5 de maio de 2012

Cronópio por acaso

 
Julio Cortázar acreditava no acaso, naquela série de pequenas coisas, de indícios, de combinações, de "coincidências sempre extraordinárias e ao mesmo tempo comuns", como testemunhou o seu amigo e editor Francisco Porrúa, que nos levam, por exemplo, a escolher um caminho em vez de outro, para nele, depois, encontrarmos o que não sabíamos ainda que procurávamos. E eu, se não acreditasse no acaso, começaria, doravante, a acreditar, pois, hoje, pela manhã, ao ter constatado que este ano se cumprem 50 anos da publicação de Histórias de cronópios e de famas - segundo Vargas Llosa, o livro mais "travesso" de Cortázar -, constituindo este facto um daqueles números redondos que nos convidam a celebrar o aniversário de uma figura ou obra literária - circunstância irritante para Enrique Vila-Matas que, para esconjurar esse espírito comemorativo, escreveu durante quase dois anos uma coluna dominical no Diario 16, intitulada Para acabar con los números redondos que, por acaso, por estes dias, ando a ler na antologia Uma vida absolutamente maravillosa -, decidi no instante preciso em que ia sair de casa, talvez guiado por esse "sistema de leis exterior ao nosso" em que Cortázar acreditava, trazer comigo o celebrado livro que inclui um precioso manual de instruções que, fossemos nós mais previdentes, deveríamos trazer sempre connosco para nos ajudar em situações para as quais, às vezes, necessitamos de instruções, como sucedeu, hoje, comigo.

É que, ao fim da tarde, ao regressar a casa, uma avaria no elevador obrigou-me a subir pelas escadas até ao meu andar, isto é, subir como um cronópio sem folgo os catorze lances de escada até ao sétimo andar. Compreendi, então, o insondável motivo que me tinha feito trazer comigo o livro de Cortázar. E o motivo foi tê-lo à mão para consulta, ao final da tarde, para me instruir naquele inesperado empreendimento de subir catorze lances de escadas. E assim, de manual aberto, lá fui lendo as instruções e subindo as escadas "de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incómodas". Ao descansar ao nono lance e ver uma aranha pendurada na sua teia, ainda me ocorreu a "maravilhosa ocupação de cortar-lhe uma pata, colocá-la num envelope, redigir ´Senhor Ministro das Relações Exteriores`, juntar o endereço, descer as escadas aos saltos, despachar a carta no correio da esquina". Mas isso, como já se percebeu, contrariaria as "instruções" que vinha seguindo e, como tal, poderia revelar-se perigoso, pelo que achei melhor não arriscar e prosseguir como um bom cronópio na minha instruída subida de escadas, para não chegar atrasado à celebração do cinquentenário do livro. 

Bem instruído, pude, então, terminar esta evocação de Histórias de cronopios e de famas, publicado em 1962, em Buenos Aires, primeiro pelas Ediciones Minotauro e, em seguida, pela Sudamericana, que se tornaria na editora recorrente de Cortázar. Recordo que no ano seguinte apareceria Rayuela, o romance fragmentário e total que consagraria Cortázar como um dos mestres do boom latino-americano, pelo que em 2013 estaremos perante outro número redondo, o do cinquentenário de Rayuela.

Mas, por agora, a celebração pertence a Historias de cronopios e de famas, o livro que inaugurou a micro-ficção e nos deu a conhecer aqueles personagens dionisíacos, criativos, surrealistas que, em tudo, são o oposto dos famas que são apolíneos e pragmáticos. Os cronópios, segundo Cortázar, assemelham-se aos poetas. Indiferentes ao quotidiano, passam o dia a cantar, esquecem-se das obrigações, às vezes são atropelados, comovem-se, perdem o que trazem nos bolsos e, quando se dispõem a em viajar, perdem o comboio. Os famas, pelo contrário, são organizados e práticos, prudentes e calculistas, emolduram as suas lembranças e quando vão em viagem, mandam alguém à frente para confirmar os preços e a cor dos lençóis. Já as esperanças são uma mistura de ambos, "são sedentárias e deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas, que nos exigem que nos desloquemos até elas, porque elas não vêm até nós".

Como poderia eu, hoje, ter subido os catorze lances de escada do meu prédio se, por acaso, não tivesse comigo o manual de instruções do grande cronópio Cortázar? E como saberíamos nós dar corda aos relógios? Se assim não fosse perderíamos sempre os comboios e nunca chegaríamos a horas aos encontros. E, sobretudo, quem nos informaria que "existe na Escócia uma aldeia onde se vendem livros com uma página em branco perdida no meio do livro (e que) se, às três da tarde, um leitor nela desembocar, morrerá". 

(foto ao alto: Julio Cortázar com a sua mulher Aurora Bernárdez, quando de uma viagem à Índia em 1956)

23 de abril de 2012

Os livros dentro dos livros



Encontro sempre outros livros nos livros que leio. E leio-os procurando escapar às tentações hermenêuticas que sustentam uma certa leitura crítica, profissionalizante, controladora do sentido dos textos através de uma axiomática que procura iluminar o oculto, e que Foucault descrevia como uma «vontade de verdade». Não, não vou por aí, perseguindo a ilusória linha contínua da hybris do novo iluminismo. Prefiro os labirintos benjaminianos embebidos na tinta dos livros.

E, por isso, prefiro os livros onde se recorta a trama da vida, com as suas cesuras que remetem para outras vidas contadas noutros livros. Gosto, então, de livros onde ecoam outros livros, outros autores, outras tramas. Livros que remetem, que aludem, que citam. Livros onde um só fragmento, uma evocação pode levar a outros caminhos que neles se bifurcam. Livros que trazem consigo o estigma dos cruzamentos, da enxertia. Livros que engendram novos livros. Livros de fronteira cuja essência reside na sua travestização genóloga. Livros, ainda, que são por si só uma biblioteca inteira e que, por isso, leio para saber o que os seus autores leram. Livros- labirinto que transformam qualquer limitada biblioteca na interminável biblioteca laboriosamente construída por tradutores, exegetas, anotadores, interpretes, bibliotecários que habitam os contos de Borges. Também por escritores sem qualidades. E outros doentes da literatura obcecados pela vontade de citar, glosar, anotar, comentar textos alheios, exercitando, assim, através da apropriação das palavras alheias toda uma «poética enciclopédica».

Todas as leituras são provisórias, porque nunca relemos um livro da mesma maneira que o lemos da primeira vez. Ou porque relemos cada livro como se estivéssemos a ler um livro que nunca tivesse sido lido. Procuro, assim, escapar à imanência do texto, através de uma hipertextualidade não tecnológica, perscrutando na geografia do acaso de cada texto o ponto e a ponte de passagem para outros textos. «Perder-se numa cidade como se perde numa floresta exige toda uma educação», escreveu Walter Benjamin. Sim, perder-me num livro e reencontrar-me noutro. Não para me confortar, mas para abanar convicções. A leitura, então, como experiência do mundo, mesmo que o livro seja um clássico, até porque, por definição borgesiana «clássico é aquele livro [...] que decidimos ler como se nele tudo fosse [...] tão profundo como o cosmos e sujeito a todas as interpretações». Ou aquele onde, ainda, «surpreende que um rasto já há muito extinto no ar ou na água possa continuar visível, aqui, no papel». Nada está oculto nesta definição de leitura oferecida por W. G. Sebald. Nada está oculto nos livros que me são dados a ler, pois neles também se faz e desfaz, à medida que os leio, - como escreveu George Bataille - a «experiência interior que corresponde à necessidade em que me acho em cada momento».

Por isso, porque por contaminação literária também reescrevo os livros que leio, renego aquilo a que Gilles Deleuze chamava de «interpretose» e que continua a assolar a crítica universitária contemporânea. Porque é preciso nunca falhar a ocasião da leitura, o que só acontece se soubermos adentrarmo-nos nos mundos paralelos que se bifurcam nos livros. Não em todos, claro, apenas naqueles que escolhemos como quem escolhe um bem precioso. Esses são os livros que leio e sobre os quais, numa fulguração momentânea, até mesmo Kafka, contrariando todos os seus intérpretes futuros, escreveu: «atravessando as palavras há restos de luz».

25 de março de 2012

Recordações inventadas


"Afirma Pereira que o conheceu num dia de verão. Um magnífico dia de verão, soalheiro e arejado, e Lisboa resplandecia…". Eu conheci-o, tardiamente, graças ao filme Afirma Pereira, de Roberto Faenza, adaptado do romance homónimo, protagonizado por Marcelo Mastroianni. E, depois, perseguindo a sombra de Vila-Matas em Mastroianni-sur-Mer perseguindo a sombra Tabucchi, passos rápidos, olhos baixos, alheado do mundo, perseguindo, por sua vez, a sombra de Pessoa pelos cafés da Baixa de Lisboa onde, tal como o poeta antes da sua morte, num delírio de ser outro, esperava encontrar os mesmos fantasmas que haveriam de ajudá-lo a escrever o Requiem de Pessoa. 

"Que língua falam os mortos que regressam à força?", pergunta Tabucchi. Ou, como diria Roberto Bolaño: "Que livro teria coragem de oferecer a um condenado à morte? "Que afirmaria Pereira, em memória de Tabucchi que, parece, cultivava a elegia dos escritores desaparecidos? Talvez afirmasse, como um dia afirmou o seu amigo José Cardoso Pires, que "de conto em conto de Tabucchi, de estação em estação, adentramo-nos nos derradeiros continentes, que são os sonhados por outros solitários: Pessoa ao desdobrar-se em várias máscaras, Scott Fitzgerald e o seu bando de desesperados vivendo a literatura na Riviera da dolce vita". Pereira desdobrando-se em Mastroianni no filme de Faenza, Tabucchi desdobrando-se, através sua recordação inventada, nos heterónimos de Pessoa com uma "assombrosa lucidez / em que como outro a gente está", como escreveu Pessoa ele mesmo no seu Cancioneiro

E eu, agora, sem jeito para elegias fúnebres, reinventando as recordações inventadas de Tabucchi no legendário bar oceânico Peter's Café Sport, na cidade da Horta, bebendo um fulminante gintonic, e apropriando-me daquele "sonho em forma de carta", espécie de Moby Dick em miniatura como chamou Enrique Vila-Matas a esse breviário atlântico que é a Dama de Porto Pim que, de vez em quando, me leva num velho baleeiro à deriva entre ilhas e recifes a ver as "montanhas de fogo, vento e solidão" dos Açores. E, depois, ali, naquela taberna atlântica, à hora do crepúsculo, sob o reflexo da luz declinante lá fora, escutar como num búzio a velha guarda de baleeiros que perderam as graças do mar narrando histórias, reais e outras imaginadas, de baleias e "homens que às vezes cantam, mas só para eles, e o seu canto não é uma reclamação mas sim uma forma de lamentação desgarrada (...) se afastam deslizando em silêncio e é evidente que estão tristes". 

Ficções breves, escavações na memória, anotações metafísicas, notas de pé de página, cartografias, crónicas, bibliografias. Mais do que uma geografia das ilhas dos Açores, toda uma geopoética da alma açoriana. E a recordação inventada de Antero de Quental - influenciada, talvez, pelas Vidas imaginárias de Marcel Schwob ou pelas Vidas de Dubin, de Malamud - que num delírio de querer ser outro e não o conseguir, regressado de Lisboa a Ponta Delgada, naufraga de si mesmo num banco verde em frente do mar, disparando por duas vezes contra si próprio um revólver. 

Volto a pensar no que afirma Pereira que numa tarde de Outono visitou Tabucchi para lhe contar a sua história de tomada de consciência política e mudança existencial e recordo que, para além de inventor de recordações e de fazedor ficções, Tabucchi foi, também, um escritor comprometido com o seu tempo, denunciando Berlusconi e o falso mundo do espectáculo político que criou a seus pés graças ao seu império mediático. 

Custou-lhe cara essa denuncia, pois farto do espectáculo infame em que se transformara a cena política italiana, acabaria por refugiar-se em Lisboa onde não mais deixaria de perseguir Pessoa, indo ao encontro da sua íntima vocação de fazer da sua obra um lugar de encontro entre duas culturas, tornando-se, como diria Pessoa num "fantasma errante em salas de recordações" entre a sua Lisboa povoada de heterónimos pessoanos e as ilhas dos Açores "povoadas por gentes que veneram paixões e adoram deuses como o amor ou o ódio ou o Deus do ressentimento, mas que, como num mapa interior, são reais apenas num sonho em forma de carta", como escreveu Enrique Vila-Matas. 

António Tabucchi morreu, hoje, em Lisboa, numa manhã de melancolia, e foi a enterrar no cemitério dos Prazeres, a sua sombra agora definitivamente transformada no heterónimo italiano de Pessoa que já lá estava à sua espera para - quem sabe? - ao crepúsculo, saírem ambos em passeio pela Baixa e depois se sentarem na margem do Tejo "meditando em vão". 

21 de março de 2012

Fogo lento


Se olharmos, actualmente, para os escaparates das livrarias, veremos que o que aí abunda é a redundância na qual se afunda o campo literário indelevelmente rasurado pelas regras do mercado e pelo desejo de uma nova «raça de escritores, imitadores do já feito», em permanecer na «eternidade preguiçosa dos ídolos», como escreveu Maurice Blanchot. Por isso, nestes «tempos de redundância», a poesia de Herberto Helder constitui, por si só, um questionamento «intempestivo» do próprio lugar da poesia ante a constelação de vazios que preenche um espaço literário cuja legitimidade não é mais outorgada pela palavra poética mas sim pelas regras do mercado editorial ditadas pelos tais «trapezistas do marketing» de que fala Enrique Vila-Matas em O mal de Montano.

É que Herberto Helder pertence, ainda, a outro tempo. A um tempo em que os poetas ambicionavam constituir-se exclusivamente através da sua obra, fugindo por vontade própria da vida mundana e da vacuidade dos prémios e honrarias. Porque já Séneca dizia que a fama é horrível pois depende do juízo de muitos. E Flaubert: «as honrarias desonram». E Herberto Helder, numa remota entrevista: «O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo». E, depois, noutra rara entrevista: «Há quem se ponha no centro de câmaras ecoantes: e os ecos chegam de todos os lados: as respostas caóticas, o êxito, o erro, a morte da alma». Por isso, nas últimas décadas Herberto Helder vem cegando todo o espaço mediático à sua volta: nem entrevistas, nem aparições públicas, nem conversas com leitores, nem prémios. Apenas um intransigente silêncio em que se dissolve não apenas a sua biografia mas também qualquer tentativa de aproximação hermenêutica à sua obra através da sua autoridade autoral.

Daí a decisão radical de ter como única morada a poesia, fazendo do auto-apagamento, da dissolução biográfica, da recusa da interpretação da sua obra, o trabalho de toda uma vida. «Não moramos autenticamente senão aí onde a poesia tem lugar e dá lugar», escreve Blanchot em O livro por vir. E, antes dele, Hölderlin: «…é poeticamente que o homem permanece». E noutro verso ainda: «Mas o que permanece, os poetas o fundam». Insondável morada esta habitada pelo «idioma bárbaro» de Herberto Helder que sustenta o bruxulear de uma luz, abre a vacilação de um caminho em direcção ao «poema absoluto» através do qual o poeta busca a superação do mito com uma violência nietzschiana: «Até que Deus [seja] destruído pelo extremo exercício da beleza».

E o que funda Herberto Helder através da radical redução da Poesia Toda (1981) operada, primeiro, em Ou o Poema Contínuo (2001) e, mais recentemente, em A Faca Não Corta o Fogo - como se a sua obra fosse um «poema contínuo» crepitando num fogo lento donde se soltam «as notas impreteríveis para que da pauta se erga a música, uma decerto não muito hínica, não muito larga nem límpida música, mas este som de quem sopra os instrumentos na escuridão», como ele próprio já advertia na "súmula" primeira? Talvez, sempre, os mesmos «punti luminosi poundianos, ou núcleos de energia assegurando uma continuidade do sensível» que antes dele já Pessoa perseguira, deixando aberta a ideia da literatura como utopia ou, se se preferir, arriscando uma concepção mallarmiana do livro por vir que encontramos no livro homónimo de Blanchot.

20 de março de 2012

Um poeta do Sul


Haverá algum fio invisível a ligar António Ramos Rosa  a Walser, Emmanuel Bove, Sebald, também eles cultores de uma metaliteratura? Teria Ramos Rosa lido estes escritores angélicos? Liga-os, talvez, a ideia de que o poeta é o que sacrifica tudo pela sua obra. Não que o poeta tenha cultivado como aqueles o desaparecimento, a ocultação do seu corpo, mas porque sempre viveu recatado, privilegiando uma existência sedentária, solitária, à fugacidade das experiências geográficas ou às poses efémeras em vazios cenários mundanos. O mundo para onde desertou foi sempre o da interioridade povoada por seres reais e alteridades poéticas: Desertei da biografia e dos relógios.

E refugiou-se na linguagem, geografia única onde é possível seguir o seu rasto sem que a água ou o ar alguma vez o possa apagar: uma geografia onde o real foi destruído, onde a única realidade é a própria linguagem, colocando-a sob o signo de Rimbaud, da liberdade plena da imaginação, da demiurgia absoluta, capaz de fazer ouvir, como num búzio, a maresia do mundo. Pertence António Ramos Rosa completamente à poesia, tal como Walser se desintegrou nos microgramas que escrevia em Herisau. E pertence, também, ao Algarve, pois essa é a única geografia exterior que deixa rasto na sua poesia, o espaço mais luminoso onde a "nudez" é uma palavra que terá correspondência com a paisagem algarvia.

Onde situar, então, esta poesia luminosa que o poeta classifica de cognitiva e metapoética? Recordemos que se deve a António Ramos Rosa a reposição da pulsão modernista na poesia portuguesa, quando nos anos 50, fosse como poeta fosse como crítico (leia-se, sobretudo,  O poema, sua génese e significação que agrupa diversos artigos) fez das revistas Árvore, Cassopeia e Cadernos do Meio-Dia, que dirigiu, veículos privilegiados de uma nova linguagem poética como um ser próprio, um dinamismo próprio. Diz Eduardo Lourenço que onde Pessoa acaba, começa Ramos Rosa que é um poeta solar. Eu sou algarvio, nasci no Sul [...] o espaço mais luminoso de Portugal, sim, terá tido alguma influência na minha obra poética onde a "nudez" é uma palavra que terá talvez alguma correspondência com a paisagem algarvia.

A fulgurância das coisas mais simples irrompe nos versos, na imaginação deste poeta no nosso Sul, em que o muro branco, a cal, a espuma das ondas se reflectem no poema, sem, contudo, ofuscá-lo de realidade. Este o Ramos Rosa que, sobretudo, nós algarvios, nos cumpre celebrar, mesmo que o poeta, agora, procure a ocultação, não o desaparecimento.

17 de março de 2012

A actualidade fabricada


Um artigo inédito de Albert Camus sobre jornalismo livre, censurado em 1939, e publicado esta semana pelo Le Monde, recupera o olhar crítico e a isenção do autor de O estrangeiro e revela uma extraordinária pertinência face à forma como o jornalismo actual vem respondendo aos acontecimentos, renunciando ao compromisso de se afirmar como um "contra-poder" quer dos jogos políticos, quer de inconfessados interesses económicos quer, ainda, de si próprio.

Ora, a constituição da experiência contemporânea é cada vez mais determinada pelas máquinas mediáticas que nos dão a ilusão de estar em todo o lado ao mesmo tempo. Quer queiramos quer não, estamos imersos na actualidade "fabricada" pelos media contemporâneos que tendem a produzir uma espécie de delírio colectivo universal em torno de acontecimentos processados mediaticamente em função de inconfessados interesses que pouco têm a ver com a ética jornalística enunciada por Camus.

Numa época em que a França já paralisada pelo medo da invasão nazi e quando as suas elites políticas e jornalísticas se dispunham à renuncia sem pudor ao Terceiro Reich, Albert Camus propunha uma ética jornalística assente em quatro princípios: lucidez, desobediência, ironia e obstinação. A lucidez que "supõe a resistência aos mecanismos do ódio e da ira e ao culto da fatalidade". A desobediência que "face à crescente maré de estupidez, é necessário também opor". "A ironia que é uma arma sem precedentes contra os demasiados poderosos". E "um mínimo de obstinação para superar os obstáculos que mais desanimam", a saber: "a permanência da absurdo, a abulia organizada, a estupidez agressiva".

Ora, 73 anos depois, embora não haja censura, o manifesto jornalístico de Albert Camus continua actual face à promiscuidade entre as classes políticas, empresariais e mediáticas e à renuncia dos media em se afirmarem como "contra-poder" de si próprios como, também, já defendera Karl Kraus na Viena dos princípios do século XX.

A experiência contemporânea mediatizada constitui-se não em função do acontecimento em si, mas através da construção de uma ficção jornalística que visa a identificação gratuita do público com o acontecimento despolitizado e abordado em função das convulsões dos seus protagonistas. Vistas assim as coisas, o jornalismo, hoje, responde ao acontecimento não para para lhe dar tonalidade expressiva e retraçá-lo racionalmente, mas para nos introduzir nele como espectadores obscenos cujo ponto de vista é sempre incitado, e excitado, por formas mediáticas demagógicas e manipuladoras da opinião pública, que originam as várias e contraditórias patologias de posição que somos coagidos a adoptar, marcadas por uma ilusão paranóica de poder sobre os protagonistas do acontecimento.

Lemos e vemos as notícias que nos são oferecidas com a ilusão de penetrar na intimidade do outro como se, momentaneamente, nos fosse concedido o direito de tudo julgar sem que para isso tenhamos de ser confrontados com a nossa responsabilidade moral. Daí, a banalização lúdica da violência, da crueldade, a exposição da intimidade, a reivindicação divertida da futilidade diariamente servida nas televisões. Mas daí, também a urgência de - contrariando Karl Kraus que dizia que "o jornalismo come o pensamento" - pôr o jornalismo a pensar, porque quer queira quer não essa é a sua essência. Porque, como escreveu Camus, "se [um jornalista] não pode dizer tudo o que pensa, pode [pelo menos] não dizer aquilo que acredita que é falso".

10 de março de 2012

A tentação do fracasso


A partir da vida fracassada de um jovem com ar de Dylan, um espectro do passado, alguns fantasmas do futuro e um Arquivo Geral do Fracasso, Enrique Vila-Matas, regressa de Dublin - para onde tinha dada o salto inglês, melhor seria dizer irlandês - a Barcelona, ao seu próprio bairro nas imediações da Pasaje Pellicer ("Na realidade quando me mudei para este bairro, vivi indirectamente esta história. Dediquei-me, por isso, a contá-la, modificando apenas alguns pormenores. Real na sua essência, como a própria vida", confessa em entrevista à revista El Cultural) para nos brindar com Aire de Dylan (numa evocação à ampôla de vidro com ar de Paris que Duchamp construiu para oferecer a uns amigos e à qual deu o nome de Air de Paris) que a Seix Barral lançará na próxima 3ª feira em Espanha e a Teodolito, a nova editora de Veiga Ferreira, publicará em Portugal, parece, ainda este mês.

Segundo o editor, um romance em que Vila-Matas convoca os seus melhores argumentos retóricos com humor, ironia e sarcasmo para, através de uma intriga negra, com assassinos e assassinatos, dirigir uma crítica à pós-modernidade. E um romance, ainda, cuja história "dialoga - segundo o próprio autor - com o jovem que escreveu História abreviada da literatura portátil que girava em torno de uma sociedade secreta". Uma sociedade secreta preguiçosa, que se contenta em "ter uma ideia por dia", mas sem nunca levá-la a cabo para - digo eu - não fracassar na sua tentação de fracassar.

"Alguns entram muito tarde no teatro da vida, mas quando o fazem parece que entram sem rédea e directamente para o final da obra", assim arranca Aire de Dylan. Outras frases soltas que me chegaram, como "O fracasso é prefiguração natural do escritor", antecipam a ideia da tentação do fracasso que parece alimentar a vida do protagonista do romance, o jovem Vilnius, conhecido como o pequeno Dylan, mistura do cantor americano com o poeta Rimbaud.

Segundo a sinopse do editor, um prolífico escritor vai a um congresso, para o qual recebeu convite, com alguma estranheza e uma certa inquietação. Nesse congresso, participa, em substituição de Juan Lancastre, uma espécie de "Hamlet fitzgeraldiano pós-moderno", o seu filho Vilnius, um jovem criativo com um certo ar de Dylan, que tem como objectivo último da sua vida atingir o mais total e absoluto fracasso, tema que preside ao invulgar congresso. Mas fracassar absolutamente não é tarefa fácil, como, imagino, se verá no livro.

A partir desse extravagante congresso literário sobre o fracasso, acompanhamos a história de Vilnius que acredita que se encontra possuído pelo espectro do pai. Como ainda não li o livro, ponho-me a imaginar que Vilnius tentará imitar Lancastre, cultivando a impostura de viver como se fosse ele. E imagino que Vilnius fracassará no empenho de levar por diante uma vida emprestada, fracassada. E que no seu duplo fracasso, o de querer fracassar mas fracassar no empenho de fracassar, Vilnius se assemelhará ao escrevente Bartleby - o personagem do conto homónimo de Herman Melville - na sua fracassada tentativa de escrever "um decálogo da não acção".

Ao mesmo tempo, acompanhamos o escritor que, por sua vez, deseja pôr um ponto final na sua já vasta obra e atingir o silêncio total e definitivo. "Tinha decidido secretamente mesmo antes de conhecê-los, confessei-o a Débora, não escrever nenhum outro livro, pois estava muito arrependido, quase magoado, com todos os que tinha publicado durante a minha vida" (Aire de Dylan). Enfim, sucumbir perante o síndroma de Bartleby essa "pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre" que Vila-Matas já recenseara nesse "caderno de notas de pé de página" a que deu o nome de Bartleby & Companhia (Assírio & Alvim). Fascinado por Vilnius que terá escrito, o escritor, e Vila-Matas, segue-lhe o percurso e observa-lhe os estratagemas para chegar ao fracasso.

Ponho-me, então, a imaginar que com a esta improvável união, rodeados e isolados por uma teia de personagens, um e outro se sentirão cada vez mais tentados pelo fracasso, o que será um êxito. Este paradoxo fará, imagino, que a distinção entre fracasso e sucesso resulte em algo em que não nos devemos fiar. Tal como também não será de fiar esta minha tentativa de escrever esta nota de pé de página sobre um livro que ainda não li mas cujo desejo de ler me vai fazendo sucumbir à tentação do fracasso de o escrever para, assim, poder antecipar a sua leitura, no que, certamente, como bom escrevente bartlebiano fracassarei.

Levado pela tentação do fracasso de escrever, seguindo os preceitos avançados por Pierre Bayard em Comment parler des livres que l'on n'a pas lus?, sobre um livro que não li, nem poderia ter lido porque ainda não foi publicado, mas não querendo fracassar nesse empenho, encontro no Diário Volúvel algo com um certo ar de Dylan. "O mundo é uma ilusão, um cenário onde todos temos frases para dizer e um papel  para representar. Certa classe de actores, ao constatar que fazem parte de uma peça, continuarão a representá-la apesar de tudo; outra classe de actores, escandalizados com a descoberta de estarem participando numa impostura, tratarão de sair de cena e da peça. Os segundos enganam-se. Enganam-se porque fora do teatro não há nada, nenhuma vida alternativa que possamos incorporar. O espectáculo, tal como o teatro kafkiano de Oklahoma, é, pode dizer-se, o único que está em exibição. E a única coisa que alguém pode fazer é continuar representando o seu papel, ainda que talvez com uma nova consciência, uma consciência cómica.”

Restará saber (e isso poderia ser a tese do romance se eu me fizesse passar por Vila-Matas) -, mas essa resposta deixarei que seja o autor a dá-la, afinal o romance é seu e eu não pretendo continuar a imitar Vilnius, ele tomando o lugar de Lancastre no congresso sobre o fracasso, e eu tomando o lugar de Vila-Matas na escrita deste livro - se neste teatro kafkiano de Oklahoma, o prolífico escritor, numa atitude semelhante à dos personagens de Roberto Arlt, se sentirá, no final do romance, livre de qualquer sentimento de culpa ou responsabilidade relativamente ao seu fracasso literário, exibindo-se perante os espectadores ou se, ao contrário dos fracassados exibicionistas arltianos, adoptará a atitude de Oblomov - o personagem do romance homónimo do escritor russo Ivan Goncharov -, um jovem desamparado aristocrata incapaz de levar a sua vida por diante, inspirando aqueles "jovens poéticos e doentes, notórios Oblomovs, perdidos no vazio cultural do seu mundo e com tendência a ser, até insuspeitados limites, preguiçosos e avessos ao esforço" (Aire de Dylan). Nisto reside "a alma moderna, o ar de Dylan, a essência da nossa época" (Aire de Dylan).

Dir-me-ia Vila-Matas, se lesse este texto, que fracassei na minha tentação de escrever sobre Aire de Dylan sem o ter lido, já que houve aqui uma certa impostura da minha parte ao citar, e glosar, o que nunca poderia ter citado, e glosado, devido à evidência física de não possuir o livro. Como, então terei sucumbido à tentação de escrever sobre um livro que não li? Ficando, esta noite, quieto em casa como bom discípulo de Kafka que, numa noite, em Praga, escreveu "Não é necessário que saias de casa. Fica à tua mesa e escuta. Nem sequer escutes...", apanha apenas o ar de Vila-Matas.

6 de março de 2012

O outono do patriarca


No início de Agosto de 1966, conta Gerald Martin em Gabriel García Marquez - Uma vida (Dom Quixote), García Márquez e Mercedes foram aos correios para enviar para Buenos Aires o manuscrito acabado de Cem anos de solidão. "Pareciam dois sobreviventes de uma catástrofe. O embrulho continha 490 páginas dactilografadas. O funcionário que estava ao balcão disse: ´Oitenta e dois pesos´. García Márquez olhou para Mercedes a procurar o dinheiro na carteira. Tinham apenas cinquenta pesos, e só puderam enviar cerca de metade do livro: García Márquez pediu ao homem que estava do outro lado do balcão para tirar folhas como se fossem fatias de toucinho fumado, até os cinquenta pesos serem suficientes. Voltaram para casa, empenharam o aquecedor, o secador de cabelo e o liquidificador, regressaram aos correios e enviaram a segunda parte. Ao saírem dos correios, Mercedes parou e voltou-se para o marido: ´Hei, Gabo, agora só nos faltava que o livro não prestasse´." 

Mas o livro prestaria, dando a conhecer ao mundo o fabuloso território literário de Macondo que García Márquez, descobrira 16 anos atrás durante a viagem que fez com a sua mãe desde Barranquilla até Aracataca, no Caribe colombiano, para vender a casa dos seus avós maternos com quem viveu até aos oito anos. Nessa viagem em que ficou "à mercê da nostalgia", como conta na sua autobiografía Viver para contá-la (Dom Quixote), partiram de noite numa embarcação através da Ciénaga Grande de Santa Marta e continuaram no dia seguinte de comboio. Quando chegaram à aldeia situada numa clareira do bananal que mal deixava ver o sol, Gabo deu-se conta que o tempo havia parado na sua memória. E foi nesse dia que, através da janela do comboio, desviou os olhos do livro de Faulkner que ia lendo e viu, pela primeira vez, o nome de Macondo num letreiro que indicava uma quinta. Logo intuiu a "ressonância poética" da palavra, de tal modo que passaria a ser o nome do universo onde habitariam todos os lugares e todos os tempos da sua obra. O seu aleph borgesiano que concentra todas as maravilhas, prodígios, milagres.

Soube, então, que fora ali que, alguns anos antes, nascera para ser escritor. "Foi a tua avó que te fez descobrir que ias ser escritor?". Não, foi Kafka, que, em alemão, contava as coisas da mesma maneira que a minha avó. Quando, aos 17 anos, li A metamorfose, descobri que ia ser escritor. Ao ver que Gregorio Samsa podia acordar uma manhã transformado num gigantesco escaravelho, pensei: ´Não sabia que isto era possível. Mas se assim é, escrever interessa-me`, contou García Márquez a Plinio Apulleyo Mendoza em O aroma da goiaba (Dom Quixote). Anos mais tarde, confessaria que se não tivesse sido escritor, teria sido pianista: "tudo estava envolto na penumbra, um homem tocava piano na sombra, e os poucos clientes que havia eram casais de namorados. Nessa tarde soube que se não tivesse sido escritor, teria desejado ser o homem que tocava piano sem que ninguém pudesse ver o seu rosto, apenas para que os namorados se desejassem mais". Talvez esse secreto desejo de ser pianista, o tenha levado a escrever contos da mesma maneira que um pianista toca diariamente piano, preparando-se para um grande recital  Por isso, classificou-os como um "um género de prática". "Exercícios de piano".

Tornar-se-ia jornalista, em 1948, no El Universal de Cartagena das Índias, depois, no El Heraldo de Barranquilla e, mais, tarde, no El Espectador de Bogotá, escrevendo reportagens como quem escreve romances e romances como quem escreve reportagens. Segundo Ryszard Kapuscinski, "o seu grande mérito foi ter conseguido demonstrar que a grande reportagem é também grande literatura". Para ele, as palavras serviam para contar histórias e, com elas, transformar o mundo. Como se de um grande caleidoscópio se tratasse para mostrar a realidade multifacetada mas ordenada em vistosas caixas coloridas, mágicas, cambiantes, multiplicadas por enganadores espelhos", explicou Ricardo Escavy Zamora no congresso Quinhentos anos de solidão.

E essa foi, também, a impressão com que fiquei quando, ainda adolescente, li a prodigiosa e desassossegante epopeia dos Cem anos de solidão, impregnada de nihilismo que me levou numa viagem à solidão da estirpe dos Buendía que se confunde a solidão das nossas próprias estirpes condenadas aos cem anos de solidão deste mundo cada vez mais alheado de si próprio, contraditoriamente transformado numa Macondo global de onde já não poderemos escapar.

É verdade que García Márquez se tornou, entretanto, num produto de exportação colombiano. Como o café. Como Shakira. E que a sua presença hegemónica deixou na sombra várias gerações de escritores colombianos e latinoamericanos e que, ainda hoje, a sua aura é insustentável para os jovens escritores emergentes latinoamericanos. E que o realismo mágico se transformou num produto de contrafacção literária vendido por imitadores e aduladores e outros trapezistas da literatura franqueada. E que outros, pretendendo romper com  "com a literatura latino-americana dos galos da Amazónia e das virgens que levitam", como bem notou Enrique Vila-Matas, confundiram García Marquez com os seus sucedâneos, deixando-se tentar por uma espécie de parricídio nunca, contudo, concretizado. E é verdade, finalmente, que o seu último romance, Memórias das minhas putas tristes (Dom Quixote) é um livro folhetinesco, para mim, decepcionante.

Mas é ainda mais verdade que García Máquez nos deu O outono do patriarca, Ninguém escreve ao coronal, O amor nos tempos da cólera, alguns contos memoráveis e, se isso não chegasse, Cem anos de solidão, seguramente um dos livros que mais contribuiu para a minha formação de leitor sem qualidades.

García Márquez, Gabo como também é conhecido, nasceu faz hoje 85 anos, e cumprem-se, também, hoje, 60 do seu primeiro conto, A terceira resignação, 45 de Cem anos de solidão, 30 do Prémio Nobel e 10 da publicação das suas memórias Viver para contá-la. Todos números redondos neste seu outono do patriarca.

4 de março de 2012

Extremamente alto e incrivelmente perto


"Todos os livros são sobre a perda", diz Jonathan Safran Foer, um dos mais promissores escritores norte-americanos, segundo a revista Granta, tal como Nicole Krauss, sua mulher, autora de A história do amor (Dom Quixote). Os livros que W. G. Sebald escreveu, esses são, seguramente, sobre a perda. Livros sobre a consternação do mundo, sobre as ruínas que o nosso tempo vai amontoando. Tijolos sobre tijolos. E ninguém na paisagem desolada. Apenas a literatura para gravar no papel o desvanecimento da História. Num outro registo narrativo, também Jonathan Safran Foer tenta em Extremamente alto e incrivelmente perto, romance reeditado pela Bertrand que vem publicando a obra deste autor norte-americano, uma meditação sobre a perda e sobre o luto num mundo que - literalmente - desabou à sua volta. 

Em Extremamente alto e incrivelmente perto (adaptado ao cinema por Stephen Daldry e protagonizado por Tom Hanks e Sandra Bullock), Oskar é um órfão do 11 de Setembro, "o dia mais triste de todos os tempos": o seu pai desabou com as torres gémeas e com elas também os arquétipos de uma criança que não consegue parar de inventar mundos paralelos; noutra história, contada através das cartas escritas pelos avós, é a paisagem de destruição de Dresden durante a Segunda Guerra Mundial que surge carregada de fantasmas do passado. O que nos poderia levar a Sebald (História natural da destruição) evocando as marcas da destruição de Berlim se o livro de Jonathan Safran sobre a consternação do mundo e sobre o luto do pós 11-S tivesse sido um pouco mais apocalíptico e um pouco menos integrado nos circuitos  comerciais.

Contudo, embora permeável ao sucesso mediático, outra maneira de abordar a questão será considerar Jonathan Safran como um jovem escritor que pega no lastro de uma certa literatura, retraçando a partir daí o que antes já fora traçado de outra forma. De resto, o autor não recusa a influência de Sebald, cuja escrita compara a "um machado afiado". Ou a aproximação à agudeza judaica de Philip Roth do período de O complexo de Portnov (não esquecer que Jonathan Safran é judeu e a sua, ainda, curta obra persegue o lastro dessa herança, reinterpretando-a à luz da actualidade). Ou a inspiração em Bruno Schulz cujo conto "A rua dos crocodilos" serviu de base ao seu mais recente livro A tree of codes, "um livro-objecto que joga com o vazio fisico e com palavras e frases arrancadas do conto". Ou a integração de um sopro surrealista que não destoaria de algumas páginas de Kurt Vonnegut. Ou, talvez, antes de tudo, a auto-referenciação a uma certa arquitectura narrativa que evoca Laurence Stern.

1 de março de 2012

Vila-Matas no país das maravilhas



Nestas noites volúveis em vou lendo as mais de quinhentas páginas de Uma vida absolutamente maravillosa de Enrique Vila-Matas (título de um artigo sobre Marcel Duchamp que V-M publicou no El País), vejo-me tão maravillado como na primeira vez que li El viajero más lento, El traje de los domingos, Desde la ciudad nerviosa y El viento ligero de Parma que integram esta antologia cronológica de artigos e ensaios, agora, recuperados pela Mandadori DeBolsillo.

Um livro absolutamente vilamatiano, no sentido em que V-M é aqui, ao mesmo tempo, um ensaísta que narra e um contista que ensaia, como confirmam os maravillosos ensaios do segundo livro de Diario voluble e, sobretudo, uma espécie catálogo comentado das suas leituras intitulado Para acabar con los números redondos, autêntica galeria de retratos de momento que integram a sua biblioteca de quarto escuro: "Tan descontente estava Alberto Savinio con las enciclopedias que se hizo la suya propria para su uso personal. Lo mismo creo haber yo hecho con la literatura de este siglo, pues en un cuarto escuro de mi casa he reunido a todos mis autores preferidos": Walser, Joyce, Gombrowicz, Céline, Roussel, Kafka, Schulz, entre outros bartlebianos e shandianos. Fecha o livro uma última secção com o título equívoco Notas que dá continuidade à "geografía personal" vilamatiana sem a qual, confessa V-M, "no sabría vivir".

O que me leva, então, a atravessar como um funâmbulo da leitura as cordas que V-M  estende sobre os caminhos da literatura buscando novas estações de luz nos interstícios de metáforas apagadas da experiência quotidiana? Precisamente o processo vilamatiano de «desfamiliarizar uma experiência e dela se apropriar como ficção». Não, portanto, uma qualquer intenção de estilhaçar prescrições formais ou normas de conduta narrativa. Não uma vontade de subversão da realidade e da sua substituição pela fantasia, pelo mágico, pelo mítico. Mas um impulso irresistível de tratar o ensaio conferindo-lhe uma dimensão narrativa, e ficcional, onde convivem o diário, a autobiografia e a biografia inventada, o conto, a digressão, a citação literária enquanto formulações retóricas inventadas para contar uma vida absolutamente maravillosa.  

Uma visão aristotélica de representação ficcional muito próxima da imitação do real. Verosimilhança, portanto. E verosimilhança que em Vila-Matas se manifesta na sua capacidade de assumir o evidente sem pedir explicações à evidência, segundo uma teoria que li já não sei onde. De buscar possibilidades ficcionais na vida de todos os dias. De convocar a sua experiência pessoal, vivida e, depois, efabulá-la. De explorar abismos reais e imaginários, e observar horizontes plausíveis e, às vezes, precipitar-se no vazio. De cruzar personagens reais e fictícias. De navegar à bolina no fragmentário e no rasto do casual ou da memória súbita de livros, vidas, citações perdidas. De convocar o acaso para determinar destinos de vidas alheias, às vezes, a sua própria vida ou a de um narrador que se parece demasiado com ele próprio. De levar-nos a acreditar e, ao mesmo tempo, a duvidar do que julgamos verdadeiro ou falso. De domesticar a fantasia mais inverosímil sob o manto diáfano do real e de esconder a realidade mais verosímil sob a insolência da fantasia mais cintilante. Uma forma e uma fórmula, afinal, de E V-M se posicionar diante da literatura e da vida, como ele próprio confessou no citado artigo sobre Duchamp: "una forma de tener, como minimo, dos versiones de un mismo tema: él mismo. Por eso a veces juego con el gato de Schrödinger que encarna la paradoja cuántica de estar vivo y muerto a la vez. En otras palabras, juego a no ser Duchamp y serlo."

Daí, levar-nos a acreditar, a nós leitores, funâmbulos também na corda bamba da escrita vilamatiana, que toda a ficção é real e que toda a realidade ficcionada é uma nova realidade que somos convidados a explorar como expedicionários de um território que existe «fora daqui» e onde, aí sim, sugere Vila-Matas, nos adentramos na vida. Até porque, como escreveu Pessoa, "a literatura não é mais do que uma tentativa de tornar real a vida".

"Que tengan ustedes muy buenas noches y una vida absolutamente maravillosa", despediu-se E V-M no artigo sobre Duchamp. Eu, certamente, irei ter uma boa noite de leitura maravillosa.

17 de fevereiro de 2012

Dickens para governantes


Leio no Guardian que, por ocasião do bicentenário do nascimento de Charles Dickens (7 de Fevereiro de 1812), o ministro da Cultura do governo inglês ofereceu, aleatoriamente, segundo o próprio, aos seus colegas, o primeiro ministro à cabeça, um livro do genial autor de "David Copperfield". A David Cameron ofereceu, talvez numa alusão, digo eu, à crise que o seu país e a Europa atravessam e que, costuma ouvir-se dizer com inconfessado cinismo, para além dos dramas que provoca também gera oportunidades, "Tempos Difíceis" e "Grandes Esperanças", que também seriam adequados para qualquer outro primeiro ministro europeu, embora me pareça que alguns deles, a começar pela senhora Merckel, não são muito dados a leituras literárias.

Comentando esta oferenda literária, numa crónica no Corriere della Sera, o escritor triestino Claudio Magris, com confessada intenção simbólica,  diz-nos que não obstante a sua paixão absoluta por Os cadernos póstumos do clube Pickwick, não hesitaria em oferecer David Copperfield ao presidente do Conselho do governo de Itália, porque, em sua opinião, "não é um romance político", sendo, por isso, aquele cuja leitura melhor conviria a Mario Monti, cujo governo se discute "se é ou não político".

Ponho-me a pensar que livros de Dickens poderia, também, eu oferecer ao nosso primeiro ministro para ajudá-lo a melhorar o seu sentido de justiça social e a compreender melhor a infelicidade quotidiana que as medidas do seu governo vão gerando em sectores crescentes da nossa população. A Passos Coelho que, confessou que, à noite, em casa, quase nunca vê televisão, o que lhe dará vantagem para leitura, oferecer-lhe-ia, então, um dos livros oferecidos a Cameron, Tempos difíceis, onde Dickens critica com acidez as deploráveis condições de vida dos operários ingleses e o fosso abismal que existia entre a sua vida precária e o fausto obsceno dos ricos da Inglaterra vitoriana, enfim, algo que nos vai sendo familiar quando nos damos conta do desemprego que alastra e vai queimando as esperanças dos portugueses.

Mas, talvez, mais proveitoso para todos, fosse recomendar-lhe que transformasse algumas reuniões do Conselho de Ministros num "conselho de leitores" dos livros de Dickens para, assim, aprenderem com ele a observar o mundo dos mais desprotegidos que se vai desmoronando à sua volta. É que, para nossa desgraça, os difíceis tempos que vamos vivendo parecem-se, cada vez mais, com os seus Tempos difíceis. E David Copperfield, Contos de Natal, Oliver Twist ou Historia de duas cidades, entre muitos outras obras que Dickens nos legou, para além de clássicos imprescindíveis em qualquer biblioteca, mesmo em bibliotecas de ministros mais dados às letras bancárias do que às literárias, de repente voltaram a ficar actuais. Não poderiam ser personagens de Oliver Twist muitas crianças que hoje vão para as escolas sem tomar o pequeno-almoço porque os pais já não têm como alimentá-los por se encontrarem desempregados? E os despejados de suas casas por já não poderem pagar as hipotecas a que estavam sujeitos por terem ficado sem emprego não nos fazem pensar nos mesmos métodos do usurário Scrooge em Conto de Natal ou do avarento Uriah Heep em David Copperfield?

A quem se dirigia Dickens quando escreveu "Oh, economistas utilitários, comissários de realidades, elegantes incrédulos... se continuardes enchendo de pobres a vossa sociedade e não cultivardes neles a esperança, quando tiverdes conseguido arrancar das suas almas todo o idealismo e eles se encontrarem a sós com a sua vida vazia, a realidade converter-se-á num lobo e devorar-vos-á"? Aos usurários e agiotas do seu tempo ou, premonitoriamente, aos especuladores financeiros de hoje que criaram os tempos difíceis em que vamos vivendo, perante o olhar complacente dos economistas apaniguados neo-liberalismo? Que diriam Álvaro e Gaspar se lessem Dickens, hoje, em conselho de leitores?


14 de fevereiro de 2012

Enamoramento e amor


Consta que o venerado Valentim, mártir romano cúmplice dos amantes, conforme reza a lenda cristã, pagou caro com o seu sangue o engenhoso palíndromo “Romamor” em que defendia que o sentimento amoroso é uma matéria tempestuosa à qual não se pode escapar. Platão dedicou ao amor um dos seus mais famosos “Diálogos”, pondo na boca dos convivas do alegre “banquete” distintas maneiras de amar: o amor terreno com seu sedutor catálogo de tentações carnais e o amor idílico e platónico que ignora as possibilidades do corpo. O poeta latino Ovídio oferece-nos na "Arte de Amar" um manual do ofício da sedução, da infidelidade, do engano e do prazer sexual, elaborado a partir das suas próprias experiências. Como divindade mundana, Eros tende a favorecer até ao ilimitado essa atração tumultuosa entre indivíduos de sexo contrário. 

De que falamos, então, quando falamos de amor? Talvez melhor do que em qualquer tratado sobre esse sentimento volúvel, é na literatura que encontramos o melhor catálogo de vivências da paixão amorosa. Porque o amor é, como diz Jorge Luis Borges, uma paixão literária “com as suas mitologias, com as suas pequenas magias inúteis” que convoca uma retórica, umas vezes platónica e elegíaca, outras vezes carnal e voluptuosa, das possibilidades do corpo.

Por isso, neste dia de São Valentim em que se evoca o enamoramento e o acasalamento, procuro no meu catálogo volúvel de histórias de amor duas representações distintas dessa retórica de encontros e desencontros geradora de incontrolados eflúvios hormonais, e proponho aos amantes que por aqui passarem que escolham a retórica da paixão que mais aprouver às suas tentações ou sublimações amorosas.

Que escolham, pois, entre Orgulho e preconceito, de Jane Austen, em que o amor está sempre à beira do casamento encerrando o sonho romântico, e Madame de Bovary, o romance do amor cego, adúltero e trágico por excelência, oferecido por Flaubert. Mas não os leiam esta noite, porque a leitura, parece, prejudica seriamente o amor e vice-versa.

À espera dos bárbaros


Por estes dias em que a Grécia se vê ameaçada pela nova barbárie estrangeira que já acampa junto às suas fronteiras aguardando o seu colapso financeiro e social, recordo o poema "À espera dos bárbaros", do grande poeta helénico do século XX, nascido em Alexandria, Constantino Cavafis (1863-1933), que numa alegoria ao desmoronamento do Império romano, recria uma cidade decadente, com políticos imóveis diante da ameaça estrangeira, preferindo a retórica da submissão à acção mobilizadora.

Revejo as imagens do parlamento grego reunido na noite ateniense em chamas para aprovar novo pacote de medidas de austeridade, mas são, ainda, as palavra de Kavafis que melhor iluminam a noite:

"O que esperamos na ágora reunidos? / É que os bárbaros chegam hoje. / Por que tanta apatia no senado? / Os senadores não legislam mais? / É que os bárbaros chegam hoje. / Que leis hão-de fazer os senadores? / Os bárbaros que chegam as farão. / 

Por que o imperador se ergueu tão cedo
 / e de coroa solene se assentou
 / em seu trono, à porta magna da cidade?

 / É que os bárbaros chegam hoje.
 /  O nosso imperador conta saudar
 / o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe / 
um pergaminho no qual estão escritos / 
muitos nomes e títulos.

 / Por que hoje os dois cônsules e os pretores / 
usam togas de púrpura, bordadas, / 
e pulseiras com grandes ametistas / 
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas? / 
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
 / de ouro e prata finamente cravejados? / 

É que os bárbaros chegam hoje,
 / tais coisas os deslumbram.

 / Por que não vêm os dignos oradores
 / derramar o seu verbo como sempre? / 

É que os bárbaros chegam hoje / e aborrecem arengas, eloquências.

 / Por que subitamente esta inquietude?
 / (Que seriedade nas fisionomias!)
 / Por que tão rápido as ruas se esvaziam
 / e todos voltam para casa preocupados? / 

Porque é já noite, os bárbaros não vêm / e gente recém-chegada das fronteiras
 / diz que não há mais bárbaros.

 / Sem bárbaros o que será de nós?
 / Ah! eles eram uma solução."


12 de fevereiro de 2012

Naufrágio com espectador


Quando tudo fazia prever que o centenário do naufrágio do "Titanic", seria mais uma comemoração nostálgica de uma tragédia longínqua, relativamente à qual seríamos, uma vez mais, espectadores de desastres alheios, com o vago prazer que produzem as catástrofes longínquas que nos chegam em livros e filmes que lemos e vemos como leitores contemplativos ou espectadores obscenos, eis que a tragédia recente do "Costa Concordia" nos vem lembrar que os desastres marítimos, e não só, são, afinal, bem actuais. E inquietante coincidência, o "Concordia" fora palco de rodagem do filme de Jean-Luc Godard, estreado em 2010 no festival de Cannes, que pretende ser uma reflexão-profecia sobre a decadência e o fim da Europa. No filme, enquanto o navio viaja através da noite escura, e os passageiros fingem divertir-se, falam ao telemóvel, vagueiam sem rumo, uma mulher jovem, na coberta do navio, murmura: "Pobre Europa, conspurcada, humilhada pelo sofrimento".

Entre as interessantes comparações que, por estes dias, se fizeram entre o naufrágio do "Concordia" e o do "Titanic, além daquela que leva a concluir que é mais fácil chocar com um iceberg do que com uma ilha, ficámos, também, a saber que o primeiro se afundou às escuras e o segundo com todas as luzes acesas e com a orquestra tocando, o que é mais consentâneo com a sociedade-espectáculo em que vamos vivendo.

Quanto aos capitães, enquanto o do Concordia parece ter sido o primeiro a fugir, o do "Titanic" afundou-se com o navio, transformando-se num exemplo de coragem e heroísmo gravado num epitáfio num monumento novaiorquino: "Faithful in duty. Friendly in spirit. Firm in command. Fearless in disaster. He saved women and children and went down with his ships". Conta-se que no "Concordia", a correria para os salva-vidas foi caótica, com os mais fortes a empurrar mulheres e a pisar crianças no afã de chegar primeiro aos botes. No "Titanic, a fazer fé na estatística dos sobreviventes, os homens honraram o protocolo de "as mulheres e as crianças primeiro" instituído após o épico naufrágio, em 1852, perto da Cidade do Cabo, em frente de Danger Point (!), da fragata britânica "HMS Birkenhead", em que os soldados e oficiais do 73 Regimento de Infantaria, permaneceram em formação na coberta, enquanto as mulheres e as crianças a bordo (familiares dos militares) subiam para as lanchas e se punham a salvo. No "Titanic", as coisas não terão sido heróicas do mesmo modo, já que, a prioridade foi dada às crianças da primeira classe e só depois às da segunda e terceira classes (segundo as mesmas estatísticas, no "Titanic" 94% das crianças que viajavam em primeira classe salvaram-se, enquanto na terceira classe a mortalidade ascendeu a 75%).

Outra diferença entre os dois naufrágios, é que enquanto o "Titanic" se afundava no meio do mar, a muitas milhas da costa e, portanto, sem espectadores, o "Concordia" afundou-se a 150 metros da terra perante o olhar contemplativo de muitos espectadores, o que me leva ao ensaio de Hans Blumenberg Naufrágio com espectador (1979), em que o filósofo alemão lembra que o naufrágio sempre foi uma "metáfora existencial", tal como se encontra no Proémio do livro de Lucrécio Rerum Natura, sublinhando a posição segura em terra firme a partir da qual espectador observa a cena do heróico naufrágio dos audazes navegadores. A partir da metáfora do naufrágio, Blumenberg produz um excelente argumento de como a oposição terra/mar determina todo um conjunto de outras que vão vigorando historicamente até à "modernidade", de entre as quais as que são determinadas pelo nihilismo moderno marcado pela tensão entre a segurança de quem fica em terra, isto é, no seu lugar e a insegurança de quem, saindo do seu lugar, violando as fronteiras, se expõe ao perigo e ao desastre.

Estas a posição antagónica entre o espectador e o naufrago. Já Lucrécio, o espectador, contemplava desde terra firme o desastre marítimo alheio: "é doce, quando no mar imenso os ventos agitam as águas./ observar a partir de terra as tribulações alheias", o que me faz regressar à actualidade do naufrágio do "Concordia" à vista de todo o mundo e à alegoria da nossa existência actual enquanto observadores passivos diante do desastre que pensávamos ser apenas alheio - o naufrágio financeiro e social da Grécia diante da contemplação obscena das instâncias políticas europeias -, mas que, afinal, se revela poder vir a ser um naufrágio geral de uma Europa à deriva após o capitalismo ter violado as fronteiras da decência. Blumenberg, citando Pascal, coloca-nos na posição de navegadores prestes a naufragar: "vous êtes embarqués". E embarcados numa viagem de alto risco, entre "recifes, tempestades, abismos e calmaria", sem timoneiro ou ancoradouro que nos ponha a salvo da crise que aí está para nos afundar. Mas não igualmente todos, porque nesta embarcação, tal como no "Concordia", os capitães da finança e da política estabelecida serão os primeiros a pôr-se a salvo; e tal como no "Titanic", os que viajam em primeira classe têm já os salva-vidas à sua espera, enquanto os que viajam em segunda e terceira classes dificilmente chegarão a eles.

Talvez, por isso, Enrique Vila-Matas nos tenha lembrado, recentemente, numa crónica no El País, intitulada El naufragio por excelencia, sobre o "relato do mais famoso naufrágio do século XVII", Les Naufragés du Batavia, de Simon Leys,  que "as ansiedades, crises e catástrofes são apenas isso, ansiedades, crises e catástrofes, mas o pior pode vir depois. Nestes tempos em que, com estranha constância, sem o menor desfalecimento, as notícias financeiras diárias se mostram ensimesmadas numa já quase complacente descrição do naufrágio geral, seria bom lembrar que nem tudo termina numa crise recorrente e que, às vezes, pode encontrar-se no outro lado da porta algo ainda mais ligeiramente infame: o tempo do horror." "É que todos esperamos o barco de Java, a embarcação capaz de vir em nosso socorro com a sua vela branca, tão necessária por estes dias."

10 de fevereiro de 2012

Vila-Matas portátil


Quanto pesariam os livros de bolso de Enrique Vila-Matas que trouxe na minha bagagem de cabine no voo low cost de Barcelona para Sevilha? Seguramente, embora contundentes, pesariam pouco, senão não os poderia ter trazido comigo e começado a lê-los no avião, o que ajuda sempre em qualquer voo, já que livros e turbinas são - como diria o escritor argentino Rodrigo Fresán, autor de "La velocidad de cosas" e, talvez por isso, também ele, um viajante-leitor - máquinas locomotoras.

Livre de taxas de peso adicional, subi, primeiro, à máquina voadora e, só depois, aos três livros De Bolsillo da biblioteca portátil vilamatiana que a Mandadori decidiu começar a publicar, a saber: "En un lugar solitário. Narrativa 1973-1984", "Chet Baker piensa en su arte" e "Una vida absolutamente maravillosa". "Dublinesca", também publicado nesta colecção, não o trouxe, não por medo de excesso de peso, mas porque já o tinha subido noutra viagem. Sempre que subo a aviões, subo também a livros, como já em posts anteriores se ficou a saber. Assim como me confio à perícia dos pilotos que vão traçando linhas nos céus, também me confio à perícia daqueles que traçam linhas nas páginas subidas na cabine.

E num destes livros, traça V-M que tinha o secreto desejo de se tornar realizador de cinema e que, na época, viveu a experiência do serviço militar obrigatório como um calvário. «Daquele já muito remoto ano de 1971, que passei em Mellila como soldado do Exército espanhol, recordo muito particularmente os 20 dias que estive internado no manicómio militar dessa fortaleza». Assim começa o pesado prólogo de En un lugar solitário. Narrativa 1973-1984, escrito por V-M para o volume que reúne os seus cinco primeiros livros. Neste extenso prólogo, V-M confessa como, a pouco e pouco, subiu, ele próprio, para a literatura: «Conto como entrei na literatura, as minhas debilidades iniciais quando comecei a escrever. Primeiro, como leitor de poesia, comecei, depois, a escrever quase por casualidade, e entrei, sem saber como, nesta aventura».

O texto En un lugar solitário, que dá o nome à antologia, foi o primeiro livro publicado por V-M, na ocasião, com o título  Mujer en el espejo contemplando el paisaje. Al sur de los párpados foi o terceiro, tendo o autor evitado reeditá-lo até agora. "Sempre tive alguns preconceitos contra estes dois livros. Contudo, ao relê-los 30 anos depois, reconheço-me neles. Ambos contém coisas boas e más, mas fazem sentido no conjunto dos textos reunidos. Não quis adicionar nem eliminar nada para não diminuir o seu valor documental" numa antologia que integra, ainda,  La asesina ilustrada, Nunca voy al cine e Impostura. "Suprimir um ou outro título da minha obra dos primeiros anos deixá-la-ia coxa".

En Chet Baker piensa en su arte, V-M institui algo que ele próprio classifica como "ficção crítica", processo que utiliza para reflectir sobre a obra de Joyce e de Simenon: "um crítico literário, encerrado durante uma noite noite num hotel de Turim, procura o traço de união entre a literatura radical encarnada pelo último Joyce e a literatura tradicional de qualidade representada por Simenon; persegue o livro que uniria idealmente os leitores de contos minoritários e exigentes com aqueles que preferem histórias mais comerciais".

Dos livros subidos a bordo nesta viagem de regresso a casa, depois de uma estada na cidade nervosa de V-M, Una vida absolutamente maravillosa, que me decidi começar a ler no avião por ser o mais locomotor, é, de entre todos, o mais vilamatiano, aquele em que V-M é, ao mesmo tempo, um ensaísta que narra e um contista que ensaia. Continuo a ler a suas mais de quinhentas páginas nestas noites volúveis, tão maravillado como na primeira vez que li El viajero más lento, El traje de los domingos, Desde la ciudad nerviosa y El viento ligero de Parma. E leituras maravillosas, o segundo livro de Diario voluble e Para acabar con los números redondos que integram o volume. Assim como os retratos de momento de autores que integram a sua, e a minha, biblioteca de quarto escuro: Walser, Joyce, Gombrowicz, Céline, Roussel, Kafka, Schulz, entre outros bartlebianos & shandianos.

E vocês, que esperam para meter no bolso esta ligera, mas contundente, biblioteca portátil vilamatiana? Subir a um avião ou esperar pela tradução?

7 de fevereiro de 2012

Tempos difíceis




Por estes dias, celebram-se 200 anos do nascimento de Charles Dickens, e o mundo fora dos livros, desgraçadamente, vai-se parecendo, cada vez mais, com o mesmo mundo que ele retratou em romances como David Copperfield, Oliver Twist, Tempos Difíceis ou História de Duas Cidades, que contribuíram para a minha formação literária e de algum modo, ajudaram a moldar as minhas convicções políticas. A actualidade da sua obra pode ver-se, por exemplo, no começo de História de Duas Cidades: "Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; a idade da sabedora, e também da loucura; a época das crenças e da incredulidade; a era da luz e das trevas; a primavera da esperança e o inverno do desespero".

Em Tempos Difíceis, Dickens, critica com acidez as deploráveis condições de vida dos operários ingleses e o fosso abismal que existia entre a sua vida precária e o fausto obsceno dos ricos da Inglaterra vitoriana. Nestes tempos difíceis de crise que assola a Europa, com os impostos a aumentar e os salários a diminuir, com o desemprego a disparar para números impossíveis, com sucessivos cortes nas prestações sociais dos estados, enfim, com cada vez mais amplos sectores das populações a empobrecer, e com a Grécia, seguida de Portugal - onde, de acordo, com números do Eurostat, mais de 2.500 milhões de pessoas sobrevivem em estado de pobreza e de exclusão social - e de outros países europeus, caminhando à beira do abismo para onde os sucessivos desgovernos e os especuladores financeiros nos vão empurrando, impossível não nos assombrarmos ao constatar como este romance publicado em 1854 descreve a realidade actual. É que a obscena desigualdade entre os miseráveis lares proletários, retratados por Dickens na sua frieza, obscuridade e pobreza extremas, e as luxuosas mansões dos capitalistas da época que tratavam os seus assalariados como bestas de carga, parece reproduzir-se nestes nossos tempos difíceis em que que aos magros salários de muitos se contrapõem aos altos salários de uns tantos gestores transitados da política para as empresas e para os bancos. A única diferença entre os privilegiados dos tempos difíceis de Dickens e os privilegiados de agora, é que os de antes se chamavam utilitaristas e os de hoje são neo-liberais, e que uns se reviam em Stuart Miller e os outros revêm-se em Milton Friedman.

Vale a pena recordar um acontecimento catastrófico vivido por Dickens, num início de Verão de 1865, quando viu despenhar-se num precipício sete carruagens do comboio em que viajava. Premonitória metáfora de uma Europa, primeiro a Grécia, depois a Irlanda e Portugal e logo as restantes carruagens deste comboio europeu - sem maquinista mas com maquinadores - que hoje vai descarrilando arriscando uma queda sem fim no abismo que se abre sob o seu gasto e destravado rodado metálico.

Talvez seja, ainda, possível evitar a queda se os maquinadores que nos conduzem para a catástrofe forem capazes de imitar o mesquinho senhor Scrooge de Um conto de Natal, que ao ver o futuro sombrio anunciado pelos espíritos do Passado, do Presente e do Futuro, onde podia ver-se um túmulo com o seu epitáfio e nenhuma flor flor, soube redimir-se a tempo e converter-se num homem generoso. Uma parábola, afinal, que a senhora Merkel deveria recordar se quiser, ainda, ter remissão.

6 de fevereiro de 2012

Literatura sem escritores



Escreve W. G. Sebald que à sua volta tudo se desumaniza ou desaparece e que inclusive a própria História se desvanece. E que neste processo de aceleração imparável é conveniente que a literatura se encarregue desta consternação. Mas Sebald já cá não está. Nem Mann, nem Musil, nem Walser, nem outros que acreditaram na capacidade de resistência da literatura e o papel fundamental que ela poderia desempenhar na sobrevivência da história da memória humana, como disse Vila-Matas em Doutor Pasavento. É, ainda, Sebald que, em Os anéis de Saturno, nos oferece uma admirável síntese do que é a literatura: Sempre que decifro uma destas notas surpreende-me que um rasto já há muito extinto no ar ou na água possa continuar visível aqui, no papel.

Mas, onde perseguir, hoje, esse rasto, quando é o próprio universo da literatura que parece poder funcionar sem escritores? Não estará a banalização da palavra a levar ao desaparecimento a própria ideia de literatura? Quem inscreve no papel esse rasto que leremos daqui a cem anos, mil anos? Todos estes mortos à nossa volta, onde sepultá-los se não na linguagem?,  pergunta Adónis, um poeta sírio-libanês que me revela Vila-Matas. E, no entanto, a banalização "pós-moderna" da palavra é uma miragem de um lago em cuja superfície opaca se desvanecem os traços, os rastos, a própria essencia da literatura.

Que fizeram os escritores contemporâneos do legado que receberam do passado, permitindo que a água e o ar estejam a apagar o rasto das palavras? Entra-se numa livraria e há muitos livros. Mas há poucos escritores. Tão poucos que parece que o próprio mundo da literatura parece já funcionar sem a necessidade dos escritores. «Vejo escritores falsos e sei distinguir entre o escritor falso e um que não o é» - disse Vila-Matas numa entrevista recente. «Depois de Kafka não consigo imaginar um escritor a apanhar banhos de sol [...] há muitos escritores que vejo como falsos», acrescentou. E, ainda, em O Mal de Montano, «essa raça de escritores, imitadores do já feito e gente absolutamente desprovida de ambição literária, mas não de ambição económica». E Lídia Jorge: «Não me interessa a literatura sobre o nada». Vila-Matas e Lídia Jorge, tão aparentemente diferentes, mas tão iguais na sua entrega à literatura. Por isso, li os seus últimos livros quase ao mesmo tempo. Porque não há em nenhum dos dois, embora em registos literários muito diferentes, nada de excessivo. Não desbaratam palavras. O primeiro, através de Pasavento, perseguindo uma poética da extinção, da ocultação, os mortos sepultados na linguagem; Lídia recolhendo a matéria impura com que veste a sua escrita, a realidade, onde põe em movimento personagens com inteireza, vivas.

Evoco-os aqui porque, embora cada um transformando, contando, a realidade à sua maneira, ambos são verdadeiros. Ambos pertencem à literatura. Na sua diferença representam aqueles que procuram contrariar a histeria tranquila de grande parte dos escritores da moda, incapazes de traçar os sulcos que muitos anos depois, se os tivessem inscrito, haveríamos de ler. Na maior parte, o que há, hoje, são actores e não autores, que transformam a literatura num ramo pobre e marginal da cultura do espectáculo. Um simulacro de literatura, aproveitado, incentivado por «homens de negócio que editam livros». Por isso, as novidades das livrarias encontram-se inflacionadas por livros de figuras públicas, jornalistas, políticos, historicismos, esoterismos, remakes, best-sellers, bagatelas que se vendem como qualquer mercadoria, porque são, efectivamente, mercadoria efémera.

Já Roland Barthes, nos anos 60, afirmava que a crise não era da literatura, mas sim do livro, do excesso de livros postos a circular por um mercado apenas preocupado com a multiplicação das páginas, do lucro. Só nos restará, então, regressar aos clássicos? A esses regressaremos sempre, hoje, daqui a cem anos, mil anos, porque neles se encontra gravada a história da memória humana. São os livros esplendorosos, raros, assombrosas «extensões da memória e da imaginação» que com paciência encontramos quase escondidos nas livrarias. Que apenas se encontram nos alfarrabistas amantes de livros. E há, também alguns, actuais, ainda mais raros, e difíceis de reconhecer na confusão de títulos lançados em cascata, mas que serão futuros clássicos donde, uma vez abertos a quem os queira ler, se soltará para sempre o sopro que manterá vivo, apesar dos outros, apesar dos «trapezistas do marketing» editorial, o fogo da literatura. 

4 de fevereiro de 2012

A cancela do tempo


«… justamente naquela noite principiava para ele a irremediável fuga do tempo. [...] E assim se prossegue caminho numa esfera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o Sol brilha alto no céu e parece nunca ter vontade de chegar ao ocaso. Mas a certa altura, quase instintivamente, voltamo-nos para trás e vemos que uma cancela se fechou nas nossas costas, obstuindo-nos a via do regresso. Então sentimos que algo mudou, o Sol já não aparece imóvel, desloca-se rapidamente, ai de nós, nem temos tempo de o fixar pois já se precipita no confim do horizonte; apercebemo-nos de que as nuvens já não ficam estagnadas nos golfos azuis do céu, foram encavalitando-se umas nas outras, tal é a sua urgência; percebemos que o tempo passa e que também a estrada um dia deverá terminar.»

Por isso, qualquer gesto será inútil. A inutildade da fortaleza, a própria existência de Drogo… Esta a paisagem mental e simbólica que, como uma névoa ameaçadora vinda de longe, do deserto, nos envolve num delírio de imortalidade. Sem remissão, na visão pessimista de Dino Buzzati [1906-1972] em O Deserto dos Tártaros [Cavalo de Ferro, 2005], espécie de metáfora da nossa contemplação nihilista de um mundo carregado de uma solidão irredutível que só pela «inocência do agir» (Goethe) poderíamos, poderemos, estilhaçar. Mas não Giovanni Drogo que desistiu de agir, de perscrutar saídas na decadente fortaleza de Bastiani em que se foi encerrando, preferindo a espera angustiante do confronto com o inimigo tártaro que poderá, enfim, dar um significado à sua vida. Mas nem isso Drogo consegue, pois no último momento, quando finalmente o inimigo surge do deserto, ele falha a ocasião, vindo a morrer na rectaguarda da batalha que não chegou a travar, como se a inutilidade da sua vida estivesse traçada desde o momento em que olhando para trás viu a cancela do tempo fechada.

Um livro sombrio, portanto, a cuja génese não foi certamente indiferente o ano em que foi escrito por Dino Buzzati - 1939 - que via as sombras que alastravam pela Europa perante a imobilidade do mundo. Para ser lido apenas – como apelaria Robert Walser – pelas «pessoas saudáveis [que possam e desejem] expor-se um pouco ao perigo [da] literatura dita doentia. [...] Senão, com mil raios para que serve ser saudável?» Assim o li, embora sem a urgência deste tempo achatado, de um só folgo, sem olhar para trás, não fosse a cancela do tempo fechar-se nas minhas costas. Por isso, posso agora, e sempre, regressar a outros livros que até podem ser os de Buzatti que só tardiamente descobri. Talvez O Segredo do Bosque Velho ou Os Sete Mensageiros, ambos editados pela Cavalo de Ferro.