1 de abril de 2014

Pessoa em Paz


No  ensaio O desconhecido de si mesmo, que prefacia a Antologia com que Octavio Paz dá a conhecer ao mundo de língua espanhola um obscuro poeta português chamado Fernando Pessoa, contribuindo  decisivamente para incorporá-lo ao cânon literário contemporâneo, o poeta e ensaísta mexicano escreveu que "os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia. Pessoa, que sempre duvidou da realidade deste mundo, aprovaria sem vacilar que fosse directamente aos seus poemas, ignorando os incidentes e os acidentes da sua existência. Nada na sua vida é surpreendente - nada, excepto os seus poemas. [...]  Pessoa quer dizer persona em português e deriva de persona, máscara do teatro grego. Máscara, personagem de ficção, ninguém: Pessoa. A sua história poderia reduzir-se ao vai-e-vem entre a irrealidade de sua vida quotidiana e a realidade das suas ficções. [...] Assim, não é inútil recordar os acontecimentos mais marcantes da sua vida, desde que não ignoremos que se trata das pegadas de uma sombra".  

Ora há uma história na vida de Octavio Paz (México D.F., 31 de março de 1914 - Coyoacán, México, 19 de abril de 1998) cuja evocação - neste dia em que o poeta e ensaísta mexicano faria cem anos, mais do que um "incidente ou acidente" na sua existência - foi, conforme ele mesmo confessou, um dos acontecimentos mais marcantes da vida. Essa história começa numa noite de outono de 1958, em Paris, durante um jantar de amigos, numa casa do Marais, quando a poeta surrealista e socióloga anarquista Nora Mitrani (1921-1961), que frequentava o círculo surrealista agrupado à volta de André Breton, como Yves Bonnefoy, Benjamin Péret, André Pieyre de Mandiargues, Julien Gracq, com quem Nora vivia, e o próprio Octavio Paz, que havia sido adoptado por Breton quase desde a sua chegada a Paris, em 1949, como ele mesmo contou, refere o nome, até então desconhecido para Paz, de Fernando Pessoa, cuja poesia Nora conhecera em Lisboa, nos anos 50, através de Alexandre O’Neill por quem se apaixonara. Dias mais tarde, Paz haveria de ler alguns poemas de Alberto Caeiro que Nora tinha traduzido para para a revista Le Surréalisme, Même. E alguns meses depois, Vieira da Silva emprestar-lhe-ia as Obras Completas de Pessoa que a editora Ática começara a publicar em 1942. 

Quando, anos mais tarde, em 1962, Octávio Paz escreveu O desconhecido de si mesmo, talvez tenha pensado que se naquela noite de outono de 1958 não tivesse conhecido Nora, talvez, também, não tivesse conhecido Pessoa. A revelação feita por Nora do poeta plural que vivera e inventara em Lisboa uma fabulosa genealogia literária, haveria de levar Paz a "trabalhar encarniçadamente" sobre a obra de Pessoa, não para revelar-lhe a biografia mas para perseguir as pegadas da sua sombra errante sobre as quais também ele haveria de caminhar. 

Em Fernando rei da nossa Baviera, no capítulo que dedica ao que chama a fortuna crítica de Fernando Pessoa, Eduardo Lourenço refere que "foi depois de o ter lido em francês que um poeta e ensaísta tão eminente como Octávio Paz escreveu o seu breve e magistral ensaio O desconhecido de si mesmo que se não é o primeiro na língua irmã da nossa será o primeiro a alcançar uma larga audiência". Desse ensaio vale a pena citar a seguinte passagem em que Paz: "Caeiro, Reis e Campos são os heróis de uma novela que Pessoa nunca escreveu. ´Sou um poeta dramático´, confia em carta a João Gaspar Simões. No entanto, a relação entre Pessoa e seus heterónimos não é idêntica à do dramaturgo ou do romancista com as suas personagens. Não é um inventor de personagens-poetas mas um criador de obras-de-poetas. A diferença é capital. Como diz Casais Monteiro: ´Inventou as biografias para as obras e não as obras para as biografia´. Essas obras – e os poemas de Pessoa, escritos perante, a favor da e contra elas – são a sua obra poética. Ele mesmo se converte numa das obras de sua obra. E nem sequer tem o privilégio de ser o crítico dessa coterie: Reis e Campos tratam-no com certa condescendência; o barão de Teive nem sempre o cumprimenta; Vicente Guedes, o arquivista, assemelha-se tanto que, quando o encontra numa taberna do bairro, sente um pouco de piedade por si mesmo. É o encantador enfeitiçado, tão totalmente possuído por suas fantasmagorias que se sente olhado por elas, talvez desprezado, talvez motivo de compaixão. As nossas criações julgam-nos". 

A Octavio Paz deve Fernando Pessoa a revelação da sua poesia no universo da língua espanhola, dando início a um movimento imparável de curiosidade e descoberta da sua obra. Mas também a obra de Paz não poderia ser imaginada sem a consciência que o autor mexicano teve da tradução e da escrita enquanto criações estéticas, morais e rituais, uma consciência inspirada pela obra de Pessoa de quem Paz traduziu meia centena de poemas que foram a levedura modernista que haveria de dar corpo à sua poesia.

[escrito e publicado em 31 de março para assinalar o centenário do nascimento de Octávio Paz, apagado por lapso, recuperado, e  republicado em 1 de abril]

3 comentários:

  1. Óptimo texto. Também eu descobri o texto de Paz através de Lourenço, porém ainda não consegui obtê-lo. Já li toda a poesia de Paz, sem ter sentido por ela grande apreço, mas como amador pessoa que sou tenho muita curiosidade em saber o que ele pensava de Pessoa.

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  2. Caro João, estive à procura do seu email, embora sem sucesso.
    Gostaria de lhe pedir para me contactar para pjunqueiralopes@letra1.com por forma a que possa falar-lhe de um projecto.
    Obrigado

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  3. O Pessoa nunca foi novidade para mim, já o Paz.. Desde que li " O Desconhecido de Si Mesmo" vivo encantada. Fato é que me agrada muito mais sua paixão pela poesia do que a poesia que escreve. Quanto ao Pessoa, é o poeta de minha alma, juntamente com o meu João Cabral de Melo Neto. Abraços!

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