24 de setembro de 2007

O Senhor Kraus ortónimo


Não podendo Kraus, o verdadeiro, ser declarado shandiano - seja porque as insuportáveis 525 gramas de peso de Os últimos dias da humanidade não passariam, por certo, no teste da máquina de pesar livros de Walter Benjamin, seja porque as 209 cenas dessa peça de teatro são de uma densidade absoluta, seja, ainda, por ser um homem de grande severidade e por praticar uma disciplina absoluta, seja, finalmente, porque nesse grosso volume terminal nada é excêntrico, antes tudo participa num propósito de exibição e denúncia dos estados inaceitáveis do mundo -, ainda assim, talvez, por se ter cruzado nas ruas de Viena com algum dos 27 membros da sociedade secreta que por volta do mês de Março de 1925 ali acorreram  para uma festa shandy, também este Kraus ortónimo, embora de maneira distinta da sociedade shandiana, foi um homem sem qualidades, um estranho de passagem entre duas guerras, um escritor secreto que enfrentou os paradoxos terminais da modernidade e que, às vezes, servindo-se de uma ácida ironia shandiana dizia que «o jornalismo come o pensamento» e que «os jornais têm mais ou menos a mesma relação com a vida que a cartomante com a metafísica».

Se tudo resto afasta o crítico apocalíptico Karl Kraus daqueles escritores shandys guiados por princípios fúteis e vagos, mas ao mesmo tempo em permanente conspiração, pelo menos com eles partilha o estranhamento do mundo. Talvez, por isso, o seu duplo, se tenha retirado, sem mala, para o Bairro portátil de Gonçalo M. Tavares, onde, agora, travestido de Senhor Kraus heterónimo reaparece rejuvenescido, volúvel, praticando um jornalismo de um humor delirante, desconcertante, shandiano, sem outro propósito que não seja o de apanhar o dia de modo expedito.

20 de setembro de 2007

Políticas da literatura


Nalguns textos anteriores aqui inscritos (Da literatura Sebald: viagem entre ruínas), tenho procurado interrogar o papel da literatura enquanto expressão necessária da consternação de um mundo «tão cheio de falsas representações, tão fútil, onde tudo se desumaniza ou desaparece e que inclusive a própria História se desvanece», como escreveu W. G. Sebald, em Os Anéis de Saturno.  Mas que literatura «ante a decadência implacável da ambição literária, a convergente ascensão de desengano, a verborreia e a crueldade insensível como assuntos normativos da ficção»? questionava Susan Sontag. Que literatura perante este mal endémico que corrói, hoje, as estantes das livrarias?

Demasiadas interrogações que vêm alimentar um debate em múltiplas direcções, actualizando a questão da definição do papel da literatura, questionamento que poderá constituir não apenas um sinal de indecisão acentuada, mas também uma aproximação à complexidade processual da literatura. Ante o espectro da síndrome do código [...de Da Vinci] e das suas múltiplas reprises, poderá a literatura, ainda, continuar a produzir uma interrogação sobre o mundo, revelando os territórios da dominação que se escondem atrás da vida de todos os dias e, assim, cumprir o seu papel na sobrevivência da memória? Ou será cada vez mais a literatura uma mercadoria que se expõe nas livrarias à espera de um leitor passivo e pouco exigente, uma raça de «analfabetos altivos» que «em vez de ler o melhor que se produziu nas diferentes épocas, se resume a ler as novidades, afundando-se cada vez mais no próprio lodo», como antecipou Schopenhauer?  Na verdade, o que cada vez há mais nas livrarias são apenas livros e pouca literatura, contribuindo para o simulacro de uma cultura que se esvanece perante a histeria tranquila que invade os escaparates livreiros, transformando o leitor num consumidor passivo, marcado pela fraqueza e pela impotência face à mercadoria exposta ali por «todos esses homens de negócios que editam livros, directores de departamento, líderes de mercado, trapezistas do marketing e licenciados em economia», como denuncia Enrique Vila-Matas nesse desassossegante libelo contra os inimigos do literário que é O Mal de Montano.

«A rasura total da literatura» ou «o horror do estilo», segundo João Barrento ou o «realismo urbano total», como classificou Miguel Real esta literatura achatada, e quase sempre vazia, que espelha o mundo que aí está e que muitos chamam de pós-moderno, correspondendo à «historicidade imanente» de que falava Theodoro W. Adorno.  Uma literatura que não é mais do que a manifestação epifânica de um mundo carregado de sombras ocultas sob a fogueira da técnica e do mercado que nos atrai como borboletas de asas trémulas. A literatura perdida no meio dos livros e nós doentes da literatura como mariposas errantes no meio deles. Estará a «arte de contar em vias de se perder», como afirmou Walter Benjamin? E não será isso uma consequência da crise da experiência moderna, onde o fragor da técnica emudeceu a fala dos homens e dos escritores apanhados pela mesma teia da contingência? Paul Auster afirma na sua Trilogia de Nova Iorque que «o caso é que as nossas palavras já não correspondem ao que se passa no mundo. [...]  Pouco a pouco [as] coisas fragmentaram-se, espalharam-se, caíram num caos. E, contudo, as palavras permaneceram as mesmas», tornando-se incapazes de dar lógica à trama da vida.

Que outra via, então, para a literatura? Isto é, entre a mercadorização, a alienação e o engagement será possível ainda uma literatura capaz de, para além dos propósitos do autor, perturbar o universo do sensível, os modos como percepcionamos o mundo, autonomizada, mas sem cair no vazio ou no ensimesmamento.  Como contrariar a profecia hegeliana sobre o devir da «prosa do mundo» que ao perder o seu sentido teológico perdeu também a sua literariedade, tornando-se num «objecto verbal laborioso e inútil», como já a sentia Jorge Luís Borges? Trata-se, agora, de resolver a oposição radical entre a passividade e a actividade do leitor, como propõe Jacques Rancière, em Politique de la littérature. Que novas figuras de esperança, sem cair na tentação panfletária, poderá ainda a literatura convocar neste crepúsculo das ideologias? Diz Rancière que «a força da arte é, precisamente, sair das figuras, das formas esperadas, para lhes dar um outro modo de presença». Não estamos diante de indivíduos, mas de personagens de papel - como escreveu Roland Barthes - através de cuja figuração estética o mundo impõe uma presença que apenas a distância nos permite abarcar. Mas «personagens com inteireza», segundo Lídia Jorge, capazes de dar à trama da vida uma outra lógica que lhe escapa e que só a literatura pode inventar, agitando éticas e estéticas conformistas. Uma literatura como simulação da vida, como escreveu Bernardo Soares no Livro do Desassossego: «Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa». Ir por aí, portanto, ultrapassando o velho paradigma modernista da distinção entre uma literatura engagée e uma literatura indiferente, mas recusando «uma espécie de pedagogia política voluntarista da arte» que não poderá constituir o contraponto ao vazio ou ensimesmamento literários.

Coloca-se, então, o problema da relação da política com a literatura, com a arte em geral. Qual o compromisso actual da literatura? Caberá à literatura e à arte produzir conhecimentos ou representações para a política, falhando a sua natureza ociosa? Ou, pelo contrário, não residirá o seu potencial emancipador, o seu fogo, precisamente, na sua aparente ociosidade? «Um romance não é significativo por ser, por exemplo, instrutivo, e expor-nos um destino estranho, mas porque esse destino estranho, com o fogo que lhe é atribuído, nos dá um calor que nunca somos capazes de conservar para o nosso próprio destino. O que empurra o leitor para a novela é a esperança de poder abrigar a sua própria vida tiritante face a uma morte sobre a qual se lê», e «não é por comunicar conteúdos, mas por trazer à luz da maneira mais límpida a sua dignidade e a sua essência que a a literatura se mostra eficaz», escreveu Walter Benjamin em momentos distintos.  Esta a essência da literatura, isto é, a sua capacidade de escapar a toda a determinação essencial, a toda a acção estabilizadora, diz Blanchot. Também Rancière afirma que a literatura  «produz ficções ou dissenções, agenciamentos de relações de regimes heterogéneos, mas não os produz para a acção política, mas sim no seio da sua própria política, criando um duplo movimento que por um lado conduz à sua própria supressão, e por outro, aprisiona a política da arte na sua solidão, recortando o espaço do sensível e da redistribuição das relações entre a actividade e a passividade, o singular e o comum, a aparência e a realidade, que são os espaços-tempos do teatro ou da projecção, do museu ou da página lida».

Ora, é nesta reconfiguração da experiência que a literatura poderá, então, suscitar novas formas de subjectivação política e nesse sentido levar à superação do binómio política/literatura a cuja indistinção Rancière dá o nome de ética. Ou como dizia Lídia Jorge a propósito do seu último livro, uma literatura «com um assomo político», capaz de dar trama à vida de todos os dias. E de «corrigir a fortuna que é cega, com a alegria da natureza que é previdente», acrescentaria Agustina Bessa-Luís. Porque toda a ética da literatura reside no modo como ela se dá a ler. Ou, nas palavras de Giorgio Agamben, «como tu falas, isso é a ética».   

10 de setembro de 2007

No bairro portátil do senhor Tavares (VII): um cacaniano aposentado

«O Senhor Kraus saiu do jornal bem-disposto. Sabia que nos tempos que corriam (para trás?, para o lado?) a única forma objectiva de comentar a política era a sátira». O Senhor Kraus é uma personagem vagamente shandiana. E digo vagamente porque, não obstante a funda ironia e a ácida insolência que caracteriza o seu estilo jornalístico, além da, claro está, sustentável leveza do 5º livrinho deste Bairro portátil que vou revisitanto, não consigo fazer descolar a sua figura da seu severo homónimo Karl Kraus que numa Viena em apocalipse alegre escrevia e publicava sozinho a revista  Die  Fackel, com tal escrupulosidade que não só nunca lhe escapava a denuncia de tudo o que era podre e falso como nunca falhava, sequer, a colocação da vírgula menos pertinente.

O Senhor Kraus mimetiza o visionário nihilista e impiedoso crítico seu homónimo que - como escreveu Roberto Calasso, em Os quarenta e nove degraus -,  tendo antecipado que «se encontrava numa época que esvazia a noção discursiva e teatral de adversário, estendendo-a a tudo, dissipando-a em névoa, tornando qualquer um facilmente inimigo de si mesmo», se retirou para a vida privada do Bairro de Gonçalo M. Tavares. Ao contrário do seu duplo cacaniano que achava que «o jornalismo comia o pensamento», o Senhor Kraus é um jornalista shandy que apanha o acontecimento político de modo expedito, sem estar preocupado com qualquer refinamento estilístico.

Antecipando as causas da crise por vir, o Senhor Kraus apanhou de cernelha um acontecimento raro: «Uma enorme comitiva de economistas entrou nos aposentos centrais. Traziam um relatório gigante. Era o diagnóstico; o estado da economia do país ali estava, ao pormenor. Três meses de trabalho envolvendo mais de 32 mil economistas. Bem remunerados, mas era merecido: o relatório tinha mais de seiscentas páginas. E um índice. Foi no índice que o Chefe pegou». Às vezes, a realidade imita a ficção.

Afinal, a leveza destes livrinhos portáteis só o será aparentemente. Diria, antes, que são de uma insustentável leveza em matéria de expressão literária breve e despretenciosa para apanhar o quotidiano sem estar a coberto de qualquer propósito moralizador.

7 de setembro de 2007

No bairro portátil do Senhor Tavares (VI): no café com Calvino


O Senhor Calvino é uma personagem que gosta de dar longos passeios e coloca constantemente desafios existenciais a si próprio, tais como transportar pelo bairro uma barra metálica paralela ao solo, ou levar 10 kg de terra de um local para outro, utilizando uma colher de chá -  para treinar a paciência. O Senhor Calvino esteve no Café do TEMPO, no Sábado passado - onde a Gaveta - e o Sandro Junqueira, um jovem talentoso de Portimão, fantasiado de Karl Kraus, esse escritor severo que viveu numa Viena à beira do apocalipse alegre  - montou um radioso Bairro portátil para os curiosos que se escaparam no final da cruel versão teatral de Jerusalém, recriado por João Brites no auditório situado na cave do teatro -, e vimo-lo atirar-se do alto de mais de trinta andares em perseguição dos seus sapatos e gravata que alguém atirara pela janela: «Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessários para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega ao chão, impecável».

O Senhor Calvino sentou-se, depois, tranquilamente,  à minha mesa e, à falta de absinto - essa bebida esverdeada e opiácea que parece também ela ter sido desenhada por Gonçalo Tavares, ele próprio uma espécie de escritor-funâmbulo, umas vezes, em equilíbrio sobre os abismos da realidade dos seus livros negros, e outras vezes, planando em permanente «voo imaginativo» sobre um bairro portátil» para onde se escapa como se fosse, também ele, um senhor desenhado posto ali em andamento para nos fazer esquecer a realidade (e que, por certo, o volúvel Senhor Henri -, talvez o mais shandiano de todos os habitantes do bairro, bastante afeiçoado ao absinto e muito entendido nestas coisas de estímulos, fontes de inspiração e coisas assim - se por ali andasse, não deixaria de nos servir, ) - bebemos um whisky.

E, por um tempo breve, mesmo sem absinto para misturar com realidade, mas com os deliciosos livrinhos gráfico-literários inventados por Gonçalo M. Tavares ao fundo, numa biblioteca transportável, obtivemos uma realidade melhor depois de, momentos antes, termos andado à deriva entre cachos esbogoados de uma vindima longínqua, esqueletos de uvas amassadas lembrando ossaturas humanas, à semelhança de uma história normalizada do horror. Bipolaridades. Ou não fosse Gonçalo M. Tavares, «um autor que - como diz Enrique Vila-Matas - à segunda-feira se confunde com Michaux, à quinta com Thomas Mann, assemelhando-se todos os domingos a Fernando Pessoa.


[para uma descida aos malstroms tavarianos ler: Ensaio sobre a loucura e Da banalidade do mal]


6 de setembro de 2007

Da (dis)posição de Amos Oz


Regresso ainda à História de Amor e Trevas, de Amos Oz já aqui comentada, para me posicionar subjectivamente face à matéria narrada. E será possível qualquer outra patalogia de posição que não seja subjectiva? Pois se é da (dis)posição do mundo que decorre a nossa própria (dis)posição que, por natureza, só pode ser subjectiva. Ora também os livros têm disposições construídas a partir da matéria deixada à disposição dos seus autores. Muito particularmente este livro autobiográfico de Oz cuja matéria foi arrancada às pedras dispostas em Jerusalém.

Um livro «muito proustiano», portanto, carregado de «cheiros, sons, imagens que ajudaram a lembrar» - como disse Amos Oz numa entrevista ao Ípsilon, em 9 de Março passado -, arrancados às pedras de Jerusalém. Curiosamente, também a tradutora do livro para português, Lúcia Liba Mucznik - uma judia askenazita que vive há muito em Portugal - andou a «passear nas ruas com o nome dos profetas, naquela Jerusalém dos comerciantes», o que torna a versão portuguesa deste romance duplamente autobiográfica, pois autor e tradutora partilham o mesmo sentimento de continuidade face à residualidade dos lugares. Até porque a memória é sempre residual, acolhe-se nos lugares, nos vestígios que Oz involuntariamente vai exumando contra o esquecimento, como a «madalena de Proust»

Por isso este romance autobiográfico, uma «mémoire» como o classifica o próprio Oz, não pode ser neutro relativamente à matéria que narra. A sua insustentável objectividade decorre desde logo do facto do autor se encontrar marcado pela afecção da sua experiência posterior - o livro é escrito quase cinquenta anos depois dos acontecimentos centrais que narra -, o que lhe impôs naturalmente o exercício do juízo e da tomada de posição face ao vivido no passado. Ora é justamente essa subjectividade do discurso autobiográfico que confere autenticidade a uma História, narrada segundo a perspectiva da posição adoptada pelo autor. Sendo que a posição aqui é a de alguém que não se constitui como um narrador indiferente, mas como um protagonista empenhado em construir uma versão empenhada de um sionismo moderado. Diminuirá isto o livro? Claro que não. Antes oferece aos leitores a visão de um israelita que encarnando a velha utopia sionista dos askenazitas fundadores de Israel gostaria de viver numa terra habitada por dois povos, como prova o seu posicionamento no movimento Peace Now que ajudou a criar. Mas falhada por várias vezes a ocasião de paz, é a catástrofe que vai serpenteando nessa «terra prometida», agora sob a forma de uma muralha de ódio. Poderá este livro, que foi muito bem recebido em Israel, contribuir para quebrar a solidão irredutível dos dois povos? Até porque - e no livro isso percebe-se bem - os judeus jamais quererão regressar à sua condição de párias errantes num mundo que os repudiou e os palestinianos jamais abandonarão a sua terra mesmo que ela se vá transformando cada vez mais numa prisão de altos muros.

Esta a (dis)posição de Amos Oz [também comentada aqui e  aqui] que afecta a minha própria (dis)posição face à matéria narrada.

4 de setembro de 2007

À beira do abismo


"O que escreves?", perguntaram-lhe há um ano. Depois do Doctor Pasavento, vivia numa permanente sensação de caminho enclausurado, pois sentia que havia chegado ao final de um certo percurso e que diante mim se abria um abismo. "Escrevo o título de um livro", respondeu. O título era Exploradores do Abismo. Nos dias que se seguiram, começaram a surgir uma série de relatos relacionados com o que sugeria esse título. 

O livro inteiro é a exploração desse abismo. E, como o mesmo título indica, ocupa-se de histórias protagonizadas por seres à beira do precipício, seres que se entretêm com essa fronteira, estudando-a, investigando-a, analisando-a. Os exploradores são, obviamente, uma metáfora da condição humana. São optimistas e as suas histórias, no geral, são as das "pessoas comuns que, ao ver-se à beira do precipício, adoptam o estatuto de expedicionário e sondam no plausível horizonte, indagando o que pode haver fora daqui, ou no mais além dos nossos limites". Caídos na imanência, entregues ao mundo sem remissão, é aí, contudo, que terão de encontrar as novas forças para explorar abismos e retraçar a realidade naquelas zonas obscuras onde a ficção não entra. Este o propósito denunciado por Enrique Vila-Matas que parece querer assim suspender, pelo menos por agora, a temática metaliterária (Bartleby, Montano e Pasavento), e obsessiva, dos seus últimos livros, para concentrar-se em torno de assuntos mundanos. 

Exploradores del abismo [Anagrama]o seu «livro más vilamatiano, justamente porque no está a la sombra de nadie» - como disse o próprio Vila-Matas -, sai esta semana em Espanha, assinalando o regresso do autor ao conto, género breve dos seus primeiros livros. Trata-se de uma travessia fragmentária através dos territórios de um quotidiano vazio habitado por personagens aparentemente derrotadas da vida mas que as circunstâncias transformam em solitários expedicionários à procura da fórmula para exconjurar a realidade. Regressados da verdadeira vida que é a ficção precipitam-se no abismo que é, muitas vezes, a realidade. Daí a atracção kafkiana pelo abismo experimentada por seres que, vivendo na mais absoluta rotina quotidiana, são inesperadamente obsequiados com epifanias que os transformam em expedicionários de mundos, de vivências nunca experimentadas. 

"Fuera de aquí, tal es mi meta", eis a radical auto-consciência que alimenta o propósito vertiginoso deste livro, talvez o único movimento possível para quem explora os abismos da vida através de uma «escrita hóstil e mesquinha com a exuberância», como a classificou o crítico mexicano Álvaro Enrigue, mas cedendo a uma certa lógica surrealista convocada agora sob os auspícios do seu admirado Raymond Roussel, como confessou Vila-Matas em entrevista recente.

1 de setembro de 2007

Pela estrada fora


Nova Iorque, Denver, São Francisco, Nova Orleões, San Joaquin Valley, México, eis a cartografia de um romance onde se concentram as memórias de uma certa paisagem americana na ressaca do pós-guerra e no limiar da Guerra-Fria. Prosa fluída sobre a América, o jazz, a juventude, a liberdade, «On the Road», romance que afirmou Jack Kerouac como fundador da «beat generation», faz por estes dias cinquenta anos, mas ecoa ainda num certo imaginário que fomos construindo, muitos de nós, a partir da sua leitura. Também eu, que li aos dezassete anos esse livro, tive um tempo em que me fiz, não à estrada, mas aos comboios que levavam ao norte da Europa, fugindo de um país de adolescência e ingenuidade perdidas e onde até os beijos eram vigiados, perseguindo países artúricos que ficavam no final do trajecto. «Só pode ser o fim do mundo se avançarmos», já tinha lido em Rimbaud cujo apelo segui. Paris, Copenhaga, Estocolmo... uma errância europeia em vésperas de 74. Um único livro na mochila, precisamente o road book de Kerouac que lia enquanto esperava pelo próximo comboio sob o orvalho das manhãs frias, tendo como companheiros apenas Sal Paradise e Dean Moriarty, com quem andava à deriva.

Assim li Pela estrada fora, numa edição da Ulisseia que guardo, anotada a lápis. E embora depois tenha esquecido o livro, durante muito tempo a minha representação da América foi a que a Sal me ofereceu: os arranha-céus de Nova Iorque, o pôr do Sol vermelho atrás das montanhas, a imensidão do deserto, poços de petróleo na linha do horizonte, o vento embalando os campos de algodão, as águas barrentas do Mississippi, casas com jardim, beatas corroendo o chão de estações de comboio, o «odor devasso de uma grande cidade», São Francisco brilhando como uma jóia na escuridão da noite, jazz tocado às escondidas nos bares das cidades suburbanas...

«As únicas pessoas autênticas, para mim, são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que não bocejam, mas ardem, ardem, ardem como fabulosas grinaldas amarelas de fogo-de-artifício a explodir», confessa Kerouac no romance. Uma justificação para a aventura, para o desvario, para o desregramento dos sentidos que havia de levar à escrita do livro em 1951 (mas que seria publicado em 1957), num ritmo alucinante alimentado a café e ao som do jazz improvisado, como se fosse um Proust «só que mais rápido», como ele gostava de afirmar.  O livro foi dactilografado num parágrafo único, sem pontuação num rolo de trinta e seis metros de comprimento que o próprio Kerouac manufacturou juntando 13 folhas de papel com três metros de comprimento cada uma, coladas com fita-cola e recortadas depois para que pudessem entrar na máquina. «Um único e magnífico parágrafo, de vários quarteirões, rodando, como a estrada em si», diria Allen Ginsberg.

Depois do sucesso e das polémicas suscitadas pelo livro, Kerouac deixou de ver a estrada, deambulando apenas pelos atalhos de uma América que perdera toda a inocência e donde, tal como os seus companheiros de estrada, também ele desertaria: «Perdoei toda a gente, desisti, embebedei-me», eis o destino que ele próprio já adivinhava para si. Morreu em 1969, aos 47 anos, talvez porque já não suportasse mais ser o ícone de uma geração onde não se revia, sem responder à pergunta feita no romance: «Para onde ides vós, América, no vosso automóvel a cintilar pela noite fora?», eis a pergunta a que Kerouac não soube responder. Nem nós saberemos, já que o torvelinho americano tudo parece arrastar num vórtice que enlouquece a própria história e não já chega fazermo-nos à estrada à procura de um tempo artúrico.