31 de dezembro de 2007

Spleen



Paris, 1857. Um homem caminha de olhos baixos por «uma nova avenida, ainda inacabada, ainda cheia de entulho [...] exibindo os seus inacabados esplendores». Ao lado, as ruínas dos velhos bairros - escuros, densos, assustadores - amontoadas no chão. Uma família andrajosa emerge do entulho à procura da nova luz da cidade moderna. No dobrar de uma esquina, o homem cruza um umbral que dá para um labirinto de ruas, arcadas, passages, onde se exibem os despojos do tempo que passa. Sobre as metamorfoses de Paris escrevera num livro que acaba de publicar: «Paris change! Mais rien dans ma mélancolie/ N'a bougé ! Palais neufs, échafaudages, blocs,/ Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,/ Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs» [«Le Cygne»]. O homem que caminha à deriva soberbamente consciente da sua melancolia chama-se Charles Baudelaire, ensaísta e jornalista, tradutor de Edgar Allan Poe. E o livro onde escreveu estes versos chama-se Les fleurs du mal.

Com esse livro fundaria, também, a lírica urbana, maldita e anti-sentimental capaz de expressar um mundo em descida vertiginosa, cada vez mais para baixo, em direcção ao seu vórtice. E sobre esta visão desafiadora, fantasmagórica, insuperável e premonitória da vida nas grandes metrópoles, escreveria Walter Benjamin, outra alma saturnina que também se erraria, anos depois, pelas ruas de Paris: «C’est là le regard d’un flâneur, dont le genre de vie dissimule derrière un mirage bienfaisant la détresse des habitants futurs de nos métropoles»  [Walter Benjamin. Paris, capitale du XIXème siècle. 1955, Schriften I, pp. 406-422]. 

Mas mais do que os cento e cinquenta anos que agora lembro aqui, estas flores malditas têm uma outra idade, a de «l’horloge, dieu sinistre, effrayant impassible, dont le doigt nous menace et nous dit: Souviens-toi!» [«L´horloge»]. A aguda consciência da industrialização galopante que tudo arrastava no seu vórtice, uma amargura saturnina e, depois, o convite à viagem, a fugacidade... tudo aí se encontra plasmado de forma violentamente prosaica, estilhaçando os códigos de um tempo à deriva: «Je suis comme le roi d’un pays pluvieux, riche, mais impuissant, jeune et pourtant très-vieux...». E, ainda, «le poète est semblable au prince des nuées qui hante la tempête et se rit de l’archer; exilé sur le sol au milieu des huées, ses ailes de géant l’empêchent de marcher» [«L´albatroz»]. Baudelaire, o albatroz urbano, sobrevoou o seu tempo deixando-nos «rares fleurs mêlant leurs odeurs aux vagues senteurs de l’ambre» cujo perfume inebriante, radicalmente moderno, não cessa de nos dar a volta à cabeça.

Seria o mundo do seu tempo um jardim de flores do mal, conforme se interrogava Baudelaire num miserável quarto de hotel, em Bruxelas, onde, doente de sífilis, esperava a morte? Talvez seja o spleen, essa consciência distópica dos labirintos do flâneur melancólico que marca, ainda, a actualidade do seu livro fundacional, ligando o vazio do seu tempo à artificialidade deste nosso tempo, em que nós, transeuntes motorizados e alienados, nos vamos também perdendo através dos labirintos feéricos de uma pós-modernidade glamorosa, desalmada e sem redenção, fantasmagoricamente antecipada no seu livro sobre Baudelaire, por Walter Benjamin, talvez o mais saturnino dos flâneurs das grandes metrópoles da modernidade e aquele que melhor se deixou levar pelo inebriante perfume  das flores do mal.

E é através dessa pós-modernidade glamorosa e desalmada, ostentada nas vitrinas dos grands magasins do Boulevard Haussmann que, também eu, neste último entardecer do ano de 2007 - cento e cinquenta anos depois da sua construção, portanto, - vou caminhando sem rumo. E se fosse dado ao spleen, como um passeante solitário, talvez me detivesse agora no passeio onde uma chusma de transeuntes anónimos vai passando apressada com sacos que transportam os vinhos espumantes que à meia-noite afogarão o tédio. Mas não, não sou dado ao spleen, por isso aproveito, acompanhado, o privilégio supremo que me é oferecido enquanto forasteiro, que é o de participar da banalidade quotidiana desta cidade que nunca se acaba sem lhe sentir o peso, que é como quem diz, sem se deixar levar pelo aroma inebriante das flores do mal.

26 de dezembro de 2007

Passeante do Loire


foto de Gérard Bertrand 

Também ele era um passeante e também ele desapareceu neste Dezembro nas margens do Loire. «Professeur, du géographe, du provincial, de l’amoureux du fleuve, du promeneur, du parisien d’adoption, de l’homme qui dit non, de l’ancien surréaliste qui l’était resté dans l’âme, de feu le communiste très provisoire, eis quem era, ainda, Julien Gracq (1910-2007), segundo o retrato que lhe traça Pierre Assouline.

Ao observar as novidades que por estes dias enchem os escaparates das livrarias não posso deixar de recordar as palavras deste escritor clássico-moderno francês que viveu até às vésperas deste Natal, ocultado na sua casa, em Saint-Florent-le-Vieil, nas margens do Loire, e que em A literatura no estômago [Assírio e Alvim, 1987], um planfleto publicado em 1950, escrevia que a arte literária não só era vítima desgraçada de uma massificação vazia, como estava submetida às perversas regras analfabetas do não-literário. Nesse texto premonitório, de uma actualidade cortante, Julien Gracq arremetia já contra a «literatura alimentícia», essa espécie de fast-food literário imposto pelo mercantilismo editorial emergente e que haveria de se tornar, nos nossos dias, na dieta compulsiva dos «analfabetos altivos».

Tal como Robert Walser que se ocultou em Herisau para escapar ao ruído do mundo, também Julien Gracq se refugiou - numa espécie de exílio interior contra a vanidade dos salões literários - na sua casa natal, nas margens do Loire, fora de Paris portanto, cujo apelo rejeitou, como rejeitou o Goncourt que lhe foi atribuído em 1951, para melhor construir os castelos no ar em que se foram transformando os seus livros cada vez mais fragmentários, cada vez mais imbricados nos territórios dos seus antepassados cujas paisagens quiméricas, como um amante do rio, atravessava em busca do conhecimento perdido. Daí o seu «desejo de preservar-se, de não ser incomodado, de dizer não, em resumo esse Deixem-me tranquilo no meu canto e não parem [que] deve atribuir-se à sua ascendência vendeana», tornando-se num «dos escritores mais ocultos do nosso tempo, um dos mais esquivos e afastados, um dos reis da Negação», como escreve Enrique Vila-Matas em O Mal de Montano, depois de o ter visitado no seu exílio vendeano.

E assim foi até à sua morte, com noventa e sete anos, na ante-véspera do dia de Natal, deixando-nos as dezenas de cadernos onde durante últimos quinze anos foi pintando as suas paisagens interiores. E, sobretudo, A costa de Sirtes [Vega, 1998], esse romance absoluto sobre a espera e os mundos de fronteira que sugere a mesma vagabundagem nervosa de Nerval e onde o leitor se cruza com uma sucessão de iluminações rimbaudianas, como aquela, fantasmagórica, quando vemos emergir do mar, como uma montanha mágica, o vulcão Tängri: «Aí estava, ali o tínhamos. A sua fria luz irradiava como um manancial de silêncio, rei na noite deserta». Um livro, ainda, que à data da sua publicação, em 1950, foi considerado por André Breton como o único livro capaz de actualizar a herança do surrealismo. E, sobretudo, um livro profético sobre a consternação do mundo que aí está, agora, aparentemente sem redenção.

Quando, na próxima semana, eu for a Paris - cidade que Julien Gracq adoptou durante grande parte da sua vida, antes de regressar definitivamente à sua casa natal - seguirei o conselho de Pierre Assouline e irei até à livraria de José Corti, o editor-livreiro da rue de Médicis, para, talvez, comprar ali algum livro de Gracq e depois, se a meteorologia o permitir, já no outro lado da rua, no Jardin du Luxembourg, folheá-lo «armé d’un canif, couteau, coupe-coupe, machette, tronçonneuse ou tout objet susceptible de disjoindre en un bruit exquis les pages non massicotées», porque assim o exigem os livros de José Corti.

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[Foto: Vitrine Julien Gracq, janvier 2002, rue Médicis, archives Corti].

20 de dezembro de 2007

A invenção do ensaio



Em 1571, o nobre senhor Michel Eyquem de Montaigne [1533-1592] ao passear a cavalo nos arredores de Bordéus teve um acidente que quase lhe custou a vida. Este episódio, que veio juntar-se à morte recente do pai, transmitiu-lhe uma tão aguda consciência da fragilidade da vida que decidiu abandonar os altos cargos de magistratura e retirar-se para as suas propriedades no Périgord, desfrutando ali da tranquilidade do campo, da companhia dos amigos e, sobretudo, da excelente biblioteca instalada na torre circular do seu castelo. Para assinalar essa decisão mandaria pintar no gabinete adjunto à sua biblioteca a seguinte inscrição: «No ano de Cristo 1571, com a idade de 38 anos, na véspera das calendas de Março, seu aniversário natalício, Michel de Montaigne, desde há muito desgostado da servidão áulica e dos cargos públicos, sentindo-se ainda vigoroso, retirou-se para o seio das doutas virgens, onde, calmo e sem se inquietar com a mais pequena coisa, passará o que lhe resta de uma vida já muito avançada. Se as decisões do destino o permitirem, perfaça ele esta residência e refúgio ancestral, que ele consagrou à sua liberdade, à sua tranquilidade e ao ócio» [in prefácio de Rui Bertrand Romão a Montaigne – Ensaios, Relógio d’Água, 1998].

Seria ali,  então, ali, ocultado do mundo e em diálogo com Platão, Epicuro, Séneca e Lucrécio sobre o sentido da vida, as paixões, os prazeres e os mistérios da existência, que escreveria os seus livros, inventando um género literário que viria designar-se por ensaio - esse género sem género, de uma ambiguidade propositada, que encerra todos os cruzamentos da escrita -, e que ficaria indelevelmente ligado à construção da subjectividade moderna.

A sua escrita, fragmentária, tangencial, quase nunca assertiva, seguia o ritmo das suas meditações, estimuladas ora pela leitura acidental dos seus autores de cabeceira ora pelas oscilações da alma ora pela imaginação caprichosa ora, ainda, pelas manifestações do quotidiano obscurecido pelas guerras religiosas que assolavam a França. «O meu ofício, e a minha arte, é viver. […] Pinto sobretudo os meus pensamentos, matéria informe que não se pode exprimir por actos. A muito custo posso colocá-la nesse corpo aéreo que é a voz. […] Eu exponho-me na íntegra, tal um esqueleto, em que simultaneamente aparecem à vista as veias, os músculos e os tendões, cada peça no seu lugar. […] O que eu descrevo não são as minhas acções, sou eu próprio, é a minha essência» [op. cit. «Da Exercitação»]. Filósofo sem academia para quem filosofar era aprender a morrer, rejeitava as abstracções metafísicas, procurando tão só compreender a realidade que confrontava com a sua visão humanista do mundo, o sentido hedonista da existência e o culto do individualismo que faziam a sua modernidade.

Pensar, então, que a modernidade não surgiu em contacto com o mundo, mas das meditações daqueles que se retiraram do mundo, precisamente, para melhor poderem pensá-lo. Como Montaigne na torre circular do seu castelo; como Descartes, que decidiu ocultar-se num quarto aquecido de um quartel de Inverno, em Ulm; como Nietzsche que encerrado em si mesmo dizia que apenas na companhia de Montaigne a vida se lhe revelava mais suportável; como Walter Benjamin, solitário sempre, embebendo em tinta os seus cadernos de pensamentos; como Pessoa transportando, anónimo entre os transeuntes da Baixa de Lisboa, uma arca que haveria de nos desassossegar. Todos fazendo parte da minha mala pessoal da modernidade.

Por isso, nesta época de troca de livros, talvez receber aquela expressiva e inacabada biografia que Stefan Zweig nos legou sobre o filósofo do tangível e que constitui, asseguram-me, o melhor estímulo à leitura dos Ensaios e à passagem tangencial pela sua vida. E quem melhor para nos abrir as portas do castelo de Montaigne que Zweig, também ele um humanista solitário fugido à barbárie nazi em busca do paraíso que nunca encontraria no seu exílio brasileiro, defensor da liberdade do pensamento contra as imposições totalitárias das ideologias e demais loucuras gregárias?

[Ao alto, escritório de Montaigne na torre circular do castelo]

17 de dezembro de 2007

Crónica comestível


Se uma madalena «mergulhada na infusão de chá preto ou de tília» pôde desencadear em Proust «recordações tanto tempo abandonadas longe da memória» que o levaram a escrever Em busca do tempo perdido, como não poderá a minha visita ao novo mercado de Portimão servir de pretexto para esta crónica comestível  cuja matéria verbal se dispõe, primeiro, em bancas como as que me foram dadas ali observar? Até porque, como escreve Vásquez Montalbán, «o gourmet devora duas vezes ao mesmo tempo, aquilo que come e aquilo que comeu» [in Contra los gourmets]. Ao que eu acrescentaria uma terceira, aquilo que leu, consistindo esse terceiro momento, para nosso deleite e instrução, a sublimação pela literatura, cuja ilustração nos foi oferecida por Karen Blixen nesse delicioso romance Festa de Babette, levado depois ao cinema por Gabriel Axel, que celebra o aparecimento da grande cuisine da viragem pós-revolução francesa.

Aos sábados, pela manhã, vou às compras ao mercado de Portimão. E sempre que ali vou, dou-me conta, como se fosse a primeira vez, da viva presença das coisas ali dispostas. A geometria das bancas, a perfeita distribuição de áreas e produtos, a boa disposição dos vendedores, a gente da minha terra conversando. Os encontros fortuitos, ainda que semanalmente repetidos. Comprovo a inteligência e a ficção das coisas postas ali em sossego ao meu dispor como um território habitual mas sempre inexplorado, donde recolherei a matéria ficcional com que, depois, elaborarei uma retórica pessoal dos sabores. Na perfeita distribuição da matéria exposta, vou encontrando os peixes dourados do mar do Algarve, as carnes bravias e campesinas, a pura poesia dos frutos, os ingredientes vegetais e telúricos que me hão-de proporcionar o devotado exercício gastronómico que vou mentalmente ensaiando em imaginários menus por fazer. Uma manhã feliz.

Porque estamos na época deles, navego entre bancas de peixes onde brilham sargos, douradas e robalos acabados de chegar do mar de Sagres. Escolho um gordo sargo que grelharei com ervas aromáticas como ensina Colette: «Prepare a vassoura, é assim que eu chamo ao ramo de cheiros com louro, hortelã, segurelha, tomilho, rosmaninho, salva... mergulhe-a num pote cheio de azeite misturado com vinagre de vinho [...]. O alho [...] esmagado, até ficar com uma consistência cremosa, realça a mistura, como convém. Um pouco de sal, bastante pimenta» [in Prisons et paradis].

No talho, mando cortar um teclado musical de costoletas de porco preto alentejano que hei-de levar ao forno a assar com ervas aromáticas e mel. Peço, ainda, que me cortem uns bifes tenros de vitela que cozinharei ao jantar, na figideira, à lisboeta, com o molho a pedir aquele pão caseiro que comprarei em seguida e o ovo a cavalo, de preferência de galinhas do campo. E enquanto o talhante vai cortando o coração da carne, lembro-me do bife com batatas fritas de Roland Barthes [in Mitologias], que não é uma receita, antes uma espécie de leitura antropológica sobre o bifteck cujo «prestígio resulta, de toda a evidência, da sua natureza de carne quase crua». Para a sobremesa, se fosse época, escolheria uns figos que cortaria à maneira de D. H. Lawrence que embora não sendo algarvio conhecia «a maneira correcta de comer um figo à mesa», ou de Herberto Helder que lhe mudou o poema para português: «é parti-lo em quatro, pegando no pedúnculo,/ E abri-lo para dele fazer uma flor de mel, brilhante, rósea, húmida,/ desabrochada em quatro espessas pétalas.» [«Figos», in Poesia toda, Herberto Helder]. Levarei, então, laranjas de Silves para o almoço. E para o jantar, farei um arroz-doce «disposto» - como no poema de Háfiz Dimashki - «em longas tiras sobre o/ prato, a brancura do leite [...]/O acúcar espalhado sobre os bordos/ cintila como um raio/ de luz solidificado.» [«Celebração do arroz-doce», Háfiz Dimashki  (1134-1176).

Eis, então, um sábado de compras, semanalmente repetidas, no mercado de Portimão, recuperado como matéria ficcional desta crónica em que se conclui que também se pode ir a um mercado como se vai a uma livraria.

10 de dezembro de 2007

Escrita vegetal




Leio traçando a lápis, simultaneamente, linhas de fuga e de intromissão sob os labirintos de tinta embebidos das páginas dos livros, como diria Walter Benjamin. Deixo, assim, a presença fragmentária da minha mão no corpo do texto, como se cada página fosse um território por medir, por interpretar, à espera do rasto vegetal - madeira e carvão - que vou deixando no chão da escrita, também ele vegetal - papel -, incitado (e excitado) pela leitura que, lentamente umas vezes, sofregamente outras, avança através dos labirintos de tinta impressa. Aqui e acolá, escapo-me furtivamente para as margens, território virgem da página onde deixo impressões de leitura: anotações, remissões, indexações - espelhos quebrados do texto onde mais tarde regressarei para me rever como co-autor de um livro que não escrevi. Então, como o Agrimensor de Kafka [in O Castelo], também eu ando de margem em margem, e passo de uma anotação para outra, de um comentário para outro, adentrando-me nos trilhos vegetais que fui abrindo durante a primeira leitura.

Devo, portanto, ao lápis essa possibilidade infinita de não mais me perder nos labirintos de tinta embebidos, impressos, nas páginas dos livros. O lápis, então, como ferramenta preparadora de outros textos que hão-de vir em forma de pequeno ensaio ou de crónica de momento que convoca a paráfrase, a citação, preparadas transitoriamente pelo trilhar a lápis do pensamento que toda a leitura incita (e excita). Como esta crónica breve sobre a escrita a lápis que nasce da anotação vegetal o fabricante de lápis, na margem da página 17 de Fuga sem fim, de Joseph Roth [Acantilado, 2003]; ou a referência ao agrimensor K. suscitada por uma outra anotação à página 156 de O mal de Montano, de Enrique Vila-Matas [Teorema, 2002]. Sublinhar, anotar a lápis, então, não para desaparecer como pretendia Robert Walser com os seus microgramas, mas para abrir afluentes vegetais que hão-de embeber, depois, a tinta, os cadernos moleskine por vir.

Nos cadernos moleskine prefiro escrever a tinta, com caneta de aparo, uma art pen que me que me transforma momentaneamente no escritor húngaro Dezsó Kosztolány que num café, em Budapeste, enquanto escrevia Cotovia [Dom Quixote, 2006], em vez de pedir ao empregado um café, pedia tinta: - « Garçon - dizia - tinta, s´il vous plaît!».

A caneta de aparo como extensão da mão, do corpo, um fio de tinta, ziguezagueante, a embeber a página, com cheiro, e mudando de cor no rasto das oscilações da alma, deitando depois o pensamento no chão do caderno onde desaguam os afluentes vegetais que brotam das margens dos livros lidos. Como evocaria Kosztolány, primeiro a tinta e, depois, no computador, se como um agrimensor literário não tivesse antes deixado uma anotação vegetal na margem de Cotovia?

E só depois utilizo o computador. Pelas suas infinitas possibilidades de permuta e de substituição de palavras, de frases e de períodos; de cristalização sintáctica e morfológica da escrita. Enfim, de estabilização racional do pensamento ondulante no espelho quebrado do monitor onde vou colando citações, fragmentos, ecos de leituras a que acrescento frases e ideias próprias que me vão sendo incitadas  - e excitadas - pelo fio de anotações que foi brotando, primeiro a lápis e depois a tinta, como uma respiração de ideias fragmentárias no chão do caderno moleskine, para se cristalizar, finalmente, numa crónica autónoma, pessoal, mas onde se escutará sempre o eco inaugural da leitura.

 [Ilustração ao alto, de Rachael Caiano©]

6 de dezembro de 2007

O último Vila-Matas: funambulismos



Contrariamente ao que pensaria Elias Canetti, para quem os exploradores jamais regressam dos mapas obscuros em que adentram, cruzo a última página de Exploradores del abismo [Enrique Vila-Matas, Anagrama, 2007] e como um funâmbulo regressado à plataforma segura onde se prende a corda estendida sobre aquela cartografia abismal, reencontro-me no lado de cá de um território fronteiriço, desolador e, às vezes, desassossegante, onde numa noite de insónia me cruzei com «seres corrientes y vulgares, es decir de individuos amostazados, apopléticos y analfabetos» que entretém a vida roçando o vazio existencial multiplicado no espelho carveriano deste livro que, mais do que uma antologia de contos, antes constitui uma contínua narrativa de equilíbrio sobre o vazio do mundo - de que a travessia sobre uma corda estendida entre as torres gémeas do WTC evocada no conto Materia oscura constitui a metáfora absoluta -, atravessado por um escritor equilibrista com «una risa excepcional, diáfana, allá en lo alto, en claro contraste con el coche fúnebre que había quedado aparcado allí abajo».

E não só não me perdi ali, como naquela perigosa região fronteiriça me cruzei com o próprio Vila-Matas, também ele, sobretudo ele, um escritor funâmbulo em equilíbrio instável sobre os abismos que abrem no outro lado da literatura: «No quiero indagar más en el abismo, es decir, en el más allá de la literatura. No hay vida ahí, sino un riesgo de muerte». Por isso, estende-nos a corda que atravessa as dezanove estações do vazio, numa tentativa de ir ludibriando a morte, como já a havia ludibriado antes quando roçou literalmente o precipício absoluto numa cama de hospital. Funâmbulismos, portanto [segundo também a tese expressa no excelente blogue espanhol, El Lamento de Portnoy], do escritor e do leitor, a que Maurice Forest-Meyer, aquela personagem furtiva que encontramos em quase todas as estações abismais, dá consistência narrativa.

Daí a atracção kafkiana pelo abismo experimentada pelas suas personagens solitárias e erráticas que, vivendo na mais absoluta rotina quotidiana, são inesperadamente obsequiados com epifanias que os transformam em expedicionários de mundos paralelos, de vivências nunca experimentadas, preferindo os mundos paralelos à realidade que confrontam com a soberba de quem possui a fórmula mágica que a há-de esconjurar. Mas personagens impregnadas e construídas pela discursividade omnisciente do autor cuja presença abismal como se fosse um Deus habitando no apartamento do lado e que tudo manipula, fazendo deslizar as personagens ora para o abismo ora para «fuera daquí».

Por isso, autor e personagens, perseguem os luminosos e equívocos abismos que «dan contenido espiritual al vacío», através de uma casualidade onírica que não se esgota na retórica ficcional declinada em metáforas abismais, reiterações, acasos aparentes, imagens da monotonia da chuva, inverosimilhanças, miniaturizações descritivas, desvios, citações, atribuições falsas, biografias apócrifas procuradas incessantemente por um caçador furtivo de frases, por um fazedor de discursividade - diria Barthes -, onde ecoam, ainda e sempre, as vozes de Borges, de Augusto Monteroso ou de Sérgio Pitol. Do estilo destes contos diria, seguramente, Rosario Girondo, o narrador de O mal de montano, que «consiste em destestar a linha recta e vaguear, debruar, seguir elipses e labirintos, retroceder, andar em círculo, tocar de repente esse inalcansável» que é a realidade.

«Fuera de aquí, tal es mi meta», eis a radical auto-consciência que alimenta o propósito vertiginoso deste livro onde damos com um falso explorador de abismos que escala um vulcão em busca das almas dos mortos que se escondem num lago na cratera; um autista apaixonado pelas plateias vazias; gente que julga que uma matéria obscura e invisível atravessa o universo inteiro; um russo melancólico que, farto da sua vida familiar, descobre aliviado que prefere ser um personagem de um conto; uma mulher que descobre os contornos da sua própria morte e protagoniza, ritualmente, todas as cenas prefiguradas; alguém que vive a mesma vida do seu companheiro ligeiramente alterada; a artista Sophie Calle que desafia um escritor a inventar-lhe uma história que ela, depois, protagonizará na realidade; e o belíssimo ensaio final, La gloria solitaria, que convoca Miles Davis, Thelionius Monk, Montaigne, Kafka, Fernando Pessoa, Thomas Berhardt, Glenn Gould, Robert Walser, Raymond Roussel, Giorgio Agamben, «un microcosmos de soledades todas vinculadas entre ellas». Todos «solitario[s] de sí mismo».

Ficções imbricadas na realidade que um Vila-Matas fingidor que diz «que no podría haber escrito [...] si previamente, hace un año, no [se] hubiera transformado en alguien levemente distinto, no [se] hubiera convertido en otro» [in Café Kubista], de acordo com um propósito borgesiano que vinha anunciando havia já algum tempo, o que coloca, então, a questão de se saber quem, efectivamente, - o outro ou o mesmo Vila-Matas - escreve estes contos abismais? «Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas [...] eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me», confessa Jorge Luís Borges num seu famoso texto [O fazedor (Obras Completas Vol.II), Lisboa, Teorema]. E Vila-Matas, numa entrevista recente à revista catalã Paper de Vidre: «Que me ocurren cosas vilamatasianas? Lo sabe todo el mundo que me conoce. Basta salir un momento conmigo a la calle, ir a algún sitio y armarse de una relativa paciencia y al poco rato verá usted que ocurre siempre algo que parece salido de mis relatos. Toda la realidad se parece a lo que escribo. En esta situación, Vila-Matas es obviamente uno de mis personajes».

Esta mesma urdidura ficcional já era o propósito de Vila-Matas em livros anteriores em que ensaiava a ausência e o desaparecimento como temas literários: procurando, num romance precoce, La asesina ilustrada, aniquilar os seus leitores; depois, fazendo passar um ladrão de túmulos por um escritor desaparecido, em La impostura; a seguir, inventariando escritores que renunciaram à literatura, em Bartleby & compañia; depois, ainda, confundindo-se com um homem sem qualidades, doente da literatura, em O Mal de Montano; e, no final anunciado de um ciclo, perseguir a ocultação, o eclipse, o grau zero do desaparecimento, em Doutor Pasavento. Mas será que foi mesmo um fim de ciclo, como em dado momento o autor nos quis fazer acreditar, ou antes estes contos serão, ainda, a nova habitação, multiplicada agora dezanove vezes, de Montano e Pasavento expandidos nestes exploradores de abismos? E que a utopia do desaparecimento é agora mais do que nunca múltipla, constituindo a escrita, como diria Deleuze, uma ocultação do sujeito. Ou «a vida secreta do autor, o obscuro irmão gémeo de um homem», nas palavras de Faulkner. Ou em resposta à pergunta de Blanchot - «Como faremos para desaparecer?» -, talvez diluir-se no tecido da escrita, tornando-se uma espécie de alma gémea de Musil, o escritor sem qualidades. Ou, ainda, a invenção do duplo que, segundo Ricardo Piglia, decorre da recordação de uma memória estranha, metáfora perfeita da experiência literária. Ora dessas memórias estranhas de expedicionários da realidade tratam estes contos abismais.

A mesma afectação literária de sempre, portanto, onde a autobiografia se bifurca na construção de um outro a quem acontecem as coisas e que evoca a figura borgesiana do duplo. Só que, ao invés de Borges, Vila-Matas-o mesmo não se transforma num apagado contemplador do outro, antes procura fundir a sua autobiobiografia caprichosa com o universo ficcional que se declina ora no formato de retratos de momento, inspirados em Gombrowicz, ora em entrevistas espasmódicas, ora no universo shandiano dos seus livros, onde as coisas acontecem não ao outro, mas a todos os Vila-Matas em que Vila-Matas-o mesmo se multiplicam sem que, no entanto, essa heteronímia seja assumida, por exemplo, à maneira pessoana. Já em Doutor Pasavento escrevia que «havia tantos Pasaventos em palco que seria impossível localizar-me, perder-me-ia entre eles (p. 273). O autor-expedicionário destes abismos é, então, não o outro, mas o mesmo Vila-Matas que no romance anterior se confundia com Pasavento, Ingravallo e Pynchon, como se a sua autobiografia - construída por ele à altura da sua literatura - fosse caprichosamente um género literário - uma autoficção, segundo Serge Doubrovsky, simultaneamente vivida na vida real e nas vidas de papel acolhidas na «sua maleta con libros de Bolaño», como o próprio Vila-Matas me confessava, um destes dias, numa troca de correio electrónico. Fingimentos que Vila-Matas volta a  convocar para estilhaçar a distancia entre ficção e realidade, cuja imbricação extrema é sintetizada no insuperável conto Porque ella no lo pidió, a estação mais absoluta deste itinerário abismal sobre a realidade que encontramos para além da literatura.