5 de maio de 2012

Cronópio por acaso

 
Julio Cortázar acreditava no acaso, naquela série de pequenas coisas, de indícios, de combinações, de "coincidências sempre extraordinárias e ao mesmo tempo comuns", como testemunhou o seu amigo e editor Francisco Porrúa, que nos levam, por exemplo, a escolher um caminho em vez de outro, para nele, depois, encontrarmos o que não sabíamos ainda que procurávamos. E eu, se não acreditasse no acaso, começaria, doravante, a acreditar, pois, hoje, pela manhã, ao ter constatado que este ano se cumprem 50 anos da publicação de Histórias de cronópios e de famas - segundo Vargas Llosa, o livro mais "travesso" de Cortázar -, constituindo este facto um daqueles números redondos que nos convidam a celebrar o aniversário de uma figura ou obra literária - circunstância irritante para Enrique Vila-Matas que, para esconjurar esse espírito comemorativo, escreveu durante quase dois anos uma coluna dominical no Diario 16, intitulada Para acabar con los números redondos que, por acaso, por estes dias, ando a ler na antologia Uma vida absolutamente maravillosa -, decidi no instante preciso em que ia sair de casa, talvez guiado por esse "sistema de leis exterior ao nosso" em que Cortázar acreditava, trazer comigo o celebrado livro que inclui um precioso manual de instruções que, fossemos nós mais previdentes, deveríamos trazer sempre connosco para nos ajudar em situações para as quais, às vezes, necessitamos de instruções, como sucedeu, hoje, comigo.

É que, ao fim da tarde, ao regressar a casa, uma avaria no elevador obrigou-me a subir pelas escadas até ao meu andar, isto é, subir como um cronópio sem folgo os catorze lances de escada até ao sétimo andar. Compreendi, então, o insondável motivo que me tinha feito trazer comigo o livro de Cortázar. E o motivo foi tê-lo à mão para consulta, ao final da tarde, para me instruir naquele inesperado empreendimento de subir catorze lances de escadas. E assim, de manual aberto, lá fui lendo as instruções e subindo as escadas "de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incómodas". Ao descansar ao nono lance e ver uma aranha pendurada na sua teia, ainda me ocorreu a "maravilhosa ocupação de cortar-lhe uma pata, colocá-la num envelope, redigir ´Senhor Ministro das Relações Exteriores`, juntar o endereço, descer as escadas aos saltos, despachar a carta no correio da esquina". Mas isso, como já se percebeu, contrariaria as "instruções" que vinha seguindo e, como tal, poderia revelar-se perigoso, pelo que achei melhor não arriscar e prosseguir como um bom cronópio na minha instruída subida de escadas, para não chegar atrasado à celebração do cinquentenário do livro. 

Bem instruído, pude, então, terminar esta evocação de Histórias de cronopios e de famas, publicado em 1962, em Buenos Aires, primeiro pelas Ediciones Minotauro e, em seguida, pela Sudamericana, que se tornaria na editora recorrente de Cortázar. Recordo que no ano seguinte apareceria Rayuela, o romance fragmentário e total que consagraria Cortázar como um dos mestres do boom latino-americano, pelo que em 2013 estaremos perante outro número redondo, o do cinquentenário de Rayuela.

Mas, por agora, a celebração pertence a Historias de cronopios e de famas, o livro que inaugurou a micro-ficção e nos deu a conhecer aqueles personagens dionisíacos, criativos, surrealistas que, em tudo, são o oposto dos famas que são apolíneos e pragmáticos. Os cronópios, segundo Cortázar, assemelham-se aos poetas. Indiferentes ao quotidiano, passam o dia a cantar, esquecem-se das obrigações, às vezes são atropelados, comovem-se, perdem o que trazem nos bolsos e, quando se dispõem a em viajar, perdem o comboio. Os famas, pelo contrário, são organizados e práticos, prudentes e calculistas, emolduram as suas lembranças e quando vão em viagem, mandam alguém à frente para confirmar os preços e a cor dos lençóis. Já as esperanças são uma mistura de ambos, "são sedentárias e deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas, que nos exigem que nos desloquemos até elas, porque elas não vêm até nós".

Como poderia eu, hoje, ter subido os catorze lances de escada do meu prédio se, por acaso, não tivesse comigo o manual de instruções do grande cronópio Cortázar? E como saberíamos nós dar corda aos relógios? Se assim não fosse perderíamos sempre os comboios e nunca chegaríamos a horas aos encontros. E, sobretudo, quem nos informaria que "existe na Escócia uma aldeia onde se vendem livros com uma página em branco perdida no meio do livro (e que) se, às três da tarde, um leitor nela desembocar, morrerá". 

(foto ao alto: Julio Cortázar com a sua mulher Aurora Bernárdez, quando de uma viagem à Índia em 1956)