazis, a chave que abriu as câmaras de gás para milhões de judeus e que, agora, estes, que mais do que qualquer outro povo a deviam calar, pronunciam, indiferentes ao sofrimento, à dor que infligem aos seus vizinhos.

A muralha de ódio que vai rasgando a paisagem bíblica da Palestina, contra a qual Murakami viu partirem-se os ovos frágeis dos palestinianos, é justificada por uma retórica de auto-defesa israelita; a mesma retórica que justifica os bombardeamentos indiscriminados de populações indefesas do outro lado do muro. Ou será que os israelitas acreditam que ali, todos, mulheres e crianças inclusive, se encontram armados? É que se assim não for, então, já só os pensam como menos que humanos. E é por aí, pela insensibilidade, que começa o extermínio. Primeiro, «um muro demasiado grande, demasiado escuro, demasiado frio». E depois, no lado de lá do muro, uma paisagem de ruínas sem fim, paredes calcinadas, sedimentos de morte e dor espalhados sobre aquele pedaço de deserto abandonado por Deus.

Por isso, como Murakami, esquivo-me às codificações racionais de uma guerra assimétrica e envolvo-me emocionalmente no sofrimento palestiniano. Por isso, esquivo-me ao juízo sobre se o que está certo ou errado é o muro ou os ovos que se quebram contra ele. É que, conhecendo Fuad e escutando as suas palavras, umas vezes gritadas outras vezes apenas balbuciadas, só poderei dizer, evocando Primo Levi, também ele «uma alma única, encerrada num ovo frágil», isto é um homem.

Nos cornos da actualidade


A pretexto do Dia Internacional da Solidariedade com o Povo da Palestina que hoje se assinala, reedito um texto antes publicado n´ O que cai dos dias, a propósito de uma reportagem de Clara Ferreira Alves publicada na Única (Expresso, de 21 de Julho de 2007), com o título Vidas Ocupadas, que convoquei, na ocasião, para ilustrar como é possível, ainda, um certo jornalismo capaz de agarrar os cornos da actualidade.

[Conta-nos a reportagem que] há uma muralha de ódio que vai rasgando a paisagem bíblica da Palestina, espartilhando judeus e árabes. E desde logo, a reportagem conta menos do que mostra. E ao preocupar-se com o mostrar responde expeditamente ao «acontecimento» que é a construção da «muralha» de mil quilómetros de comprimento por oito de altura que se vai fechando sobre as vidas de 300 mil palestinianos. Clara Ferreira Alves mostra-nos a mesma Jerusalém que Amos Oz descreveu como «uma desordem mental muito arreigada… uma espécie de "síndrome de Jerusalém": uma pessoa chega, inala o ar puro e maravilhoso da montanha e, de repente, inflama-se e pega fogo a uma mesquita, a uma sinagoga ou a uma igreja». Quando CFA lá esteve a fazer esta reportagem era Outono e uma luz morna derramava-se sobre as torres, muros e minaretes da cidade como vergando-a ao peso das religiões. CFA mostra-nos tudo rigorosamente vigiado, polícias e soldados nas ruas, grupos de judeus ordodoxos conspirando nas esquinas contra uma parada gay que iria realizar no dia seguinte, uma tensão no ar prestes a explodir a qualquer momento; mostra-nos judeus às arrecuas diante do Muro das Lamentações que parecem saídos do qualquer «shtetl» de Varsóvia; mostra-nos a Esplanada das Mesquitas onde começou a terceira Intifada depois da provocação de Sharon; e, mostra-nos, sobretudo, uma muralha serpenteando como uma mancha na paisagem abandonada por Deus, cortando ruas e estradas, quintais, hortas, vizinhanças, mas também feridas abertas, ódios acesos. Medo. «Sou contra, mas é eficaz», diz o poeta Israel Eliraz . Uma nova forma de roubar a terra e a água palestinianas, uma humilhação, dizem os palestinianos. E as duas respostas são verdadeiras, diz-nos CFA que nos mostra, ainda, que «quando o Muro estiver terminado, a Cisjordânia será dividida em bantustões». E mostra-nos o fraticídio entre a Fatah e o Hamas, transformando Nablus num lugar assustador, balas assobiando no ar, ambulâncias a recolher feridos. E muito dinheiro sujo. CFA mostra-nos o que viu à saída de Nablus, ela uma mulher europeia identificada sofrendo nas «filas de mulheres e homens debaixo de um calor tórrido, gente de todas as idades aguardando como animais a passagem da cancela, e sendo tratadas de modo displicente pelos soldados israelitas, um bando de miúdos malcriados […] rapazolas humilhando mulheres mais velhas […] tocando-lhes como se fossem gado […], crueldade e medo».

Estes os sinais da actualidade que CFA leu na sua passagem por Jerusalém e pelos territórios ocupados. Sinais, sobretudo, de vidas ocupadas. Dos dois lados. Sim, mas mais do lado dos palestinianos, porque, dizia-me há semanas Fuad, um palestiniano que mora em Hebron e que conheci em Amann, «a paz sim, claro, quando nos devolverem os territórios». Mas também Amos Oz cuja História de Amor e Trevas me mostrou outras possibilidades de pensar o conflito.

Este um jornalismo que toma posição sem afecção pelo politicamente correcto, como esta reportagem de CFA, cujo ponto de vista não é seguramente o da «objectividade» jornalística que muitas vezes mais não é do que uma forma nihilista de não questionamento «acontecimento». Aqui, mais do que dizer o muro, o importante é «dinamitá-lo», mostrando o drama das mulheres da Palestina que intentam atravessá-lo. E a CFA estava lá e nós, leitores de jornais,com ela. E isso é o jornalismo ainda capaz de forçar a pensar. Porque mostra, retraça sinais, posiciona-se, ajuízam sem afecção pelo politicamente correcto e, nessa forma de mostrar o acontecimento mostra-se ela própria como jornalista capaz de apanhar os cornos da actualidade.

[Entretanto, logo à noite, pelas 21horas, o canal Odisseia lembra a data programando o premiado documentário To See If I’m Smiling (2008) do realizador israelita Tamar Yarom, confrontando-nos com os testemunhos dolorosos de seis mulheres-soldado que quebraram o muro de silêncio e denunciaram os abusos do exército israelita contra as populações indefesas].

27 de novembro de 2009

Marilyn, a madame Bovary de Hollywood



Há um livro sobre Marilyn Monroe – um romance, não uma biografia – escrito por um autor-psicanalista, Michel Schneider, que persegue os seus últimos anos de vida com uma nostalgia proustiana em relação à actriz. «Não me interessa a verdade histórica, mas a verdade ficcional. Não me interessa saber como Marilyn morreu, interessa-me saber como viveu. [...] Por isso o romance pareceu-me a escolha mais justificada. Poder dar às personagens emoções». Marilyn, as últimas sessões [Difel] evoca a relação, no ambiente de Hollywood – onde se fundem os mundos do cinema e da psicanálise, – entre Marilyn e Ralph Greenson, o psiquiatra freudiano que a analisou de Janeiro de 1960 a Agosto de 1962. O livro chega depois de muitas biografias, depois da ficção voluptuosa de Norman Mailer que a descreve como «sweet angel of sex, and the sugar of sex came up from her like a ressonance of sound in the clearest grain of a violin», depois de Blonde [Círculo de Leitores], o pesadelo fantasmagórico de Joyce Carol Oates que num registo ora factual ora ficcional persegue um fio de solidão e fragilidade.
Schneider leu tudo isso e muito mais, como se constata na bibliografia que apresenta, mas o seu livro não se deixa engolir pelos outros porque o que ele procura não é uma nova versão ou explicação da morte de Marilyn, mas a revelação de alguém que se foi dando como desaparecida enquanto a morte anunciada não chegava. Alguém que quis desaparecer do corpo, se ausentar da tela, para procurar a salvação nas palavras, mas roçando sempre o abismo para onde seria atraída «uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha/ou suspeitou que tinha errado a vida», como diz Rui Belo no belíssimo poema A morte de Marilyn. Schneider deita Marilyn no divã e fá-la, finalmente, escrever o livro que nunca escreveu: «A literatura, aliás, sempre esteve na sua vida, de uma forma caótica», escreve Schneider. E Marilyn foi casada com Arthur Miller, um dos mais famosos dramaturgos americanos; conheceu o escritor Vladimir Nabokov e, depois desse encontro, interpretou My heart belongs to daddy (em Let´s make love/Vamo-nos amar, de George Cukor), onde diz: «My name is… Lolita»; e pediu a Wilder que a deixasse representar a Grushenka dos Irmãos Karamazov. «Nos últimos tempos, ela própria colocou o corpo de lado. Para se dedicar às palavras. Por isso fiz este livro: para lhe poder dar a palavra», confessa Schneider. As palavras que já não pôde dizer quando na noite de 5 de Agosto de 1962 «a mão da solidão [caiu como] pedra [no seu] peito». Uma morte prematura nunca verdadeiramente explicada, mas que para Norman Mailer foi urdida pela CIA e pelo FBI; a primeira vítima de uma série de assassinatos políticos: Kennedy, Malcolm X, Martin Luther King.

Recentemente, revi Marilyn em The seven years itch/ O pecado mora ao lado, de Billy Wilder], e não pude deixar de recordar o poema de Ruy Belo : «a mais bela mulher do mundo/ tão bela que não só era assim bela/como mais que chamar-lhe marilyn/devíamos mas era reservar apenas para ela/ o seco sóbrio simples nome de mulher/ em vez de marilyn dizer mulher». E a sua imagem de inocente do próprio desejo que a sua imagem acendia em Tom Ewell. E dentro dessa imagem quem lá estava não era a Norma Rae (nascida na periferia de Los Angeles, em 1926, orfã de pai, abandonada depois pela mãe num orfanato, antes de entrar na espiral do medo que seria a vida de Marilyn desencontrada de Norma Rae). Essa há muito que havia partido. Nem era já a personagem que ela representava, mas a própria Marilyn (a máscara): «Quem é que tu tens aí escondida? Marilyn Monroe?» O mito dela própria. Uma espécie de Madame Bovary holywoodesca, cuja aura nem Mailer nem Wahrol (no seu famoso retrato) nem ninguém foram capazes de captar.

2 de novembro de 2009

A última caminhada


Que melhor post publicar em 2 de Novembro, data em que tradicionalmente é prestada homenagem aos mortos, se não aquele que editei no meu blogue pretérito a pretexto do livro Campo Santo, de W. G. Sebald?

«O meu primeiro passeio no dia seguinte à chegada a Piana levou-me para fora da povoação, por uma rua que começava logo a descer numas curvas, esquinas e ziguezagues medonhos, ladeando precipícios rochosos quase verticais…». Quem por ali vai caminhando é um narrador que dá pelo nome de W. G. Sebald, o passeante solitário e sensitivo que nos habituámos a seguir em peregrinações errantes através dos mapas devastados da nossa modernidade imperfeita. Na linha de Os anéis de Saturno, Sebald aproveita uma viagem à Córsega, durante uma férias de Verão, para percorrer os territórios de uma ancestralidade onírica, onde mora a melancolia, resgastando em quatro fragmentos de um trabalho inacabado – «todos eles autónomos, [...] um espectro incompleto que não deverá corresponder exactamente ao que viria a ser o livro», como nos informa Sven Meyer, na introdução a Campo Santo, agora editado pela Teorema – a nostalgia de um tempo sedimentado em camadas de esquecimento ao qual ele volta a opor o imperativo da memória como condição de possibilidade redentora.

O método de Sebald é aqui, ainda, o da caminhada a pé enquanto contemplação, investigação e indagação numa paisagem devastada, com o propósito de buscar uma moral na natureza, meditar sobre estilos de vida desaparecidos, dar conta da consternação do mundo. Nesta derradeira viagem, vai primeiro a Ajaccio, «o lugar onde o imperador Napoleão tinha vindo ao mundo», e na casa-museu que lhe é dedicada reflecte sobre as minudências imponderáveis que mudaram o destino da Europa. Depois, visita o cemitério de Piana onde as inscrições das lápides dos túmulos lhe inspiram uma dissertação sobre o desaparecimento do culto dos mortos, sobre a crescente insensibilidade moderna ao luto, a mal disfarçada pressa e mesquinhez com que nos despedimos dos nossos mortos, a exiguidade das suas habitações eternas, sobretudo «nas cidades que avançam inexoravelmente para um número de trinta milhões de habitantes! Para onde vão eles, os mortos de Buenos Aires e São Paulo, da Cidade do México, Lagos e Cairo, de Tóquio, Xangai e Bombaim? [...] Quem se lembrará deles, quem se há-de lembrar?». Finalmente, a contemplação da paisagem fá-lo reflectir sobre a destruição dos antigos bosques alpinos da ilha transformados em reverberações nostágicas – «tempos houve em que a Córsega era toda coberta de floresta» – e a denunciar o «sanguinário desporto» da caça, comparando os caçadores às «milícias croatas e sérvias que lhes tinham destruído a pátria com o seu belicismo desvairado», oferecendo-nos a visão consternada de um mundo em vertigem, através de uma prosa meticulosa e cadenciada que oscila entre a reportagem, a crónica de viagens, o registo antropológico e a anotação de história política e social.

Completa o livro um brilhante compêndio de ensaios literários sobre Kafka, Nabokov, Bruce Chatwin e Jean Améry que constituem, a partir de agora, guias incontornáveis para a compreensão da obra de Sebald e que nos mostram a realidade que existe para lá da literatura mas a que só acedemos se nos transformarmos em caminhantes solitários e sensitivos dos livros que resgatamos da memória para neles nos adentrarmos, uma e outra vez, transfigurados em personagens de uma trama que já não sabemos se lida ou vivida, como na recreação nostálgica da viagem de Kafka e Max Brod a Paris – Via Suíça para o bordel -, que desencadeia em Sebald a recordação da viagem que em criança fizera com a mãe atravessando os mesmos cenários descritos por Kafka nos seus Diários.

30 de outubro de 2009

Havana para um Infante defunto



Há em Havana uma rua, a 23, que desce para o mar. Talvez, por isso, o troço final que desemboca no Malecón se chame La Rampa. Desci essa rua que mergulha no mar muito antes de alguma vez ter ido a Havana e de ter sentido o aroma achocolatado dos charutos cubanos. Subi-a e desci-a vezes sem conta em Três Tristes Tigres, de Guillermo Cabrera Infante. E, depois, em Havana para um Infante Defunto, espécie de crónica pessoal de uma Havana pobre, carregada de sons, de intersecções. E, a partir daí, desde La Rampa, perdi-me na Havana dos anos cinquenta, no labirinto sonoro de rumbas e son, do rum Bacardi e dos charutos habanos. Uma Havana nocturna, insular, «com os seus cafés ao ar livre, cheios de novidade, e as suas inusitadas orquestras de mulheres que amenizavam os cafés do Paseo del Prado».

Quando alguns anos depois visitei a cidade, Havana já não era a Lost City do filme de Andy Garcia, baseado no romance Três Tristes Tigres que ontem, revisitei como quem regressa a uma cidade desaparecida. Ao descer La Rampa, e depois caminhar a pé ao longo do Malecón até ao Centro, num começo de uma noite quente de Verão tropical, amenizada por uma brisa refrescante vinda da vizinha corrente do Golfo, foi ainda a cidade nocturna fundada por Cabrera Infante que atravessei. Ali estava, pelo menos eu via-a assim, a mesma cidade reflectida na patine luminosa dos edifícios recuperados do Centro Histórico. Via-a, ainda, no contacto caloroso das pessoas, na sensualidade imediata dos corpos, no perfume adocicado dos charutos, na música omnipresente nos bares e cafés de Habana Vieja. Reencontrei-a, também, em algum imaginário e em alguma iconografia que moldaram a minha juventude. Paradoxalmente, Cabrera Infante já não veria, se ali estivesse, a mesma Havana que eu via, porque aqueles elementos dispersos que agora eu ia recuperando, pertenciam a uma certa mitografia de uma felicidade talvez mais sentida pelos estrangeiros do que pelos cubanos, à qual juntaria, depois, algumas imagens de uma decadência de charme.

Três Tristes Tigres, que Cabrera Infante começou a escrever ainda em Cuba, antes de se exilar, é uma homenagem a uma Havana sem tempo à qual ele não mais regressou, por culpa de um rancor quase irracional que marcou até ao final da sua vida a sua relação com o Estado cubano. Assim se compreenderá a amarga ironia que atravessa os seus livros. Trágica dissidência que o tornou ausente de uma cidade que foi sempre o centro festivo dos seus livros. E, talvez, nem ele nem Havana merecessem esse afastamento, pois cópias clandestinas de Três Tristes Tigres sempre circularam em Cuba, formando gerações de escritores, não obstante a opinião injusta e pouco amável de Cabrera Infante sobre os escritores que não abandonaram a ilha. A ausência preencheu-a Cabrera Infante regressando sempre aos mesmos temas com uma nostalgia feroz: a Havana dos anos quarenta e cinquenta, as mulheres, a música, o cinema.

O primeiro sinal de fumo de Cabrera Infante encontrei-o em Três Tristes Tigres: «O charuto [...] aceso é outra fénix: quando parece apagado, morto, a vida do fogo surge entre as suas cinzas». Em Havana, quando fumei o meu primeiro charuto, no bar do Hotel Ambos Mundos, onde viveu Hemingway, juntando assim mais um elemento à tal mitografia da felicidade, ainda não tinha lido o que Cabrera Infante escrevera sobre o prazer de fumar: «Llamo felicidad a sentarme solo en el lobby de un viejo hotel después de una cena tardía, cuando se han apagado las luces de la entrada y solamente se distingue, desde mi cómoda butaca, al portero en su vigilia. Es entonces cuando fumo mi puro en paz, tranquilo en la oscuridad: lo que fue antaño una hoguera, transformado ahora en las ascuas civilizadas que relucen en la noche como el faro del alma».

Puro Humo conta a história da relação entre o cinema e o fumo. Porque para Cabrera Infante, sabemo-lo desde Havana para um Infante Defunto, os filmes são feitos de sonhos. Como os puros. Por isso, em Puro Humo viagja-se de Cuba para o cinema, reacendendo na memória do leitor-espectador um certo voyeurismo: um cigarro lânguido nos lábios de Marlene Dietrich, uma beata rude entre o indicador e o polegar de Bogart, o universo opaco de maldade nos clássicos negros como A Dama de Shanghai ou A Sede do Mal. Também outras páginas que exalam o mais puro fumo literário, com referências a Daniel Dafoe, Edgar Poe, Conrad, Stevenson, Dickens, Mallarmé, Lewis Carrol, Conan Doyle, Raymond Chandler, Hemingway, Jack London, Lorca, Lezama Lima… – e J. M. Barrie – autor, talvez, do mais belo título de todos os livros que fumam: My Lady Nicotine. Pura literatura, portanto, que se esfuma e perfuma como um puro fumado em Havana. Como uma paixão consumida.


[Texto originalmente publicado pelo autor na revista Atlântica 2, aqui reproduzido, hoje, por um não fumador, a pretexto da edição portuguesa de Puro Humo que agora chega às livrarias, com a chancela da Queztal, com o título Fumo Sagrado].

27 de outubro de 2009

As coisas aqui em baixo



Revisito a entrevista que António Lobo Antunes concedeu, há dias, na RTP1, a Judite de Sousa, a pretexto do seu novo romance Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar, onde escava as misérias da condição humana e ouço um homem terno, embora com afectação literária, a falar com absoluto respeito do pequeno mundo dos outros à sua volta. E à medida que vou escutando a sua voz rumorosa, vejo passar, vagarosas, diante de mim, aquelas presenças reais, às vezes estranhos de passagem, outras vezes «bolhas de solidão” que existem entre ele e as palavras, para derivar, depois, numa escrita assustadoramente lúcida e emocional que nos puxa para o abismo do nosso inconsciente colectivo de portugueses e de onde, só muito a custo, regressamos, depois, à superfície das nossas biografias tão cheias das qualidades que nos são diariamente incitadas.

Eis o que espero encontrar neste romance polifónico de António Lobo Antunes - cujo título de um profundo lirismo antagoniza com o universo sórdido da realidade humana que as primeiras páginas antecipam -, deixando-me levar na corrente caudalosa da sua escrita caleidoscópica, profundamente irónica e sarcástica, mas carregada de lirismo e de melancolia.

Um romance feito da matéria mais simples para contar as coisas aqui em baixo, porque, como confessa António Lobo Antunes «nós somos como casas cheias de fantasmas, uns fantasmas pequeninos. Muitas vezes, quando começo a ouvir as vozes de escrever, ouço várias vozes ao mesmo tempo e aquela que me vai dar o livro nunca é a voz mais forte, mais intensa. São outras que estão escondidas por trás.”

[foto ao alto, de José Sena Goulão]

25 de outubro de 2009

António Lobo Antunes, o escrevente


A renúncia da palavra de «um sector importante da literatura ocidental moderna», eis o que rastreia Enrique Vila-Matas em Bartleby e Companhia [Assírio e Alvim, 2001], uma espécie de catálogo de instantes fulgurantes dessa «pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralizados para sempre».

Ora aí está algo que não acontecerá nunca com António Lobo Antunes que renunciou à medicina para ficar com todo o tempo para a escrita. E que declara que «escrever é alegria, mas também tortura». [...] É a razão da minha vida». Uma vida - ou uma obra - que ainda não foi galardoada com o Nobel, mas que o foi com outros prémios: «Quantos prémios ganhei importantes? Mais de 20, fora os que recusei» - confessa a Alexandra Lucas Coelho, no ípsilon da última 6ª feira -, o que só é possível com um escritor radicalmente anti-bartlebyano! Tanto que quando, recentemente, na Festa Literária Internacionl de Paraty, o questionaram sobre se alguma vez renunciaria à escrita, recordou as palavras provocatórias de João Ubaldo Ribeiro: «Uma vez perguntaram-lhe se tinha parado de escrever. Respondeu que não, que o seu pseudónimo era Lobo Antunes».

Ao contrário do escrevente Bartleby - aquele empregado de escritório de um conto de Herman Melville -, à pergunta sobre se não quereria parar de escrever, o escrevente Lobo Antunes, invariavelmente, responderia: «preferia fazê-lo», só ainda não sei se o irei conseguir. Até agora, sempre o tem conseguido. A prová-lo até à exaustão, mais de duas dezenas de títulos, ou de capítulos, da sua incessante busca da perfeição, de que este Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar? que acaba de ser editado é, para António Lobo Antunes, o melhor de todos, como o próprio declara: »Eu acho que nunca li um livro tão bom».


[nota de rodapé: a expressão o escrevente não é aqui utilizada com qualquer intenção depreciativa da escrita de ALA, antes como modesto artifício retórico para classificar a prolixidade do escritor]

[ilustração alto, de André Carrilho (C), para The New Yorker]

24 de outubro de 2009

Os dias calcinados


350 ppm é o indíce de concentração que os principais cientistas dizem ser o limiar seguro para dióxido de carbono na nossa atmosfera, para evitar as trágicas consequências das alterações climáticas. Hoje, quando faltam menos de 50 dias para a Conferência de Copenhaga sobre alterações climáticas, milhares de pessoas, em 144 lugares emblemáticos do mundo, assinalaram o Dia Internacional da Acção Climática, manifestando-se contra os dias calcinados que podem vir aí se não se parar já a deriva ambiental. E nós, o que é que podemos fazer? Agir como fizeram, hoje, em todo o mundo, aqueles que podemos ver aqui]. Talvez, também, escrever, nem que seja um post como este que recupero de um meu blogue pretérito e que agora aqui deixo actualizado.


Durante o Verão, surgiu uma tromba de fogo no crepúsculo do Árctico, sobre o mar de Barens, derramando sobre as nuvens baixas que encobriam o céu de Hammerfest uma luminosidade laranja espectral, anunciando a extensão à cena árctica da nova versão patética da tetralogia de Wagner, agora reposta sob a forma da maldição do gás adormecido durante milhões de anos sob as calotes de gelo em fusão. O que sobrará para o mundo quando se apagar a última réstia do fogo que concorre agora com as auroras boreais ninguém ainda sabe. Ou talvez saibam apenas os visionários.

«Mas quanto mais me aproximava das ruínas, mais se afastava a imagem de uma secreta ilha dos mortos e mais me julgava no meio dos vestígios da nossa própria civilização aniquilada por uma catástrofe futura», escreveu W. G. Sebald em Os Anéis de Saturno [Teorema, 2006], descrente da capacidade da razão para dominar a natureza enlouquecida pelos homens. E nós, que ainda não caminhamos entre ruínas,vamos vivendo com os primeiros efeitos das alterações climáticas provocadas pelo aumento das emissões de gazes com efeito de estufa: temperaturas em alta, concentrações de dióxido de carbono a subir, degelo das calotes polares, subida dos oceanos, chuvas torrenciais, secas mortíferas, o rol que afinal já todos conhecemos, sem que isso, no entanto, produza uma reacção global à altura da tragédia eminente.

Por isso, talvez reconhecer nas palavras de Sebald uma espécie de lucidez trágica relativamente ao devir do mundo, caso não sejam tomadas medidas que reconduzam o rio turvo da destruição ambiental às suas margens, impondo urgentemente a redução das emissões poluentes que afectam o aquecimento global. Mas estarão os governantes do mundo motivados para isso? Ou, pelo contrário, indiferentes ao roçar o abismo, falharão a derradeira ocasião de salvar o planeta, deixando as «coisas continuarem como antes» [Walter Benjamin, Passagens, frag. N9a, 1], isto é, resvalando para a «catástrofe futura». Haverá aqui uma visão demasiado catastrofista? Para Ban Ki-moon, Secretário-Geral das Nações Unidas, nem tanto: «O aquecimento global é uma realidade e, se não intervirmos, as suas consequências poderão ser devastadoras, senão catastróficas, nas próximas décadas [...] peço aos dirigentes mundiais que exerçam a sua liderança. Que ajam. [Já] não podemos fazer como se nada se passasse à nossa volta».

Como abrandar, então, esta imensa fornalha vertical cheia de brasas que ameaça transformar a paisagem do mundo num campo de sedimentos intransponíveis, rios pedregosos, árvores calcinadas, despojos de máquinas destruídas, espirais fantasmagóricas de poeira, cidades costeiras alagadas, almas à deriva sob um céu acinzentado? Seguramente não ficar acocorado a um canto à espera da combustão final como prisioneiros numa casa em chamas. Talvez falar. Talvez escrever, porque só as palavras poderão ainda evitar a catástrofe de falhar a ocasião de abrandar o braseiro. Agir.

22 de outubro de 2009

Falemos de Deus


Contra as ressonâncias bíblicas que se ouvem por aí a propósito do livro de Saramago, outra forma de abordar «o teorema perfeito e terrível» de Deus.

Raramente falamos de Deus. E quando a ele nos referimos preferimos a metáfora, como se tudo o resto se descolasse do seu nome. E ainda menos falamos dessa questão «menor» de acreditar ou não acreditar em Deus, preferindo cruzar os braços contra a crença profunda em que nascemos. A verdade é que herdámos Deus mesmo antes de termos conhecido «as suas casas profundas». Na infância, Deus é, como escreveu Soares dos Passos, «aquele que povoa a imensidade». Depois, à medida que nos vamos adentrando no mundo, verificamos que caminhamos mais sós do que desejávamos. Por isso transformamos as perguntas nas respostas que procuramos, enquanto aguardamos pelo teorema da existência de Deus. E deixamo-nos arrastar pelo medo que cobre um mundo onde se apagaram as imagens que o paraíso já não devolve depois da «morte do criador» anunciada por Nietzsche. E desde aí, vivemos no medo de termos ficado órfãos para sempre, como se escrevêssemos um novo e desesperado Livro de Job. Há quem explique esta angústia como um «erro genético» que a todos afecta. Porque todos, crentes e agnósticos, estamos inelutavelmente comprometidos com a dúvida original, oscilando entre um ascetismo puro e uma transcendência luminosa. Talvez, por isso, uns e outros, em qualquer momento das nossas vidas, já tenhamos sentido a falta de Deus. E outras vezes escutado os seus passos, os restos da sua voz no nevoeiro que cobre o mundo. E isso apazigua o medo. E, depois, estranhos de passagem, continuamos o caminho, cépticos ainda, mas com menos frio no coração. Mas será essa estranheza algo que devemos ocultar? Ou, como diz Henry James, «é preciso acreditar na dúvida, porque é isso que faz a grandeza do homem».

Diante da dúvida, que futuro, então, para Deus, num mundo que, ao mesmo tempo que vai perdendo o seu sentido ético, assiste à «instrumentalização política da religião», traduzida nos múltiplos fundamentalismos religiosos que enlouquecem os homens. «Talvez [como escreveu Enrique Vila-Matas] as ideias casuais de tanta gente incerta [...], as inquietações de cada um, dos vivos e dos mortos. Talvez algum dia com fluido abstracto e impossível substancia, formem um Deus ou um tecido novo e com a luz de outra vida ocupem o mundo».

Entretanto, «nas suas casas profundas Deus aguarda que se demonstre/ o teorema perfeito/ e terrível» [Herberto Helder, Última Ciência].

20 de outubro de 2009

Trapezistas do marketing


Confesso que não tenho paciência para seguir a polémica à volta do último romance de Saramago, Caim (Leya) - menos do livro do que das declarações despropositadas, simplistas e arrogantes do escritor sobre o significado histórico e o alcance ético da Bíblia.

É que, de um lado, está alguém que não se limita a escrever um livro e deixar os leitores lê-lo sem mais explicações como conviria a um escritor ciente do seu ofício, mas que insiste em reiteradamente comentá-lo com as qualidades morais, e iconoclastas, de quem se julga superior a Deus por matá-lo uma e outra vez, diria, não tanto por dilema nietschiano sobre a insuficiência divina para dar esperança ao mundo, mas talvez mais por complexo edipiano não resolvido, como ouvi ontem alguém comentar. E que, consciente ou inconsciente, quer-me parecer, vai dando voz a um golpe de propaganda editorial, concebido por «esses homens de negócios que editam livros [...], trapezistas do marketing», como diria Enrique Vila-Matas, que mais não visa do que provocar a polémica para aumentar o número de vendas. E do outro lado, chegam algumas reacções perigosas vindas da parte de um partido, o PSD, que ultimamente tem andado calado e sem opinião sobre as questões pendentes da governação, mais parecendo, portanto, um partido bartlebyano (imitando o personagem Bartleby, o escriturário, de Melville), mas que, hoje, através de um desconhecido deputado europeu opta por exortar Saramago a renunciar à nacionalidade portuguesa, porque não lhe pode lançar uma qualquer fatwa que o faça calar-se para sempre.

Por mim, exorto o escritor a limitar-se a escrever, ainda que não me tenha como leitor, e que quando instado a comentar um seu livro responda como Bartleby "preferia não o fazer". Ao deputado, exorto-o a fazer como a líder do seu partido, isto é, calar-se bartlebianamente. Ou ainda menos que isso.

19 de outubro de 2009

Caminhos cruzados



Pergunta-se W. G. Sebald no micro-ensaio «Uma tentativa de restituição» (in Campo Santo) «quais são as relações invisíveis que determinam a nossa vida, como se estendessem os fios» entre acontecimentos distantes ditados por uma estranha lei que nos escapa. O que liga a prosa anímica do caminhante Sebald ao rasto já há muito extinto do passeante Robert Walser, mas que continua visível no papel? Onde se cruzam as suas biografias? Talvez no facto de Sebald ter vivido toda a sua infância com o avô materno, que não só tinha o hábito das grandes caminhadas como Walser, como, ainda, era muito parecido fisicamente com ele e, se não bastasse essa coincidência, ter também ele morrido na neve enquanto passeava solitário numa paisagem semelhante àquela em que Walser sucumbiu fulminado e que distava apenas cem quilómetros de Herisau e, ao que parece, no dia anterior ao do último aniversário do escritor suíço. Talvez, depois, ainda, na circunstância de ambos remeterem para uma espécie de poética da extinção; em Walser através de elegantes fantasias poéticas que vai traçando, tenuamente, a lápis no papel para melhor desaparecer, uma frase fazendo sempre esquecer a anterior; e em Sebald sedimentada em camadas de esquecimento nos escombros que ele vai escavando através de uma prosa pausada e cadenciada para melhor dar conta do desvanecimento da história. Talvez, ainda, porque, um e outro, entreviam o mundo envolto numa estranha quitetude; Walser caminhando solitário sob a luz cristalina da manhã em busca do espírito da montanha; Sebald procurando resgatar uma moral da natureza. Um e outro procurando uma cintilação qualquer no tecido puído do tempo.

Seriam estas as causualidades que levaram Sebald, em 1997, na primeira sessão do ciclo de lições que proferiu na Universidade de Zurique, a evocar o passeio de Carl Seeling com Walser, nos arredores do manicómio de Herisau, no Verão de 1943 – passeio que aquele, depois, relataria na biografia que lhe dedicou -, precisamente no mesmo dia do bombardeamento de Hamburgo descrito em História natural da destruição? «Não são casualidades – diria Sebald se lhe perguntassem sobre o que o liga a Walser – trata-se apenas de existir algures uma relação que de quando em quando cintila por entre um tecido puído».

Como também não é casualidade eu ter terminado de ler os ensaios literários de Campo Santo e me ter interrogado por não encontrar ali qualquer referência Walser – como se a sua biografia fosse tão delicada e a sua prosa tão leve que tornasse quase impossível seguir-lhe o rasto, mesmo para alguém como Sebald tão habituado em fazer incursões fantásticas nos territórios dos excêntricos cujos sedimentos vasculha nas camadas de esquecimento para onde os seus passos de caminhante solitário e de narrador interpelante o levam sempre que se dispõe a ir por aí, entre ruínas – e, agora, chegar às livrarias portuguesas um ensaio do caminhante alemão sobre o caminhante suíço - e que na tradução portuguesa dá nome ao livro - O caminhante solitário (Teorema) [traduzido de Logis in einem Landhaus, Carl Hanser Verlag, 1998], e onde Sebald vai por ali, sem mapa, perseguindo, desde o ponto de vista da fugacidade – a sua e a de Walser -, a prosa dançante de repente levantada como uma poeira trágica do tempo incapaz de escapar ao seu destino de, uma e outra vez, continuar a ser lida por Sebald e, agora que Sebald também já cá não está, por todos aqueles que se adentram numa literatura de consternação.

16 de outubro de 2009

Desaparecidos em trânsito



Desse caminhante solitário que ocupa um lugar muito particular na minha biblioteca de quarto escuro, W. G. Sebald, chega, agora, às livrarias portuguesas, Logis in einem Landhaus (1998) [Hospedagem numa casa de campo] que na edição da Teorema se apresenta com o título de um dos ensaios que integra o livro, O caminhante solitário, belíssima homenagem a outro caminhante solitário, Roberto Walser - seu vizinho no meu quarto escuro, ambos escritores sem qualidades que partiram em trânsito deste mundo, Sebald numa curva de uma estrada de Norwich, num dia de Dezembro de 2001, e Walser, também num dia de Dezembro de 1956, durante um passeio pela neve nos arredores do manicómio de Herisau onde se refugiara para desaparecer – a quem Sebald descreve como um ente querido que aos poucos se vai dissolvendo no ar «suavemente e sem ruído até um reino mais livre», ou como um familiar próximo que lhe recorda o seu avô Josef Egelhofer: «Walser sempre me acompanhou em todos os caminhos. Apenas necessito suspender um dia de trabalho quotidiano, para logo ver meu ao lado, nalgum lugar, [a sua] figura inconfundível […] olhando à sua volta».

12 de outubro de 2009

Bolañomanias



Anda por aí uma euforia à volta de Roberto Bolaño - uma espécie de hype a que em Espanha e nos EUA já deram o nome de bolañomania - que me parece ser mais incitada, e excitada (se bem que, é justo dizê-lo, editorialmente corajosa), por uma inusitada campanha de marketing para promover um escritor que, como descreveu o seu amigo e escritor Rodrigo Fresán, escrevia caoticamente, «sem rede e sem travões, [deitando] tudo cá para fora». Por isso, vou também desconfiando da verdadeira natureza da receptividade de Bolaño que, à partida, não convidaria a tamanho deslumbramento por não corresponder aos cânones. Mas desconfio, também, daqueles que, cinicamente, sem terem, ainda, lido 2006 (ou qualquer outro livro do escritor chileno) ou, o que será pior, sem pensarem alguma vez vir a lê-lo, se colocam do contra.

Mas, e a bolañomania? Embora incitada, e excitada, por uma causa justa, a de nos pôr a ler Bolaño, não será ela , paradoxal e visceralmente, anti-bolañiana? Quer me parecer que Bolãno, que nunca quis a unanimidade dos juízos críticos sobre a sua obra, nem a admiração massiva dos leitores, nem frequentou os salões e confrarias dos seus pares, certamente desdenharia de todo o estrépito mediático à volta do lançamento - que até teve direito a uma festa, pelo que me contam, pouco bolañiana, que meteu escritores, críticos, actrizes e margueritas - do seu derradeiro romance, que mais do que honrar o desonram, como diria Flaubert. Mas confesso, também eu lá teria estado se não fosse um leitor sem qualidades e periférico, contribuindo, então, também, para para a flaubertiana desonra do escritor chileno. É que, para Bolaño, fama e literatura eram «inimigas irreconciliáveis», como escreveu em 2666, o tremendo romance póstumo que, ironicamente, o transformaria num escritor da moda, visto por alguns como a versão latino-americana de Thomas Pynchon ou como uma espécie de um Paul Auster com cafeína.

Bolãno, que se julgava um solitário intrépido e um detective selvagem, preferia deambular por becos obscuros, cruzar praças desertas noite adentro, refugiar-se em casas vazias, cavar trincheiras debaixo de chuva, seguir através de auto-estradas que não conduzem a lado nenhum, atravessar desertos sob um sol escaldante. E sempre que era apanhado no turbilhão da fama, escrevia, então, um qualquer texto mordaz, onde fustigava, às vezes, cruel e injustamente, um qualquer seu par consagrado e, outras vezes, os seus próprios amigos, a fim de, achava ele, virar todos contra si e preservar, assim, a rebeldia. Por ironia do destino – ou por vontade dos «homens de negócios que editam livros, [dos] trapezistas do marketing, [dos] licenciados em economia», como escreve em O Mal de Montano outro seu amigo e escritor, Enrique Vila-Matas, Bolaño - tal como Kafka, o mais asocial dos escritores, que se tornou um ícone da moda em Praga – foi apanhado pela máquina editorial e a sua efígie anda por aí, colada ao peito, em pins promocionais, como se fosse um novo Harry Potter ou o último Dan Brown ou, o que será, talvez, mais apropriado em termos de uma mistificação editorialmente correcta, um Jim Morrison da literatura, a quem já vi comparado não me recordo onde.

Pessoalmente, prefiro colocá-lo na minha biblioteca do quarto escuro, ao lado de outros escritores sem qualidades, como Cortázar e Borges - que Bolaño convidava a reler uma e outra vez -, ou como Walser, Kafka, Musil, Joseph Roth e Sebald, e outros, todos eles escritores que «viverem errando / na penumbra dos bosques / com a novela perigosa». Bolaño que também viveu errando na penumbra das cidades e que cultivou o romance perigoso, se ainda cá estivesse, observaria de longe a passagem desta fanfarra mediática à volta do seu nome, desdenharia das margueritas - antes beberia um mezcal - e, como um explorador de abismos, partiria, imperturbável e errante, por uma qualquer auto-estrada escura que não conduzisse a lado nenhum.

10 de outubro de 2009

Um investimento na paz


Ao texto sobre Obama que reeditei, aqui, ontem, acrescento, agora, o seguinte. É verdade que também a mim me surpreendeu este Nobel. Não é estranha, por isso, a estupefacção geral, sobretudo, porque Obama não teve tempo, ainda, de cumprir o anunciado programa de pacificação do mundo. Trata-se, então, de um Nobel que lhe foi atribuído não por aquilo que já fez, mas por aquilo que prometeu fazer e que foi - como escrevi no rescaldo da sua eleição - ter sido capaz de incitar, e excitar, a esperança de que, talvez, possa haver, ainda, outras possibilidades para o mundo. Uma espécie de «investimento» na paz, como declarou José Saramago.

Não foi, portanto, um reconhecimento dos méritos efectivos e tangíveis de Obama em favor da paz, mas sim dos méritos potenciais e intencionais de um homem sereno e determinado em ajudar uma parte da humanidade a encontrar a esperança para enfrentar a crise – a económica e a existencial – e à outra parte da humanidade a encontrar a esperança de vencer o terrível desafio da sobrevivência. Por isso, este Nobel constitui um compromisso que eleva a fasquia das expectativas do mundo relativamente ao cumprimento da «promesse de bonheur».

Eu que não lhe exijo tanto, apenas que não esqueça o seu programa contra a inabitabilidade do mundo, de que a Palestina continua a ser o vergonhoso paradigma, desejo ver nesta nomeação - não obstante, aqui e acolá, Obama já ter revelado algumas daquelas patologias da experiência política contemporânea responsáveis por alguns males do mundo - um incentivo a que faça «frente ao inafrontável», não como um super-homem, mas como alguém capaz, ainda, de evitar a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», tanto na América como no resto do mundo. Ora, isso é o que parece indignar o coro de inimigos, adversários - e alguns estúpidos - de todos os extremos que andam por aí alvoroçados contra este Nobel, desde os talibans e Hamas até aos falcões israelitas, os saudosistas de Bush, conservadores, neoconservadores e teoconservadores, de que, por cá, José Pacheco Pereira se revela como a mais acabada ilustração ao declarar a sua patética oposição ao Nobel atribuído Obama.

9 de outubro de 2009

Dar outras possibilidades ao mundo


Que significado tem a atribuição do Nobel da Paz a Obama, quando o seu programa de pacificação prometido ao mundo se encontra, ainda, por cumprir? Talvez, a reiteração da exigência de não falhar a ocasião de nos salvar da catástorphe, como diria Walter Benjamin). Por isso, porque continuo a acreditar na promessa anunciada com a eleição de Obama de perseguir outras possibilidades para o mundo e, talvez, a paz, congratulo-me com a sua inesperada nomeação e recupero um texto que escrevi no rescaldo da sua eleição.

No rescaldo da vitória de Barack Obama, ponho-me a pensar se, talvez, amanhã, tudo não será, outra vez, a mesma baixa política – que legitimou gente como Bush e Berlusconi ou continua a entronizar gente como Tony Blair, cada um, à sua maneira, aspirantes a Maquiavel -, e que este homem sem qualidades musilianas que veio do futuro para dar outras possibilidades ao mundo se deixe, também ele, contaminar pela infâmia dos interesses inconfessados, pela interiorização do cinismo e pela amoralidade e demais patologias da experiência política contemporânea que fizeram deslizar o mundo, não apenas para a crise económica profunda de que todos falam, mas, sobretudo, parece ter instalado uma crise sem precedentes da experiência, colocando a humanidade – na expressão de Zygmunt Bauman – «frente ao inafrontável», isto é, sem pontos de referência que nos tranquilizem e nos guiem pelas estradas perdidas que nós próprios vamos fazendo.

Mas hoje ainda não é amanhã, e o que vi na madrugada das eleições – e continuo a ver em vídeos no You Tube - é, entretanto, a imagem de um homem sereno e determinado a ajudar a encontrar o mapa que o mundo precisa para atravessar este deserto do mundo em que se tornou a modernidade fracassada, trazendo a uma parte da humanidade a esperança para enfrentar a crise – a económica e a existencial – e à outra parte da humanidade a esperança de vencer o terrível desafio da sobrevivência. Vi – vejo ainda – «um Presidente que tem uma cara em vez de um esgar e que usa a fala em lugar do balbucio», como escreveu José Manuel dos Santos, na sua crónica semanal na revista Actual/Expresso. Alguém, talvez, ainda, capaz de usar o mandato político que lhe foi oferecido nas urnas para desenterrar do pântano a ética para ali atirada pela iniquidade que transformou a América dos pobres num deserto sem mapa. Talvez – quem sabe? – capaz, ainda, de evitar a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», tanto na América como no resto do mundo.

Por isso, recuso o pensamento mesquinho que me assaltou por instantes. E o desconforto nihilista de pensar que à arrebatadora ilusão deste triunfo que anuncia outras possibilidades para mundo, poderá suceder a rápida e melancólica desilusão da sua impotência diante da política de bastidores e de alianças de conveniência. Escolho, então, definitivamente, a audácia de pensar que, mesmo que as contradições do tempo por vir venham a arrefecer o fogo sereno das palavras que cobriram o mundo na noite da vitória, uma coisa que Obama deu à América e que, nos tempos mais próximos, ninguém poderá retirar, foi a de pôr o pensamento a pensar, isto é, de ter incitado, e excitado, o pensamento de que, talvez, possa haver, ainda, outras possibilidades para o mundo.

E a melhor prova disso, dessa rebelião contra a vertigem do vazio da política pós-moderna – mais ainda do que a sua oratória, simultaneamente, emotiva e serena, arrebatadora e racional, disciplinada e inteligente – foi a possibilidade consumada de um militante afro-americano, um advogado dos destituídos, um agitador social e político ter decidido ser Presidente da América para dar outras possibilidades ao mundo, fazendo do seu próprio itinerário vital, da sua vida transformada em narrativa, o seu principal trunfo.

Posto isto, o que poderá «um mundo de qualidades sem homem» (Jean-François Peyret) pedir ao homem sem qualidades musilianas que é Obama? Talvez não aquilo que nem ele nem ninguém jamais poderá devolver ao mundo, isto é, a remissão da nossa vida fragmentada, e muito menos qualquer «promesse de bonheur» (Stendhal). Talvez exigir-lhe, apenas, não falhar a ocasião de nos salvar da catástorphe (Walter Benjamin). E isso já será um programa absoluto contra a inabitabilidade do mundo e o desesperante nihilismo reinante.

6 de outubro de 2009

Um Bolaño menor?



À medida que vou lendo Una novelita lumpen de Roberto Bolaño - que comprei, ontem, na Casa del Libro, em Sevilha - mais esta se vai parecendo com um capítulo perdido de Os detectives selvagens, só que - também me vai parecendo - menos conseguido. Mas o que me parece, apesar de tudo, mais evidente, é a semelhança das personagens do bolonhês e do líbio com as de Belano e Lima, já que ambas as parelhas poderiam vagabundear indistintamente entre Roma e Mexico D.F. sem que nos apercebêssemos qual o seu território ficcional de origem. E, tal como em Os detectives selvagens, não há aqui melodrama nem ambição redentora, a não ser a da ilusão de sobrevivência. Existe sim, o prenúncio de um Bolaño que haveríamos de conhecer, depois, em Os detectives selvagens e em 2666: o Bolaño da piedade difusa, das vidas amarguradas, das frustrações veladas, embora tudo seja aqui, ainda, comedido, subtil, sem a desmesura apocalítica dos seus romances póstumos.

Não sei se esta novelita me revelará, no final, um Bolaño menor, mas sei que a vou lendo com a lealdade que Bolaño me merece e que exige que sejamos capazes de distinguir entre as suas obras perfeitas (Estela distante), interessantes (Monsieur Pain), vertiginosas (Os detectives selvagens), monumentais (2666) e esta novelita lumpen que me vai parecendo, talvez, o seu livro menos conseguido. E, seguramente, seria esta a atitude que Bolaño - que desconfiava da unanimidade crítica - exigiria aos seus leitores mais cúmplices. Que o lessem sem contemplações.

25 de setembro de 2009

Jantando com Bolaño


Do meu diário chileno, recupero um jantar com Bolaño, e assim me (re)compenso da minha ausência, logo à noite, na Ler Devagar (Lx Factory), na festa de lançamento do "2666".

Segundo dia numa Santiago radiante apesar dos colegiais fardados, dos carabineros de olhar distante, da mesma matilha de cães vadios errando na Alameda. E as mulheres formosas de olhos de uva, essas ainda não as vi. Mas comecemos pelo princípio. Ontem, ao jantar, esbocei com Daniel um arrojado plano de evasão rumo ao sul, no rasto de Chatwin. Não ao sul profundo dos páramos gelados, mas aonde seria possível ir nos dois dias que destinaria para isso. Talvez Pucón ou Puerto Mont ou Coyhaique. Hoje, descobri que todos os voos estavam esgotados. Os lagos, os vulcões, as florestas araucanianas terão de ficar para outra evasão.

Vou, por isso, a Bellavista, o bairro boémio de Santiago, dizem. Compro algumas jóias em lápislazuli. Visito a casa de Neruda, La Chascona. Depois, imitando um conto instantâneo de Bolaño que caminha ao meu lado, ao último atardecer en la tierra, atravesso uma Santiago provinciana, cruzo ruas de casas ajardinadas, evito umbrais de bares coloridos, ignoro esplanadas nervosas na calçada. E escolho o Galindo para jantar com este companheiro fortuito politicamente incorrecto que, à medida que o vou conhecendo, se revela mais mexicano e, sobretudo, mais latino-americano que chileno. Mas é sobre o nocturno chileno que ele abandonou em 1974, depois de sair de uma prisão de Pinochet, que falamos.

Entretanto, trazem-me uma paila marina escaldante e é como se tivesse todo o Pacífico à minha mesa, com uma fauna de mariscos conhecidos e outros cuja identidade não ouso adivinhar. Através das janelas atravessa um segundo entardecer menos nervoso que o de ontem. Bolaño conta-me agora dos novos escritores chilenos que obstinadamente procuram escapar à sombra tutelar de Huidobro, de Neruda, de Gabriela Mistral, de Violeta Parra. E menos de Nicanor Parra que não é um fantasma. E sobre Isabel Allende diz-me que "no es una escritora, sino na escribidora"; e Skármeta, “un personaje de televisión“. Espero não vir a ler, um destes dias, na revista catalã Ajoblanco, uma crítica desapiedada sobre este jantar, como retribuiu Bolaño a Diamela Eltit que o convidara para jantar em sua casa. Julgo que o facto de ter viajado no avião para o Chile com os seus detectives salvajes jogará a meu favor. E também o meu interesse súbito pela modernidade visceral do nocturno chileno e das ruas do exílio mexicano. Por isso, conta-me, ainda, el secreto del mal, evocando o eterno diálogo com a literatura argentina, Arlt, Piglia, os fantasmas de Borges, as vanidades literárias. E também la canalla sentimental. Mas da vanidade do tempo não me apercebi eu.

Saio, então, para rua e reparo que o personagem de Soldados de Salamina, de Javier Cercas, já não caminha ao meu lado, na noite infrarrealista de Bellavista. Apenas grupos de jovens escondidos atrás de enormes garrafas de cerveja Escudo como se estivessem numa estação do inferno. Uns riem-se como se soubessem que o mundo está para acabar e só eles suspeitam desse destino quebrado. Outros olham as mesas vermelhas, flutuando sobre abismos duvidosos. Não vejo ali nenhum dos rostos que conheci nas filas das cabines telefónicas de Estocolmo. E ficam felizes, indiferentes aos meus passos incertos, agora que Bolaño me deixou só nesta parcela do nocturno chileno.

22 de setembro de 2009

Fazendo a mala com Bolaño



Porque anda por aí uma certa bolañomania , recupero um excerto do meu diário chileno que me caiu dos dias:


(...) Levo Bolãno na minha mala transatlântica. E porquê Bolaño? Porque depois dos abismos de Vila-Matas que acabo de explorar, este livro é um precipício azul que abre para a nova literatura latino-americana depois do boom do realismo mágico, contrariado pela Rayuela, de Cortázar, de que este romance é, ironicamente, o mais perfeito «contrário». E porque Los Detectives Salvajes é, escreve Vila-Matas, «uma brecha que abre para o mundo infernal de uma geração agrilhoada», a nossa. E porque Bolaño, que já cá não está, ocupa agora a minha «biblioteca do quarto escuro», ao lado de Bioy Casares, um autor do seu universo literário, também aqui hoje chamado para a elaboração deste plano de evasão. E porque quando estiver em Santiago do Chile, irei eu próprio, como um detective selvagem, procurá-lo «na rua Banderas, esquina Ahumada», onde Vila-Matas diz que «parece tê-lo visto observando esse mendigo que ali está sempre e se diz neto de Léon Tolstoi», embora isso seja inverosímil porque àquela data já Bolaño teria ido «embora deste mundo em silêncio».

17 de setembro de 2009

Bolaño no seu labirinto



Às vezes tenho a sensação de que A invenção de Morel, de Bioy Casares, continua funcionando nalguma dobra recôndita do mapa bolañiano onde a realidade e a ficção se bifurcam. E que Ulisses Lima perdido, sem mapa, em Cauquenes, segue no encalço de Arturo Belano… e que um e outro são, afinal, o fantasma de Mário Santiago e o alter ego de Bolaño que já cá não estão, porque foram, talvez, reunir-se com Cesárea Tinajero nos desertos de Sonora, continuando a epopeia realista visceral de Los detectives salvajes, e que eu -, que comecei a descobrir Roberto Bolaño no avião que que, não há muito tempo, me levou ao Chile e o procurei, primeiro, como um «detective selvagem», em Santiago, seguindo as indicações de Enrique Vila-Matas, «na rua Banderas, esquina Ahumada», onde o escritor catalão disse que lhe pareceu «tê-lo visto observando esse mendigo que ali está sempre e se diz neto de Léon Tolstoi» e, depois, nas suas palavras testamentárias, reunidas em pequenos ensaios, apontamentos, entrevistas que trouxe na minha mala de viagem chilena, - me vou transformando num expedicionário do mapa bolañiano que me foi estendido por pelo escitor catalão. São livros póstumos, El secreto del mal, La Universidad desconocida, Entre paréntesis, Bolaño por el mismo, que me chegam, não por acaso, porque, diz Bolaño, «a la literatura nunca se llega por azar. Nunca, nunca. Que te quede bien claro. Es, digamos, el destino, ¿sí? Un destino oscuro, una serie de circunstancias que te hacen escoger. Y tú siempre has sabido que ese es tu camino».

Um destino obscuro de leitura, eis para onde me conduzem os caminhos bifurcados desta estranha cartografia literária que, a avaliar pelo que circula na net, no youtube, na blogosfera, em sites sobre o autor chileno (talvez mais mexicano que chileno), vem secundado por um efeito Bolaño que vai transformando os leitores ocasionais em seguidores fiéis de uma obra tragicamente inconclusa, fragmentária, testamentária - a cujos segredos vão acedendo postumamente, como se escutassem na caixa negra de um avião acidentado uma voz derradeira atravessando com inteireza as turbulências da viagem final. Vão em busca, talvez, de um Bolaño que não existiu, mas cuja existência seria ironicamente refundada após a sua morte prematura, aos 50 anos, num hospital de Barcelona, através de um processo de reconstrução de uma biografia que começa a roçar a lenda, como diz Enrique Vila-Matas. Não tanto aquela lenda, duradoura, que durante o frenesi monástico dos últimos anos de vida o próprio Bolaño foi tenazmente escrevendo contra a morte, e para a qual o próprio sentido etimológico da palavra lenda remete ao significar o que deve ser lido. Mas a outra, seguramente efémera, forjada na propensão mitómana dos meios literários, somada ainda à propensão hiprócrita de falar bem dos que já não estão e que, por isso, não incomodam.

E quanto a isso não restam dúvidas, pois sucedem-se por todo o lado as reedições dos seus livros que conquistam, sobretudo, uma juventude leitora que se revê na errância desesperada das suas personagens, através dos abismos de um tempo em desagregação, cujo umbral atravessamos através de uma estranha efabulação, simultaneamente, realista e lírica, fundadora de um estilo que já conquistou um nome próprio, o de «modernismo visceral». Sobretudo quando esse umbral dá para o quotidiano nocturno das ruas do México DF em cujo mapa nos adentramos em Los detectives salvajes e nesse tremendo romance com mil páginas - que vai chegar às livrarias portuguesas no próximo dia 26 de Setembro -, estruturado em cinco partes que constituem uma pentalogia, que é 2666 e que parece responder definitivamente à questão levantada por Julio Cortázar no conto Apocalipsis en Solentiname relativamente ao devir da literatura latino-americana: continuar a explorar o filão do realismo mágico, transmitindo uma visão ingénua, etnográfica da realidade, ou testemunhar o horror de um continente, de um mundo, resvalando para o abismo?

Bolaño escolheu a segunda possibilidade, rompendo, como afirma Vila-Matas, «com a literatura latino-americana dos galos da Amazónia e das virgens em levitação», preferindo explorar o imaginário apocalíptico da América Latina, dos anos setenta, em Estrella distante, em Nocturno de Chile - considerado por Susan Sontag, à data da sua publicação, como «o mais autêntico e singular romance contemporâneo destinado a ocupar um lugar permanente na literatura mundial» -, e nos contos mercenários de Llamadas telefónicas, antes de empreender a viagem sem retorno através dos territórios assombrosos de Los detectives salvajes ou de ser arrastado para o último abismo, 2666, espécie de buraco negro do crime múltiplo sem solução cuja cratera se situa em Ciudad Juárez e que nos legou, não para nos confortar, mas nos confrontar com os maelstroms do mundo que nos arrastam para o mal.

«Cuidado, tudo é perigoso, mas não igualmente ao mesmo tempo», eis a frase de Foucault que poderia resumir os livros de Bolaño, espécie de poeta desesperado, traficante ocasional em busca absoluta da origem do mal, e por ele irremediavelmente «condenado desde el principio», porque sabe que «en el fondo a felicidad es inexistente», mas que, como Borges, não desiste de procurar no labirinto de palavras embebidas na tinta obscura dos seus livros, única forma de atravessar o mal do mundo como testemunha de um tempo em desagregação e, depois, ir-se embora do mundo, em silêncio, deixando-nos a todos um pouco mais à mercê dos labirintos reais, lá fora, no mundo.

13 de setembro de 2009

A caixa negra de Bolaño



«Estoy seguro de que moriré inédito», anotou, sem esperança, no seu diário, Roberto Bolaño, seis anos antes de morrer. Estava redondamente enganado. Depois dos livros póstumos - El secreto del mal, La Universidad desconocida, Entre paréntesis, Bolaño por el mismo e 2666 - que eu trouxe d uma recente viagem ao Chile, a voz fragmentária e testamentária de Bolãno ressoa, agora, na caixa negra do seu voo tragicamente inconcluso, convidando a adentrarmo-nos através da estranha cartografia dos seus livros por vir. É que depois do agente Andrew Wylie ter anunciado a descoberta, na caixa negra bolañiana - ou se se preferir, por corresponder melhor ao cânone, na sua arca pessoana -, do romance inédito El Tercer Reich, a editar em breve, leio em La Vanguardia a notícia da descoberta de mais dois romances inéditos do assombroso escritor chileno: Diorama e Los sinsabores del verdadero policía o Asesinos de Sonora. «El futuro del archivo, un mar de libretas y cuadernos de todos los tamaños, una vez inventariado, será seguramente una universidad. Adentrarse en sus páginas requiere la paciencia del paleólogo o del domador de pulgas», pode ler-se em La Vanguardia.

6 de setembro de 2009

Do sentido da possibilidade



A literatura, então, como «uma tentativa de tornar real a vida», escreveu Pessoa. Ignorava o poeta que, algumas décadas mais tarde, Enrique Vila-Matas haveria de fazer da possibilidade de introduzir o real na ficção uma marca do seu estilo pessoal através da qual a aparência de verdade levada até ao extremo converte aquilo que no início é apenas verosímil numa nova forma de realidade que não necessita de nenhuma outra explicação que a da evidência da ficção. E de uma ficção que questiona o nosso limitado conceito de verosimilhança e nos transforma em exploradores mentais de mapas obscuros em cuja cartografia abismal nos adentramos para nos aproximarmos mais da verdade.

Trata-se, então, aqui, de um conceito de verosimilhança que remete não tanto para aquilo que verdadeiramente entendemos por realidade, isto é, aquilo que acontece, mas mais para aquilo que poderia ter acontecido, que poderá acontecer, introduzindo, assim, na ficção «um sentido de possibilidade» musiliano que transforma as personagens «correntes e vulgares» de Exploradores do abismo em expedicionários de mundos paralelos, protagonistas de vivências nunca experimentadas que sobrepõem ao tédio quotidiano com a insolência de quem possui a fórmula mágica que o há-de esconjurar.

Lembram estes exploradores vilamatianos «esses homens [musilianos] do possível [que] vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos» (p. 41) que constituem simulacros de sentido num mundo que Musil sabe sem sentido mas que insiste em narrar em O homem sem qualidades (Dom Quixote) apesar de «tudo ter deixado de ser narrável e não seguir já nenhum fio» (p. 827). E lembra-nos Vila-Matas - que se cruzou com Musil à beira de um abismo mental no final de O mal de Montano - que se trata de «um novo modo de narrar que se constitui em permanente ensaio da vida» e que «abriu, sem fechar, o mais amplo horizonte que se oferece ao romance moderno» respondendo (tal como Hermann Broch) àquilo a que Kundera classificou como o apelo do pensamento, «não para transformar o romance em filosofia, mas para mobilizar, com base narrativa, todos os meios, racionais e irracionais, narrativos e meditativos, susceptíveis de esclarecer o ser do homem; de fazer do romance a suprema síntese intelectual».

Um convite, então, não para um passeio romanesco ao passado, mas para uma longa expedição através dos mapas obscuros do «apocalipse alegre» (expressão que sintetiza, segundo Broch, a forma como os austríacos viveram nihilismo de fin de siècle) cujos abismos cacanianos me disponho agora a explorar num programa de leitura para afrontar o vazio deste «mundo de qualidades sem homem» em que vamos vivendo. Isto é, escolhendo a qualidade de leitor sem qualidades, aberto a toda contingência, a toda a possibilidade de leitura que pode surgir numa qualquer dobra das duas mil páginas da monumental edição da Dom Quixote, numa autorizada tradução de João Barrento.

18 de agosto de 2009

Um poeta do sul



O que há de comum entre António Ramos Rosa e alguns escritores cujas qualidades apresentei nos textos anteriores? Haverá algum fio invisível a ligar o poeta a Walser, Emmanuel Bove, Sebald, também eles escritores que se deram como desaparecidos?… Teria Ramos Rosa lido estes escritores angélicos? Liga-os talvez a ideia de que o poeta é o que sacrifica tudo pela sua obra. Não que Ramos Rosa tenha cultivado como aqueles o desaparecimento, a ocultação do seu corpo, mas porque sempre viveu recatado, privilegiando uma existência sedentária, solitária, à fugacidade das experiências geográficas ou às poses efémeras em vazios cenários mundanos.

O mundo para onde desertou foi sempre o da interioridade povoada por seres reais e alteridades poéticas: «Desertei da biografia e dos relógios». E refugiou-se na linguagem, geografia única onde é possível seguir o seu rasto sem que a água ou o ar alguma vez o possa apagar: uma geografia onde o real foi destruído, onde a única realidade é a própria linguagem, colocando-a sob o signo de Rimbaud, da liberdade plena da imaginação, da demiurgia absoluta, capaz de fazer ouvir, como num búzio, a maresia do mundo. Pertence Ramos Rosa completamente à poesia, tal como Walser que se fundiu nos microgramas que escrevia em Herisau. Mas pertence Ramos Rosa, também, ao Algarve, pois essa é a única geografia exterior que deixa rasto na sua poesia, o espaço mais luminoso onde a “nudez” é uma palavra que terá correspondência com a paisagem algarvia.

Onde situar, então, esta poesia luminosa que o poeta classifica de cognitiva e metapoética? Recordemos que se deve a Ramos Rosa a reposição da pulsão modernista na poesia portuguesa, quando nos anos 50, fosse como poeta fosse como crítico (leia-se, sobretudo, O poema, sua génese e significação, que agrupa diversos artigos) fez das revistas Árvore, Cassopeia e Cadernos do Meio-Dia, que dirigiu, veículos privilegiados de uma nova linguagem poética como um ser próprio, um dinamismo próprio. Diz Eduardo Lourenço que onde Pessoa acaba, começa Ramos Rosa que é um poeta solar. «Eu sou algarvio, nasci no Sul [...] o espaço mais luminoso de Portugal, sim, terá tido alguma influência na minha obra poética onde a “nudez” é uma palavra que terá talvez alguma correspondência com a paisagem algarvia». A fulgurância das coisas mais simples irrompe nos versos, na imaginação deste poeta no nosso Sul, em que o muro branco, a cal, a espuma das ondas se reflectem no poema, sem, contudo, ofuscá-lo de realidade. Este o Ramos Rosa que, sobretudo, nós algarvios, nos cumpre celebrar, mesmo que o poeta, agora, procure a ocultação, não o desaparecimento.

10 de agosto de 2009

Bartleby ou o eclipse da palavra


«Escrever poesia depois de Auchswitz é bárbaro», afirmou Adorno. E Paul Celan, que viveu em carne viva a experiência do extermínio, repetiu até à própria laceração de si mesmo, até ao emudecimento total, a mesma promessa angustiante: «Se viesse, / se viesse um homem / se viesse um homem ao mundo, hoje, com / a barba de luz dos / patriarcas: só poderia, / se falasse deste tempo, só / poderia balbuciar, balbuciar / sempre sempre / só só». Caídos neste torvelinho de terrível impotência, num tempo de silêncio e destruição, a que Hanna Arendt chamou a «banalidade do mal», escritores houve que sucumbiram à derrocada da razão e da linguagem, calando a sua fala, negando-se a escrever, abraçando o silêncio depois de ter proferido palavras de um modo que anunciava a promessa de novas palavras, como um rio que de repente tivesse secado deixando apenas no leito pedregoso a nostalgia do nunca mais dito. Como se escrever, acrescentar mais alguma semântica à desordem do mundo, mais não fizesse do que aumentar a catástrofe.

Hoffmansthal abriu o vertiginoso século XX mostrando o seu próprio desconcerto face à impossibilidade da comunicação através da escrita, prometendo na sua Carta de Lord Chandos, em 1902, nunca mais escrever. Kafka alude, depois, à impossibilidade da literatura, sobretudo nos seus Diários. Borges cita o poeta argentino Enrique Banchs, de quem diz: «Na cidade de Buenos Aires, em 1911, Enrique Banchs publica La urna, o melhor dos seus livros, e um dos melhores da literatura argentina: depois, misteriosamente, emudece. Há vinte e cinco anos que emudeceu». Seriam, afinal, cinquenta e sete anos. E essa mesma experiência de impotência e renúncia, desencanto e ocultação é sucessivamente reiterada ao longo do século por escritores com medo de existir diante da anormalidade da escrita: Robert Walser, Robert Musil, Bruno Schulz, Juan Rulfo, J. D. Salinger, Henri Roth… Tal como os seus antepassados Hölderlin, Joseph Joubert, Rimbaud. Rimbaud cuja insensata santidade o levou a pronunciar o mais belo manifesto de vida: «sobretudo fumar, beber licores fortes como o metal fundido» e, com uma singular precocidade, a escrever toda a sua obra até aos dezanove anos para depois partir para a aventura abissínia.

A interrupção da escrita, o silêncio, a renúncia da palavra de «um sector importante da literatura ocidental moderna», eis o que rastreia Enrique Vila-Matas em Bartleby & Companhia [Assírio & Alvim, 2001], uma espécie de catálogo de instantes fulgurantes dessa «pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralizados para sempre». Tendo como base Bartleby, o escriturário – o personagem do conto homónimo de Herman Melville – que, quando alguém pretendia encarregá-lo de alguma tarefa, respondia invariavelmente «Preferia não o fazer» - espécie de formulação não exaltante da negatividade moderna -, Vila-Matas oferece-nos um caderno de notas de pé de página, «notas sem texto», como ele lhe chama, sobre o síndroma de Bartebly, esse «mal endémico das letras contemporâneas», uma espécie de fresco onde se respira um humor shandiano cuja principal virtude é a de avivar-nos a memória e o desejo de revisitar as paisagens literárias que vai povoando e seguir no rasto de Rimbaud, Walser, Roth e tantos outros escritores que formam a nossa biblioteca obscur

Entretanto, se alguém quiser adentrar-se mais no significado desta renúncia bartlebyana deverá visitar os ensaios de Giorgio Agamben [Bartebly o della contigenza, Macerata, 1993] ou Gilles Deleuse ["Bartleby ou la formule", in Critique et Clinique, Les Éditions de Minuit, Paris, 1993].

O síndroma de Bartlebly


Olho para os cartazes eleitorais que apresentam Manuela Ferreira Leite numa postura de braços cruzados e lembro-me, cada vez mais, de Bartleby, o escriturário, o personagem do conto homónimo de Herman Melville que, quando instado a realizar um qualquer trabalho, respondia impreterivelmente «Preferia não o fazer». É que o mesmo se vai passando com a líder do PSD que, sempre que alguém lhe pede um comentário sobre um qualquer episódio político ou que revele qual o seu programa eleitoral, responde, invariavelmente, que preferia não o fazer, numa atitude de exaltação da passividade política que a própria iconologia política (isto é, a sua imagem nos cartazes) vem, agora, corroborar, coincidindo, assim, com a atitude de inactividade discursiva traduzida numa mímica pessoal que já se tornou numa espécie de fórmula expressiva sem autor, logo, também, sem conteúdo.

Trata-se, então, de um estilo, entendido como conjunto de traços formais ou discursivos, algo que tem que ver com o modo inconfessado de fazer qualquer coisa, e não com o que é feito ou dito, ou não dito - que é o que, no caso de MFL, sucede na maioria das situações em que é interpelada pelos jornalistas.

Assim, tendo em conta esse seu catálogo pessoal de instantes fulgurantes de «pulsão negativa ou atracção pelo nada» na política - de que ausência de apresentação de programa eleitoral constitui o grau máximo da inacção discursiva -, a questão que me coloco é se não sofrerá, então, Manuela Ferreira Leite de uma espécie de «síndroma de Bartleby» - noção shandiana que peço emprestada a Enrique Vila-Matas [in Bartleby & Companhia, Assírio & Alvim] e que aplico aqui à política - que a leva a renunciar ao discurso político para melhor esconder a ausência de soluções governativas, numa vertigem de silêncio que visa evitar o compromisso político, preferindo apostar, apenas, na erosão do adversário - isto é, na erosão de Sócrates, cujo discurso prolixo nos trouxe um cansaço imenso - e, por isso, mais exposto à contradição entre a forma e o conteúdo?

6 de agosto de 2009

No território do lápis


Herisau, dia de Natal de 1956. Entre faias e abetos, na ladeira que desce do Schochenberg, um homem jaz no chão, confundindo-se com o deserto branco que o rodeia. A neve é o mais perfeito esconderijo. Antes, depois de ter almoçado no sanatório, errara durante horas até ao coração do bosque, perdido. Ao longe, talvez, o toque lamentoso de um sino. A cabeça está apoiada sobre a raíz de um abeto que emerge da neve. Não há tristeza no seu rosto. Apenas uma réstia de um olhar eternamente extasiado perante a neve pura, com o espanto de quem descobre, finalmente, o mais secreto dos desejos. Daqui a pouco, um grupo de crianças encontrará um corpo num bosque gelado e saberemos tratar-se de Robert Walser, o «poeta mais escondido que alguma vez existiu», como escreveu Elias Canetti. E que num nos dos seus romances, Os irmãos Tanner, pusera premonitoriamente na boca de um personagem uma elegia a Sebastião, o poeta encontrado morto na neve: «Com que nobreza escolheu a sua tumba! Jaz no meio de esplêndidos abetos verdes, cobertos pela neve. Não quero avisar ninguém. A natureza inclina-se a contemplar o seu morto, as estrelas cantam suavemente à volta da sua cabeça e as aves nocturnas grasnam: é a melhor música para alguém que não tem ouvido nem sensações».

Conta Max Brod que um dia Kafka apareceu em sua casa para dar conta do seu entusiasmo pelo livro Jakob von Gunten, de Robert Walser. E conta, ainda, como Kafka leu, depois, em voz alta, fragmentos desse livro, rindo às gargalhadas, com o mesmo riso de quando leu O processo aos seus amigos. A irmandade entre Kafka e Walser seria comentada por Robert Musil como «um caso particular do modelo de Walser». Em Jakob von Gunten [tal como A rosa, O salteador e O ajudante, editados em Portugal pela Relógio d´Água], o protagonista é aluno do Instituto Benjamenta, inventado Walser, uma escola para formar criados. Em vez de formar a personalidade dos alunos, o instituto apaga-a. O principal obstáculo a ultrapassar é o da própria consciência. Por isso, praticam a repetição, em obediência mimética. Obedecem a toda e qualquer ordem para não pensar. O seu objectivo é apagar-se. Jakob pensa: «Se me afundo e me desmorono, o que é que se perderá? Um zero». Li de um só folgo este romance-diário com uma prosa despojada de clímax narrativo e densidade psicológica, uma espécie de emanação lúdica segregada pela sucessão de derivas mentais e livre associação discursiva, mas também com um lado sombrio e funesto, delicadamente omnipresente. «Uma história singularmente delicada», segundo Walter Benjamin, em que Jacob descreve os seus colegas, passeia pela cidade, observa o autoritário director e a sua irmã Lisa, penetrando no mistério das suas vidas, numa experiência, ao mesmo tempo, real e onírica que nos faz lembrar, precisamente, Kafka que provavelmente «teria sido ligeiramente diferente se não tivesse, ele próprio, lido Robert Walser», como escreveu Enrique Vila-Matas. «Um escritor verdadeiramente magnífico que nos parte o coração», segundo Susan Sontag, cuja obra desdobrada em quinze livros é «um estranho e fascinante espelho da vida». De uma vida que foi um percurso de incompreensão, de penúria, de dor, mas da qual nunca se queixa nos seus livros em que um niilismo aparente é atravessado por uma ingenuidade espontânea.

«A singularidade de Robert Walser como escritor», escreveu Canetti, «consiste em nunca falar de motivações. É o mais oculto dos escritores. Está sempre bem, sempre encantado com tudo», cultivando a insignificância da qual, achava, poderia extrair algo «vivificante e purificador». Por isso, entre os seus múltiplos empregos de subalterno, trabalhou como empregado bancário, escriturário, empregado numa livraria, operário numa fábrica de máquinas de costura e, finalmente, mordomo numa castelo na Silésia. Mas o seu único capital era a sua bonita caligrafia, minuciosa e precisa. Todas as noites, depois do trabalho, num pequeno quarto de pensão, Walser continuava a escrever. Em vez de ordens de compra, cartas comerciais ou registos contabilísticos, escrevia peças de teatro, poemas, contos, romances com uma micrografia que cada vez se aproximava mais da extinção. Uma escrita em que as palavras eram a corrente natural da sua imaginação, com paixão total, onírica. Às vezes, ocultava-se em Zurique, na sua «Câmara de Escrita para Desocupados», e aí sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto.

Numa espécie de vagabundagem estilística, indecisa, associativa, feita de ligações imprevistas e ricochetes - «Caneta, se não me ajudas, não sei como avançar» -, Walser devolve a escrita à sua precariedade, enquanto ele próprio se vai consumindo escrevendo, «na sua busca de libertação da consciência de Deus, do pensamento, e de ele mesmo», como escreveu Vila-Matas, em Doutor Pasavento. À semelhança de Hölderlin que passou os últimos trinta anos da sua vida encerrado nas águas-furtadas do carpinteiro Zimmer, em Tübingen, praticando a ilegibilidade, também Walser se dá como desaparecido, passando os últimos vinte e oito anos da sua vida num «manicómio, o mosteiro da época moderna», primeiro em Waldau, depois em Herisau, escrevendo em tudo o que encontrava à mão - envelopes usados, cartões de visita, formulários oficiais, margens dos jornais, farrapos de papel - numa caligrafia microscópica, secreta, uma espécie de retratos de momento, esse género literário tão apreciado por Witold Gombrowicz, os 526 microgramas que só muitos anos depois haveriam de ser decifrados e publicados sob o mais walseriano dos títulos, Território do lápis.