17 de fevereiro de 2012

Dickens para governantes


Leio no Guardian que, por ocasião do bicentenário do nascimento de Charles Dickens (7 de Fevereiro de 1812), o ministro da Cultura do governo inglês ofereceu, aleatoriamente, segundo o próprio, aos seus colegas, o primeiro ministro à cabeça, um livro do genial autor de "David Copperfield". A David Cameron ofereceu, talvez numa alusão, digo eu, à crise que o seu país e a Europa atravessam e que, costuma ouvir-se dizer com inconfessado cinismo, para além dos dramas que provoca também gera oportunidades, "Tempos Difíceis" e "Grandes Esperanças", que também seriam adequados para qualquer outro primeiro ministro europeu, embora me pareça que alguns deles, a começar pela senhora Merckel, não são muito dados a leituras literárias.

Comentando esta oferenda literária, numa crónica no Corriere della Sera, o escritor triestino Claudio Magris, com confessada intenção simbólica,  diz-nos que não obstante a sua paixão absoluta por Os cadernos póstumos do clube Pickwick, não hesitaria em oferecer David Copperfield ao presidente do Conselho do governo de Itália, porque, em sua opinião, "não é um romance político", sendo, por isso, aquele cuja leitura melhor conviria a Mario Monti, cujo governo se discute "se é ou não político".

Ponho-me a pensar que livros de Dickens poderia, também, eu oferecer ao nosso primeiro ministro para ajudá-lo a melhorar o seu sentido de justiça social e a compreender melhor a infelicidade quotidiana que as medidas do seu governo vão gerando em sectores crescentes da nossa população. A Passos Coelho que, confessou que, à noite, em casa, quase nunca vê televisão, o que lhe dará vantagem para leitura, oferecer-lhe-ia, então, um dos livros oferecidos a Cameron, Tempos difíceis, onde Dickens critica com acidez as deploráveis condições de vida dos operários ingleses e o fosso abismal que existia entre a sua vida precária e o fausto obsceno dos ricos da Inglaterra vitoriana, enfim, algo que nos vai sendo familiar quando nos damos conta do desemprego que alastra e vai queimando as esperanças dos portugueses.

Mas, talvez, mais proveitoso para todos, fosse recomendar-lhe que transformasse algumas reuniões do Conselho de Ministros num "conselho de leitores" dos livros de Dickens para, assim, aprenderem com ele a observar o mundo dos mais desprotegidos que se vai desmoronando à sua volta. É que, para nossa desgraça, os difíceis tempos que vamos vivendo parecem-se, cada vez mais, com os seus Tempos difíceis. E David Copperfield, Contos de Natal, Oliver Twist ou Historia de duas cidades, entre muitos outras obras que Dickens nos legou, para além de clássicos imprescindíveis em qualquer biblioteca, mesmo em bibliotecas de ministros mais dados às letras bancárias do que às literárias, de repente voltaram a ficar actuais. Não poderiam ser personagens de Oliver Twist muitas crianças que hoje vão para as escolas sem tomar o pequeno-almoço porque os pais já não têm como alimentá-los por se encontrarem desempregados? E os despejados de suas casas por já não poderem pagar as hipotecas a que estavam sujeitos por terem ficado sem emprego não nos fazem pensar nos mesmos métodos do usurário Scrooge em Conto de Natal ou do avarento Uriah Heep em David Copperfield?

A quem se dirigia Dickens quando escreveu "Oh, economistas utilitários, comissários de realidades, elegantes incrédulos... se continuardes enchendo de pobres a vossa sociedade e não cultivardes neles a esperança, quando tiverdes conseguido arrancar das suas almas todo o idealismo e eles se encontrarem a sós com a sua vida vazia, a realidade converter-se-á num lobo e devorar-vos-á"? Aos usurários e agiotas do seu tempo ou, premonitoriamente, aos especuladores financeiros de hoje que criaram os tempos difíceis em que vamos vivendo, perante o olhar complacente dos economistas apaniguados neo-liberalismo? Que diriam Álvaro e Gaspar se lessem Dickens, hoje, em conselho de leitores?


14 de fevereiro de 2012

Enamoramento e amor


Consta que o venerado Valentim, mártir romano cúmplice dos amantes, conforme reza a lenda cristã, pagou caro com o seu sangue o engenhoso palíndromo “Romamor” em que defendia que o sentimento amoroso é uma matéria tempestuosa à qual não se pode escapar. Platão dedicou ao amor um dos seus mais famosos “Diálogos”, pondo na boca dos convivas do alegre “banquete” distintas maneiras de amar: o amor terreno com seu sedutor catálogo de tentações carnais e o amor idílico e platónico que ignora as possibilidades do corpo. O poeta latino Ovídio oferece-nos na "Arte de Amar" um manual do ofício da sedução, da infidelidade, do engano e do prazer sexual, elaborado a partir das suas próprias experiências. Como divindade mundana, Eros tende a favorecer até ao ilimitado essa atração tumultuosa entre indivíduos de sexo contrário. 

De que falamos, então, quando falamos de amor? Talvez melhor do que em qualquer tratado sobre esse sentimento volúvel, é na literatura que encontramos o melhor catálogo de vivências da paixão amorosa. Porque o amor é, como diz Jorge Luis Borges, uma paixão literária “com as suas mitologias, com as suas pequenas magias inúteis” que convoca uma retórica, umas vezes platónica e elegíaca, outras vezes carnal e voluptuosa, das possibilidades do corpo.

Por isso, neste dia de São Valentim em que se evoca o enamoramento e o acasalamento, procuro no meu catálogo volúvel de histórias de amor duas representações distintas dessa retórica de encontros e desencontros geradora de incontrolados eflúvios hormonais, e proponho aos amantes que por aqui passarem que escolham a retórica da paixão que mais aprouver às suas tentações ou sublimações amorosas.

Que escolham, pois, entre Orgulho e preconceito, de Jane Austen, em que o amor está sempre à beira do casamento encerrando o sonho romântico, e Madame de Bovary, o romance do amor cego, adúltero e trágico por excelência, oferecido por Flaubert. Mas não os leiam esta noite, porque a leitura, parece, prejudica seriamente o amor e vice-versa.

À espera dos bárbaros


Por estes dias em que a Grécia se vê ameaçada pela nova barbárie estrangeira que já acampa junto às suas fronteiras aguardando o seu colapso financeiro e social, recordo o poema "À espera dos bárbaros", do grande poeta helénico do século XX, nascido em Alexandria, Constantino Cavafis (1863-1933), que numa alegoria ao desmoronamento do Império romano, recria uma cidade decadente, com políticos imóveis diante da ameaça estrangeira, preferindo a retórica da submissão à acção mobilizadora.

Revejo as imagens do parlamento grego reunido na noite ateniense em chamas para aprovar novo pacote de medidas de austeridade, mas são, ainda, as palavra de Kavafis que melhor iluminam a noite:

"O que esperamos na ágora reunidos? / É que os bárbaros chegam hoje. / Por que tanta apatia no senado? / Os senadores não legislam mais? / É que os bárbaros chegam hoje. / Que leis hão-de fazer os senadores? / Os bárbaros que chegam as farão. / 

Por que o imperador se ergueu tão cedo
 / e de coroa solene se assentou
 / em seu trono, à porta magna da cidade?

 / É que os bárbaros chegam hoje.
 /  O nosso imperador conta saudar
 / o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe / 
um pergaminho no qual estão escritos / 
muitos nomes e títulos.

 / Por que hoje os dois cônsules e os pretores / 
usam togas de púrpura, bordadas, / 
e pulseiras com grandes ametistas / 
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas? / 
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
 / de ouro e prata finamente cravejados? / 

É que os bárbaros chegam hoje,
 / tais coisas os deslumbram.

 / Por que não vêm os dignos oradores
 / derramar o seu verbo como sempre? / 

É que os bárbaros chegam hoje / e aborrecem arengas, eloquências.

 / Por que subitamente esta inquietude?
 / (Que seriedade nas fisionomias!)
 / Por que tão rápido as ruas se esvaziam
 / e todos voltam para casa preocupados? / 

Porque é já noite, os bárbaros não vêm / e gente recém-chegada das fronteiras
 / diz que não há mais bárbaros.

 / Sem bárbaros o que será de nós?
 / Ah! eles eram uma solução."


12 de fevereiro de 2012

Naufrágio com espectador


Quando tudo fazia prever que o centenário do naufrágio do "Titanic", seria mais uma comemoração nostálgica de uma tragédia longínqua, relativamente à qual seríamos, uma vez mais, espectadores de desastres alheios, com o vago prazer que produzem as catástrofes longínquas que nos chegam em livros e filmes que lemos e vemos como leitores contemplativos ou espectadores obscenos, eis que a tragédia recente do "Costa Concordia" nos vem lembrar que os desastres marítimos, e não só, são, afinal, bem actuais. E inquietante coincidência, o "Concordia" fora palco de rodagem do filme de Jean-Luc Godard, estreado em 2010 no festival de Cannes, que pretende ser uma reflexão-profecia sobre a decadência e o fim da Europa. No filme, enquanto o navio viaja através da noite escura, e os passageiros fingem divertir-se, falam ao telemóvel, vagueiam sem rumo, uma mulher jovem, na coberta do navio, murmura: "Pobre Europa, conspurcada, humilhada pelo sofrimento".

Entre as interessantes comparações que, por estes dias, se fizeram entre o naufrágio do "Concordia" e o do "Titanic, além daquela que leva a concluir que é mais fácil chocar com um iceberg do que com uma ilha, ficámos, também, a saber que o primeiro se afundou às escuras e o segundo com todas as luzes acesas e com a orquestra tocando, o que é mais consentâneo com a sociedade-espectáculo em que vamos vivendo.

Quanto aos capitães, enquanto o do Concordia parece ter sido o primeiro a fugir, o do "Titanic" afundou-se com o navio, transformando-se num exemplo de coragem e heroísmo gravado num epitáfio num monumento novaiorquino: "Faithful in duty. Friendly in spirit. Firm in command. Fearless in disaster. He saved women and children and went down with his ships". Conta-se que no "Concordia", a correria para os salva-vidas foi caótica, com os mais fortes a empurrar mulheres e a pisar crianças no afã de chegar primeiro aos botes. No "Titanic, a fazer fé na estatística dos sobreviventes, os homens honraram o protocolo de "as mulheres e as crianças primeiro" instituído após o épico naufrágio, em 1852, perto da Cidade do Cabo, em frente de Danger Point (!), da fragata britânica "HMS Birkenhead", em que os soldados e oficiais do 73 Regimento de Infantaria, permaneceram em formação na coberta, enquanto as mulheres e as crianças a bordo (familiares dos militares) subiam para as lanchas e se punham a salvo. No "Titanic", as coisas não terão sido heróicas do mesmo modo, já que, a prioridade foi dada às crianças da primeira classe e só depois às da segunda e terceira classes (segundo as mesmas estatísticas, no "Titanic" 94% das crianças que viajavam em primeira classe salvaram-se, enquanto na terceira classe a mortalidade ascendeu a 75%).

Outra diferença entre os dois naufrágios, é que enquanto o "Titanic" se afundava no meio do mar, a muitas milhas da costa e, portanto, sem espectadores, o "Concordia" afundou-se a 150 metros da terra perante o olhar contemplativo de muitos espectadores, o que me leva ao ensaio de Hans Blumenberg Naufrágio com espectador (1979), em que o filósofo alemão lembra que o naufrágio sempre foi uma "metáfora existencial", tal como se encontra no Proémio do livro de Lucrécio Rerum Natura, sublinhando a posição segura em terra firme a partir da qual espectador observa a cena do heróico naufrágio dos audazes navegadores. A partir da metáfora do naufrágio, Blumenberg produz um excelente argumento de como a oposição terra/mar determina todo um conjunto de outras que vão vigorando historicamente até à "modernidade", de entre as quais as que são determinadas pelo nihilismo moderno marcado pela tensão entre a segurança de quem fica em terra, isto é, no seu lugar e a insegurança de quem, saindo do seu lugar, violando as fronteiras, se expõe ao perigo e ao desastre.

Estas a posição antagónica entre o espectador e o naufrago. Já Lucrécio, o espectador, contemplava desde terra firme o desastre marítimo alheio: "é doce, quando no mar imenso os ventos agitam as águas./ observar a partir de terra as tribulações alheias", o que me faz regressar à actualidade do naufrágio do "Concordia" à vista de todo o mundo e à alegoria da nossa existência actual enquanto observadores passivos diante do desastre que pensávamos ser apenas alheio - o naufrágio financeiro e social da Grécia diante da contemplação obscena das instâncias políticas europeias -, mas que, afinal, se revela poder vir a ser um naufrágio geral de uma Europa à deriva após o capitalismo ter violado as fronteiras da decência. Blumenberg, citando Pascal, coloca-nos na posição de navegadores prestes a naufragar: "vous êtes embarqués". E embarcados numa viagem de alto risco, entre "recifes, tempestades, abismos e calmaria", sem timoneiro ou ancoradouro que nos ponha a salvo da crise que aí está para nos afundar. Mas não igualmente todos, porque nesta embarcação, tal como no "Concordia", os capitães da finança e da política estabelecida serão os primeiros a pôr-se a salvo; e tal como no "Titanic", os que viajam em primeira classe têm já os salva-vidas à sua espera, enquanto os que viajam em segunda e terceira classes dificilmente chegarão a eles.

Talvez, por isso, Enrique Vila-Matas nos tenha lembrado, recentemente, numa crónica no El País, intitulada El naufragio por excelencia, sobre o "relato do mais famoso naufrágio do século XVII", Les Naufragés du Batavia, de Simon Leys,  que "as ansiedades, crises e catástrofes são apenas isso, ansiedades, crises e catástrofes, mas o pior pode vir depois. Nestes tempos em que, com estranha constância, sem o menor desfalecimento, as notícias financeiras diárias se mostram ensimesmadas numa já quase complacente descrição do naufrágio geral, seria bom lembrar que nem tudo termina numa crise recorrente e que, às vezes, pode encontrar-se no outro lado da porta algo ainda mais ligeiramente infame: o tempo do horror." "É que todos esperamos o barco de Java, a embarcação capaz de vir em nosso socorro com a sua vela branca, tão necessária por estes dias."

10 de fevereiro de 2012

Vila-Matas portátil


Quanto pesariam os livros de bolso de Enrique Vila-Matas que trouxe na minha bagagem de cabine no voo low cost de Barcelona para Sevilha? Seguramente, embora contundentes, pesariam pouco, senão não os poderia ter trazido comigo e começado a lê-los no avião, o que ajuda sempre em qualquer voo, já que livros e turbinas são - como diria o escritor argentino Rodrigo Fresán, autor de "La velocidad de cosas" e, talvez por isso, também ele, um viajante-leitor - máquinas locomotoras.

Livre de taxas de peso adicional, subi, primeiro, à máquina voadora e, só depois, aos três livros De Bolsillo da biblioteca portátil vilamatiana que a Mandadori decidiu começar a publicar, a saber: "En un lugar solitário. Narrativa 1973-1984", "Chet Baker piensa en su arte" e "Una vida absolutamente maravillosa". "Dublinesca", também publicado nesta colecção, não o trouxe, não por medo de excesso de peso, mas porque já o tinha subido noutra viagem. Sempre que subo a aviões, subo também a livros, como já em posts anteriores se ficou a saber. Assim como me confio à perícia dos pilotos que vão traçando linhas nos céus, também me confio à perícia daqueles que traçam linhas nas páginas subidas na cabine.

E num destes livros, traça V-M que tinha o secreto desejo de se tornar realizador de cinema e que, na época, viveu a experiência do serviço militar obrigatório como um calvário. «Daquele já muito remoto ano de 1971, que passei em Mellila como soldado do Exército espanhol, recordo muito particularmente os 20 dias que estive internado no manicómio militar dessa fortaleza». Assim começa o pesado prólogo de En un lugar solitário. Narrativa 1973-1984, escrito por V-M para o volume que reúne os seus cinco primeiros livros. Neste extenso prólogo, V-M confessa como, a pouco e pouco, subiu, ele próprio, para a literatura: «Conto como entrei na literatura, as minhas debilidades iniciais quando comecei a escrever. Primeiro, como leitor de poesia, comecei, depois, a escrever quase por casualidade, e entrei, sem saber como, nesta aventura».

O texto En un lugar solitário, que dá o nome à antologia, foi o primeiro livro publicado por V-M, na ocasião, com o título  Mujer en el espejo contemplando el paisaje. Al sur de los párpados foi o terceiro, tendo o autor evitado reeditá-lo até agora. "Sempre tive alguns preconceitos contra estes dois livros. Contudo, ao relê-los 30 anos depois, reconheço-me neles. Ambos contém coisas boas e más, mas fazem sentido no conjunto dos textos reunidos. Não quis adicionar nem eliminar nada para não diminuir o seu valor documental" numa antologia que integra, ainda,  La asesina ilustrada, Nunca voy al cine e Impostura. "Suprimir um ou outro título da minha obra dos primeiros anos deixá-la-ia coxa".

En Chet Baker piensa en su arte, V-M institui algo que ele próprio classifica como "ficção crítica", processo que utiliza para reflectir sobre a obra de Joyce e de Simenon: "um crítico literário, encerrado durante uma noite noite num hotel de Turim, procura o traço de união entre a literatura radical encarnada pelo último Joyce e a literatura tradicional de qualidade representada por Simenon; persegue o livro que uniria idealmente os leitores de contos minoritários e exigentes com aqueles que preferem histórias mais comerciais".

Dos livros subidos a bordo nesta viagem de regresso a casa, depois de uma estada na cidade nervosa de V-M, Una vida absolutamente maravillosa, que me decidi começar a ler no avião por ser o mais locomotor, é, de entre todos, o mais vilamatiano, aquele em que V-M é, ao mesmo tempo, um ensaísta que narra e um contista que ensaia. Continuo a ler a suas mais de quinhentas páginas nestas noites volúveis, tão maravillado como na primeira vez que li El viajero más lento, El traje de los domingos, Desde la ciudad nerviosa y El viento ligero de Parma. E leituras maravillosas, o segundo livro de Diario voluble e Para acabar con los números redondos que integram o volume. Assim como os retratos de momento de autores que integram a sua, e a minha, biblioteca de quarto escuro: Walser, Joyce, Gombrowicz, Céline, Roussel, Kafka, Schulz, entre outros bartlebianos & shandianos.

E vocês, que esperam para meter no bolso esta ligera, mas contundente, biblioteca portátil vilamatiana? Subir a um avião ou esperar pela tradução?

7 de fevereiro de 2012

Tempos difíceis




Por estes dias, celebram-se 200 anos do nascimento de Charles Dickens, e o mundo fora dos livros, desgraçadamente, vai-se parecendo, cada vez mais, com o mesmo mundo que ele retratou em romances como David Copperfield, Oliver Twist, Tempos Difíceis ou História de Duas Cidades, que contribuíram para a minha formação literária e de algum modo, ajudaram a moldar as minhas convicções políticas. A actualidade da sua obra pode ver-se, por exemplo, no começo de História de Duas Cidades: "Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; a idade da sabedora, e também da loucura; a época das crenças e da incredulidade; a era da luz e das trevas; a primavera da esperança e o inverno do desespero".

Em Tempos Difíceis, Dickens, critica com acidez as deploráveis condições de vida dos operários ingleses e o fosso abismal que existia entre a sua vida precária e o fausto obsceno dos ricos da Inglaterra vitoriana. Nestes tempos difíceis de crise que assola a Europa, com os impostos a aumentar e os salários a diminuir, com o desemprego a disparar para números impossíveis, com sucessivos cortes nas prestações sociais dos estados, enfim, com cada vez mais amplos sectores das populações a empobrecer, e com a Grécia, seguida de Portugal - onde, de acordo, com números do Eurostat, mais de 2.500 milhões de pessoas sobrevivem em estado de pobreza e de exclusão social - e de outros países europeus, caminhando à beira do abismo para onde os sucessivos desgovernos e os especuladores financeiros nos vão empurrando, impossível não nos assombrarmos ao constatar como este romance publicado em 1854 descreve a realidade actual. É que a obscena desigualdade entre os miseráveis lares proletários, retratados por Dickens na sua frieza, obscuridade e pobreza extremas, e as luxuosas mansões dos capitalistas da época que tratavam os seus assalariados como bestas de carga, parece reproduzir-se nestes nossos tempos difíceis em que que aos magros salários de muitos se contrapõem aos altos salários de uns tantos gestores transitados da política para as empresas e para os bancos. A única diferença entre os privilegiados dos tempos difíceis de Dickens e os privilegiados de agora, é que os de antes se chamavam utilitaristas e os de hoje são neo-liberais, e que uns se reviam em Stuart Miller e os outros revêm-se em Milton Friedman.

Vale a pena recordar um acontecimento catastrófico vivido por Dickens, num início de Verão de 1865, quando viu despenhar-se num precipício sete carruagens do comboio em que viajava. Premonitória metáfora de uma Europa, primeiro a Grécia, depois a Irlanda e Portugal e logo as restantes carruagens deste comboio europeu - sem maquinista mas com maquinadores - que hoje vai descarrilando arriscando uma queda sem fim no abismo que se abre sob o seu gasto e destravado rodado metálico.

Talvez seja, ainda, possível evitar a queda se os maquinadores que nos conduzem para a catástrofe forem capazes de imitar o mesquinho senhor Scrooge de Um conto de Natal, que ao ver o futuro sombrio anunciado pelos espíritos do Passado, do Presente e do Futuro, onde podia ver-se um túmulo com o seu epitáfio e nenhuma flor flor, soube redimir-se a tempo e converter-se num homem generoso. Uma parábola, afinal, que a senhora Merkel deveria recordar se quiser, ainda, ter remissão.

6 de fevereiro de 2012

Literatura sem escritores



Escreve W. G. Sebald que à sua volta tudo se desumaniza ou desaparece e que inclusive a própria História se desvanece. E que neste processo de aceleração imparável é conveniente que a literatura se encarregue desta consternação. Mas Sebald já cá não está. Nem Mann, nem Musil, nem Walser, nem outros que acreditaram na capacidade de resistência da literatura e o papel fundamental que ela poderia desempenhar na sobrevivência da história da memória humana, como disse Vila-Matas em Doutor Pasavento. É, ainda, Sebald que, em Os anéis de Saturno, nos oferece uma admirável síntese do que é a literatura: Sempre que decifro uma destas notas surpreende-me que um rasto já há muito extinto no ar ou na água possa continuar visível aqui, no papel.

Mas, onde perseguir, hoje, esse rasto, quando é o próprio universo da literatura que parece poder funcionar sem escritores? Não estará a banalização da palavra a levar ao desaparecimento a própria ideia de literatura? Quem inscreve no papel esse rasto que leremos daqui a cem anos, mil anos? Todos estes mortos à nossa volta, onde sepultá-los se não na linguagem?,  pergunta Adónis, um poeta sírio-libanês que me revela Vila-Matas. E, no entanto, a banalização "pós-moderna" da palavra é uma miragem de um lago em cuja superfície opaca se desvanecem os traços, os rastos, a própria essencia da literatura.

Que fizeram os escritores contemporâneos do legado que receberam do passado, permitindo que a água e o ar estejam a apagar o rasto das palavras? Entra-se numa livraria e há muitos livros. Mas há poucos escritores. Tão poucos que parece que o próprio mundo da literatura parece já funcionar sem a necessidade dos escritores. «Vejo escritores falsos e sei distinguir entre o escritor falso e um que não o é» - disse Vila-Matas numa entrevista recente. «Depois de Kafka não consigo imaginar um escritor a apanhar banhos de sol [...] há muitos escritores que vejo como falsos», acrescentou. E, ainda, em O Mal de Montano, «essa raça de escritores, imitadores do já feito e gente absolutamente desprovida de ambição literária, mas não de ambição económica». E Lídia Jorge: «Não me interessa a literatura sobre o nada». Vila-Matas e Lídia Jorge, tão aparentemente diferentes, mas tão iguais na sua entrega à literatura. Por isso, li os seus últimos livros quase ao mesmo tempo. Porque não há em nenhum dos dois, embora em registos literários muito diferentes, nada de excessivo. Não desbaratam palavras. O primeiro, através de Pasavento, perseguindo uma poética da extinção, da ocultação, os mortos sepultados na linguagem; Lídia recolhendo a matéria impura com que veste a sua escrita, a realidade, onde põe em movimento personagens com inteireza, vivas.

Evoco-os aqui porque, embora cada um transformando, contando, a realidade à sua maneira, ambos são verdadeiros. Ambos pertencem à literatura. Na sua diferença representam aqueles que procuram contrariar a histeria tranquila de grande parte dos escritores da moda, incapazes de traçar os sulcos que muitos anos depois, se os tivessem inscrito, haveríamos de ler. Na maior parte, o que há, hoje, são actores e não autores, que transformam a literatura num ramo pobre e marginal da cultura do espectáculo. Um simulacro de literatura, aproveitado, incentivado por «homens de negócio que editam livros». Por isso, as novidades das livrarias encontram-se inflacionadas por livros de figuras públicas, jornalistas, políticos, historicismos, esoterismos, remakes, best-sellers, bagatelas que se vendem como qualquer mercadoria, porque são, efectivamente, mercadoria efémera.

Já Roland Barthes, nos anos 60, afirmava que a crise não era da literatura, mas sim do livro, do excesso de livros postos a circular por um mercado apenas preocupado com a multiplicação das páginas, do lucro. Só nos restará, então, regressar aos clássicos? A esses regressaremos sempre, hoje, daqui a cem anos, mil anos, porque neles se encontra gravada a história da memória humana. São os livros esplendorosos, raros, assombrosas «extensões da memória e da imaginação» que com paciência encontramos quase escondidos nas livrarias. Que apenas se encontram nos alfarrabistas amantes de livros. E há, também alguns, actuais, ainda mais raros, e difíceis de reconhecer na confusão de títulos lançados em cascata, mas que serão futuros clássicos donde, uma vez abertos a quem os queira ler, se soltará para sempre o sopro que manterá vivo, apesar dos outros, apesar dos «trapezistas do marketing» editorial, o fogo da literatura. 

4 de fevereiro de 2012

A cancela do tempo


«… justamente naquela noite principiava para ele a irremediável fuga do tempo. [...] E assim se prossegue caminho numa esfera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o Sol brilha alto no céu e parece nunca ter vontade de chegar ao ocaso. Mas a certa altura, quase instintivamente, voltamo-nos para trás e vemos que uma cancela se fechou nas nossas costas, obstuindo-nos a via do regresso. Então sentimos que algo mudou, o Sol já não aparece imóvel, desloca-se rapidamente, ai de nós, nem temos tempo de o fixar pois já se precipita no confim do horizonte; apercebemo-nos de que as nuvens já não ficam estagnadas nos golfos azuis do céu, foram encavalitando-se umas nas outras, tal é a sua urgência; percebemos que o tempo passa e que também a estrada um dia deverá terminar.»

Por isso, qualquer gesto será inútil. A inutildade da fortaleza, a própria existência de Drogo… Esta a paisagem mental e simbólica que, como uma névoa ameaçadora vinda de longe, do deserto, nos envolve num delírio de imortalidade. Sem remissão, na visão pessimista de Dino Buzzati [1906-1972] em O Deserto dos Tártaros [Cavalo de Ferro, 2005], espécie de metáfora da nossa contemplação nihilista de um mundo carregado de uma solidão irredutível que só pela «inocência do agir» (Goethe) poderíamos, poderemos, estilhaçar. Mas não Giovanni Drogo que desistiu de agir, de perscrutar saídas na decadente fortaleza de Bastiani em que se foi encerrando, preferindo a espera angustiante do confronto com o inimigo tártaro que poderá, enfim, dar um significado à sua vida. Mas nem isso Drogo consegue, pois no último momento, quando finalmente o inimigo surge do deserto, ele falha a ocasião, vindo a morrer na rectaguarda da batalha que não chegou a travar, como se a inutilidade da sua vida estivesse traçada desde o momento em que olhando para trás viu a cancela do tempo fechada.

Um livro sombrio, portanto, a cuja génese não foi certamente indiferente o ano em que foi escrito por Dino Buzzati - 1939 - que via as sombras que alastravam pela Europa perante a imobilidade do mundo. Para ser lido apenas – como apelaria Robert Walser – pelas «pessoas saudáveis [que possam e desejem] expor-se um pouco ao perigo [da] literatura dita doentia. [...] Senão, com mil raios para que serve ser saudável?» Assim o li, embora sem a urgência deste tempo achatado, de um só folgo, sem olhar para trás, não fosse a cancela do tempo fechar-se nas minhas costas. Por isso, posso agora, e sempre, regressar a outros livros que até podem ser os de Buzatti que só tardiamente descobri. Talvez O Segredo do Bosque Velho ou Os Sete Mensageiros, ambos editados pela Cavalo de Ferro.