20 de fevereiro de 2008

Desolação



No post anterior dizia que se tratava de encontrar passagens nesta paisagem de desolação que aí está povoada de luzes ofuscantes que os trapezistas do marketing não se cansam de diariamente ir acendendo. Mas hoje sinto-me na obrigação de abandonar a metáfora, ainda que apenas pelo tempo de escrita deste post, para repetir a mesma expressão de paisagem de desolação, só que, desta vez, atribuindo-lhe o mais sebaldiano dos sentidos. Porque outro sentido não seria possível face às imagens de habitações escancaradas diante do olhar de espectadores obscenos, móveis humildes amontoados sobre um espelho de lama, intransponíveis sedimentos de esperança perdida sob o demónio cinzento da desgraça. Paisagem de infelicidade, afinal, que vem perturbar, agora, a retórica antes aqui deixada a propósito das novas patologias do nihilismo.

É que as imagens que, ontem e hoje, as televisões vão passando não são de divertimento, mas de estremecimento. É que, às vezes, as televisões também são capazes de dar conta da «consternação do mundo». E a consternação é, ainda, a mesma de sempre. Todos seguindo «o mesmo caminho de antemão traçado pela nossa origem e pelas nossas aspirações», diria o passeante melancólico W. G. Sebald, «impotente para afastar os fantasmas da repetição», se mergulhasse agora os passos naquela torrente adormecida de lama povoada de reminiscências de outras desolações. E nessa procissão entre ruínas húmidas, a dolorosa coincidência daquele jovem casal que tudo perdeu num torvelinho de lama e que já não reivindica felicidade, apenas a esperança perdida na vertigem do vazio. Resta-nos, então, encontrar passagens, fendas, na continuidade do mundo e procurar aí, depois, um sentido de possibilidade. Até porque, como disse Walter Benjamin «é apenas pelos sem esperança, os desesperados, que a esperança nos foi dada».

14 de fevereiro de 2008

De um outro uso do nihilismo


Numa carta enviada a Louise Collet, em 1850, Flaubert escrevia: «O mundo vai tornar-se tremendamente imbecil. Nos próximos anos, a coisa vai ficar muito aborrecida. É uma sorte vivermos agora e não mais tarde» [Gallimard, 1998]. Flaubert antecipava, então, o apogeu da banalidade num mundo em que a gente dita ilustrada começava já a mover-se sem ética nem estética, prenunciando «um tempo - acrescentava ainda - em que toda a gente se terá convertido em homens de negócios ». Flaubert que se dava como desaparecido nos distintos cenários da sua obra narrativa elegia a sua correspondência privada para comentar com contundência a vida cultural, política e social do seu tempo.

Ora, mais de um século e meio depois, a sua visão de um tempo marcado, não tanto pelo tédio mas sobretudo, agora, pelo vazio e pela mundanidade frívola, em que quase todos parecem ter-se convertido em homens de negócios, a contundente opinião de Flaubert adquire uma particular actualidade quando o que mais encontramos por aí são analfabetos altivos desprovidos de ética e estética, mas não de ambição económica, fetichistas gulosos dos bons lugares na sociedade, hedonistas indiferentes aos males do mundo, despudorados trapezistas do marketing. E uma massa de gente vivendo com a implacável consciência de uma quotidianeidade penitenciária sem outros sobressaltos que não os das notícias sobre a violência urbana, sobre os acidentes de trânsito, as explosões domésticas de gás, os fumos de corrupção e prevaricação e a crescente insegurança do emprego que nos transmitem uma profunda sensação de tédio que se vai derramando horizontalmente, homogeneizando tudo à sua volta, devorando as possibilidades alternativas de vida, reais ou imaginárias, como se nada mais houvesse fora da experiência de vida asséptica e anódina que aí está.

A banalidade quotidiana é-nos cada vez mais imposta - escreve Bruce Bégout em Lieu commun- Le motel américain [Allia] - como uma «fatalidade absoluta» em que a vida deixou de ser aquela experiência singular tão exaltada no advento da primeira modernidade para se tornar num processo de «produção seriada» ou, utilizando uma imagem mais contemporânea, no produto de implacáveis máquinas de marketing que visam distribuir por todos milagrosas doses de divertimento. Eis onde Flaubert não acertou. É que, se bem antecipou o triunfo do aborrecimento no apogeu do primeira modernidade, não poderia imaginar que o hedonismo indiferente que se vai espalhando por aí é determinado pela natureza pulverizadora do nihilismo pós-moderno, incoincidente com a noção de tédio geradora de opções transgressoras de vida ou de revolta social que marcou a experiência de vida no século passado. E neste torvelinho do divertimento - mas não da festa -, entregues sem remissão a licenciados em economia e a trapezistas do marketing, vai-se diluindo também a vontade de escaparmos à «colonização do quotidiano» e de nos concedermos outras possibilidades que não sejam as das qualidades homogeneizadas que nos são incitadas e excitadas. Entretanto, marcados pelas novas patologias do nihilismo, vamos caminhando para a uma espécie «apocalipse alegre» [Hermann Broch], como que procurando divertirmo-nos até à morte [Neil Postman, Amusing ourselves to death, Penguin].

«Homens de negócios», portanto, como antecipou Flaubert, aparentemente sem atributos, mas que na realidade possuem todos os atributos. Ou na formulação de Jean-François Peyret dizer, então, que vamos vivendo num «mundo de qualidades sem homem» [«Musil ou les contradictions de la modernité», in Critique, 1975]. O que ilumina o sentido da enigmática frase de Musil sobre «as experiências vividas sem que ninguém as viva». É que as qualidades em nós incitadas, e excitadas, vão-se cristalizando nas figuras aborrecidas que vamos habitando ou nas ideias de todo o género que adoptamos sem nos apercebermos do que a vida pode ter de dissonante, de criativo e de espontâneo.

Talvez, então, pensar, ainda, como Musil, esse homem sem qualidades, que em Die Schwärmer (Trad. francesa Les Éxaltés, Seuil,] dizia que se entre os homens há um sentido da realidade, deve haver também um sentido da possibilidade. E é nessa possibilidade que, embora vagamente nihilista à maneira da primeira modernidade, me reconheço.



5 de fevereiro de 2008

Desemalando uma biblioteca



Vou, então, desemalando os livros que trouxe comigo de Paris e arrumando-os nas prateleiras da minha biblioteca, isto é, subtraindo-os à desordem da mala escancarada para lhes ir dando uma ordem próxima da do coleccionador que é a do catálogo de leituras que carrego comigo e que, daqui a pouco, quando já estiverem os livros recém-chegados dispostos na prateleira, será também a do sentido que cada um deles irá convocar na sua relação de vizinhança com os que já ali se encontram, como se a pequena biblioteconomia das minhas estantes fosse, ela também, geradora de novos sentidos.

Ponho de lado o livro de bolso de Walter Benjamin sobre o desembrulhar de livros e sobre a arte de coleccionar -  Je déballe ma bibliothèque - que me deu matéria para o post anterior e que poderei, ainda, ter de consultar caso necessite de aconselhamento autorizado nesta tarefa, ligeiramente aborrecida, de disposição de livros na estante, a qual, se agora alguém de fora aqui chegasse, julgaria tratar-se mais de uma tarefa de arrumação doméstica do que um procedimento biblioteconómico. E, como Benjamin, à medida que vou retirando os livros da mala, recordo não só as livrarias onde os comprei, La Hune et L´Arbre à Livres, como também as circunstâncias da sua compra, a flânerie que página a página, rua a rua, me conduziu até eles, como se «Paris [fosse uma] grande sala de leitura de uma biblioteca que atravessa o Sena», evocação que, agora, vai também alimentando este fetichismo bibliotecário que, seguramente, já descortinaram nesta auto-ficção.

É, então, sob o signo benjaminiano que retiro da mala, primeiro, a tradução francesa desse iluminante e inacabado projecto que é o Livro das Passagens e não posso deixar de pensar que esse livro fulgurante resulta do trabalho de um autor espoliado não só da sua biblioteca, mas também da sua assinatura, pois o seu nome consta nas listas de autores cujas obras foram queimadas na noite de 10 de Maio de 1933, na Praça da Ópera, em Berlim. E para melhor conhecer Benjamin retiro, em seguida, da mala, a biografia que Hannah Arendt escreveu sobre este escritor saturnino como o proprio se julgava: «Vim ao mundo sob o signo de Saturno: o astro da revolução mais lenta, o planeta dos desvios e demoras...» E depois, os dois livros iluminantes dos labirintos parisienses de Benjamin, Nadja, de André Breton e Le paysan de Paris, de Aragon que li e depois perdi nos meus tempos de faculdade.

Como se marcado pelo signo melancólico de Benjamin tudo o que vai tomando, depois, o seu lugar nas prateleiras, parece participar da mesma «amargura saturnina». Mais do que qualquer outro, Robert Walser que nas palavras de Benjamin tinha «horror ao triunfo da vida» e cujo livro dos microgramas, a que deram o mais walseriano dos títulos, Territoire du crayon, vem, finalmente, habitar a minha biblioteca. São 77 textos escolhidos entre os cerca de dois mil microgramas escritos a lápis com uma caligrafia minúscula sobre 526 folhas de papel de todo o tipo: envelopes, margens de jornais, formulários oficiais, etc. e, como se não me chegasse, ainda, um «romance», Le brigand, encontrado no meio desses manuscritos. Arrumo os livros de Walser junto das traduções portuguesas que já se encontram por ali e não posso deixar de pensar que o escritor suíço era, mais do que Benjamin - que era, sobretudo, um flâneur contemplativo, intelectual -, um «amigo declarado de vagabundear e percorrer léguas e léguas durante dias inteiros» e, por isso, não obstante a sua longa passagem por Herisau, menos saturnino que o autor das Passages. E que dizer do extravagante Raymond Roussel que vivia apartado de si próprio numa roulotte com as persianas descidas, e de quem André Breton disse ser «conjuntamente com Lautréamont, o maior magnetizador dos tempos modernos»? Arrumo, por isso, o seu Locus Solus ao lado dos meus  escritores franceses obscuros, onde também vai parar Armand, escrito por aquele Walser de Paris que é Emmanuel Bove, o escritor crespuscular que me foi apresentado por Enrique Vila-Matas. Talvez, então, também, arrumar por ali as Lettres choisies: 1911-1939, de Joseph Roth, enviadas desde o seu exílio de Paris, sobretudo, para Stefan Zweig, enquanto, à semelhança do seu santo bebedor, se ia «afundando no álcool como num abismo, um abismo macio forrado a algodão». E, logo ao lado - porque também como Roth era oriundo desse mundo de fronteira que era a Galícia polaca -, talvez colocar Le sanatorium au croque-mort, o livro que me faltava de Bruno Schulz , esse «escorraçado da vida (...) que desliza, furtivo, pelas margens», como o retratou Witold Gombrowicz que, também, ficará por ali, com Ferdidurke e, sobretudo, com os dois volumes do seu Journal - escrito durante os vinte e quatro anos que passou na Argentina -, onde o escritor polaco nos oferece aqueles instantes de deslumbramento que ele próprio designou por retratos de momento. Reparo, entretanto, que neste dispor de livros nas prateleiras venho caminhando desde Paris, sempre cada vez mais para leste, até à terrível realidade de Odessa descrita por Isaac Babel nestas Chroniques de l´an 18 - que arrumo junto aos meus escritores russos -, atravessando antes uma Mitteleuropa em desagregação que Robert Musil - esse escritor a quem a escrita usurpou a biografia - nos dá a conhecer nas duas mil páginas de L´homme sans qualités que trouxe comigo de Paris por duvidar que a anunciada tradução portuguesa esteja para breve. Resta Le métier de vivre, o diário desesperado de Cesare Pavese, diário perigoso porque, segundo Italo Calvino, um dos primeiros a lê-lo, capaz de contagiar o desespero a quem o leia. Onde arrumá-lo se não na minha colecção de diários que me vem sendo proposta por Enrique Vila-Matas desde O mal de montano?

Qual a medida e o peso desta biblioteca transportada numa mala desde Paris? Seguramente que nenhuma metrologia será capaz de o dizer. Porque só o último leitor conhece quanto valem os seus livros, agora, ali, na estante, olhando lá do alto, desafiando o abismo que os separa do chão, à espera, talvez, que eu, como um expedicionário deste território de papéis embebidos em tinta, subitamente, me decida e vá por ali acima, de lombada em lombada, à procura, por exemplo, de Musil e o encontre a conversar com Walser numa clareira do bosque de Herisau antes daquele Natal de 1956.